L I V R O  MEMÓRIAS DE UMA RUA  Pepe Chaves

 

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Memórias de uma rua

livro de Pepe Chaves

   

Pepe Arte Viva, 2002, Itaúna, MG.

 

P R E F Á C I O

 

Por Cláudio Tsuyoshi Suenaga*

 

No fluxo incessante do rio corrente, as águas do ciclo eterno não retroagem. Destarte, a busca hoje, por aqueles tempos perdidos, tem de ser feita, necessariamente, pela recorrência ao memorialismo, recurso literário em que a ficção cede espaço às reminiscências do autor, investido da missão de transportar-nos, como que numa máquina do tempo mental, a épocas, lugares e personagens distantes, de modo a permitir uma investigação etnológica e psicológica profunda do passado, rompendo limites intransponíveis.

           As memórias constituem nexos de sentido entre o que se convencionou chamar de corpo das fontes: em primeiro lugar, a obra; em segundo, a vida e, em terceiro, o tempo histórico. Essas três dimensões devem ser referidas e entrelaçadas umas às outras, como feixes de um campo compacto de força.

            O cronista – cronos (tempo) – ou contador de histórias, em particular o contador de suas próprias histórias, é a testemunha de si mesmo, testemunha porque sabe, e sabe porque viu e viveu. Não o deixa de ser uma espécie de historiador, já que em termos semânticos a palavra história deriva do grego historie (investigação, informação), que por sua vez originou-se de historen e histor, da raiz indo-européia vid, veid, ver, ou seja, aquele que vê, a testemunha ocular.

            Na acepção de Umberto Eco, existe o tempo da história e o tempo da narrativa. Em poucas páginas se pode contar uma história que se passa num tempo bastante longo, assim como em muitas páginas se pode contar uma história que se passa num tempo bastante curto – exemplo emblemático disso é Ulisses, de James Joyce. A linearidade há muito foi rompida e hoje dificilmente um livro ou filme conta uma história seguindo o tempo cronológico. Em Desenredo, de Guimarães Rosa, o tempo que passa é o tempo da paixão por uma mulher. Não há datas nem referências temporais, mas sente-se a passagem do tempo. O tempo está contido/inferido na narrativa, sem datas nem sucessão cronológica.

            A história pode ser contada em três planos: o da infância do narrador; o da realidade objetiva; e o plano do devaneio. A passagem de um a outro costuma ser nebulosa, conferindo à composição um aspecto que reflete o estado mental do memorialista, já que tudo o que vivemos fica diferente à medida que recordamos.Toda literatura, toda obra de arte, toda obra em si, nasce da experiência de nossas vidas. Não é a vida, portanto, que determina e comporta a obra, mas a obra que antecipa e comporta a vida. Todo autor procura justificar a constelação de seu nascimento e projeta então a cena de sua existência, antecipando-a. A realidade nada mais seria do que um estágio posterior da ficção.

            O bom contista/memorialista – todo contista obriga-se a ser um bom memorialista e vice-versa – conhece-se pela fluência e agilidade da narrativa e pela originalidade de suas histórias, entre outros preceitos. E aqui está um contista/memorialista que reúne essas capacidades, capaz de levar o leitor a experimentar, junto com ele, suas fantásticas aventuras e trazê-lo de volta aos problemas do cotidiano, comovendo e encantando, distraindo e refletindo, reconstituindo e sonhando, articulando de maneira hábil as dimensões afetiva e ética, atemporal e histórica.

            Multiartista e editor do tradicional jornal cultural Via Fanzine, Pepe Chaves brindara-nos anteriormente com obras de talento como O Menino dos Horizontes e Fama Real, caracterizados pelo exercício inventivo e pelos altos vôos da imaginação. É do vivido e do concreto que parte agora, invocando suas lembranças pessoais para mergulhar nas lembranças daqueles que fizeram as suas próprias, sem artificialismos ou artifícios literários rebuscados, mas com simplicidade e naturalismo, contando como se estivesse ao vivo, em nossa companhia, em um alegre, informal e descontraído bate-papo entre amigos em um bar ou à beira do rio São João. Contista nato, os escritos de Chaves, originalmente publicados em forma de série em seu jornal entre 1997 e 1999, fluem livremente e com total desenvoltura e leveza, aproximando-se dos leitores e fazendo-os sentirem co-participes de suas vivências. As ambigüidades do texto e o seu impressionismo justificam-se pela hesitação estilística entre suas visões pessoais e a maneira como se apresentava a realidade, eivada da concretude corpórea que a ação propicia. Chaves não se perde em divagações vãs sobre antigos medos, tristezas, mágoas ou ressentimentos que porventura acumulara, oferecendo tão somente o resgate sincero do que mais lhe apetece e lhe agrada recordar, ainda que alguns momentos não tenham sido muito ou nada agradáveis.

            A construção do relato autobiográfico vai sendo feita conforme se resgata, recupera, recompõe, reconstitui e reordena pacientemente os atos da peça do grande teatro da vida, cujo roteiro, diga-se de passagem, vai sendo escrito, um tanto improvisadamente, atabalhoadamente, meio que por acaso, no calor da hora, no mesmo momento da representação, feita sem qualquer ensaio, sujeita ainda às ingerências do destino misterioso, imprevisível e implacável – será que não passamos de meros elementos num mundo de combinações e cálculos ou, como no filme Matrix, de meros bits manipuláveis, ou tudo não passaria de uma conspiração cósmica? De qualquer forma, todos nós vivemos o grande drama de nossas existências e não temos como escapar disso. E se o nosso mundo atual globalizado é despedaçado numa tempestade permanente – as memórias de agora são automaticamente substituídas pela novidade seguinte –, Chaves, tomado pela síndrome do resgate obsessivo, é um desses poucos que ainda se recusam terminantemente a deixar de lado e a obliterar o passado, que insiste teimosamente em cultivar, celebrar e cultuar como que tentando salvar um legado que talvez seja a última/única esperança para um futuro razoavelmente humano.

            A vida, para Chaves, não é sono e esquecimento, e sim sonhar, ou ficar acordado todo o tempo vivendo e revivendo cada momento, aqui no caso, locais e pessoas associados àquela rua calçada com pedras retangulares e iluminada por postes antigos de pratos redondos, a Godofredo Gonçalves (que se chamava São José), para onde se mudou em 1972, quando tinha apenas 8 anos de idade. A rua e suas ramificações e adjacências compõe um universo mágico/encantado de pipas, teatro de fantoches, histórias em quadrinhos, carros de fórmula 1, velotrol, baratinhas (carrinhos de rolimã), criadouros de pombos, zoológicos no quintal, caveiras de abóboras e principalmente futebol, muito futebol, em campinhos de terra improvisados. 

            Falando em futebol, é bom que se assinale que Chaves é um fanático, aguerrido, orgulhoso (e sofrido) torcedor do glorioso Clube Atlético Mineiro, fundado em 25 de março de 1903, (primeiro) campeão brasileiro de 1971 (ano em que nasci), com sede na Rua Olegário Maciel, em Belo Horizonte. Aproveitando o ensejo, gostaria de lembrar que o Mineirão, com capacidade para 130 mil pessoas, foi inaugurado em 7 de setembro de 1965 com um jogo entre a Seleção Brasileira e o Uruguai. O curioso é que para a ocasião festiva, a CBD convidou o time inteiro do Palmeiras para envergar a camisa verde e amarela, não tendo havido nenhum protesto, afinal o verdão formava na época o melhor time do Brasil, tanto que se sagrou campeão do Rio-São Paulo naquele ano. Numa atuação sensacional, o Palmeiras, formado por craques da chamada “academia” como Djalma Dias, Valdemar, Ferrari, Dudu, Ademir da Guia, Julinho, Servílio, Tupãzinho e Rinaldo, venceu o Uruguai pelo placar de 3 a 0.

            O futebol rendeu inúmeras alegrias ao Pepe (igualmente apelido de um dos maiores goleadores daquele quase imbatível, Santos de Pelé); também quase o matou, vide quando, vestindo um uniforme de goleiro emprestado de seu colega Leopoldo, vulgo Escória, quase foi estraçalhado pelo seu cão vira-lata, Tigre, que colocando o faro na frente do afeto, estranhou aquele cheiro peculiar e passou a mordê-lo furiosa e mortalmente, e o teria matado não fosse a providencial intervenção de seu pai, o Zezito Chaves. “Viver é muito perigoso”, dizia o camarada Riobaldo, na célebre criação de Guimarães Rosa.

            A geração atual, nascida em meados da década de 1980 para cá, criada em um mundo globalizado de shoppings centers, computadores, redes de informação, e-mails, vídeo-games, CDs, DVDs, celulares, etc., certamente estranhará a maioria dos termos utilizados e referidos e encarará a realidade de outrora como uma ficção surreal passada em um mundo paralelo ou em um outro planeta, relutando e mesmo recusando-se em acreditar que num passado tão próximo, os habitantes da Terra possam ter sido e vivido assim. Grande parte dessa geração nunca viu ou só viu em museus um aparelho de televisão com apenas 13 canais e provavelmente nunca esteve frente a frente com um televisor preto e branco, muito menos da marca Telefunken. Nunca assistiu Jornada nas Estrelas (a série clássica), Perdidos no Espaço, Além da Imaginação, Túnel do Tempo, Elo Perdido, Família Dó-Ré-Mi, Agente 86, Ultraman, Ultraseven, Robô Gigante ou Vila Sésamo. Suas férias nunca foram recheadas com Sessão da Tarde Especial e filmes como A fantástica fábrica de chocolate e Os primeiros homens na Lua. Nunca brincou de Autorama, Cubo Mágico, Falcon, Forte Apache, Playmobil ou Super Trunfo. Nunca jogou Tele-jogo ou Atari. Nunca andou com BMX, Monark com freio a tambor, Pantera e Velotrol. Nunca calçou um Bamba, um Kichute ou um Montreal. Nunca bebeu Gini, Fanta Limão, groselha vitaminada Milani, Ki-Suco Campestre, Crush e Grapete. Nunca ouviu ninguém cantando “Depois de um sono bom, a gente levanta...”. John Travolta para ela é o ator de A outra face e não de Os embalos de sábado à noite ou Grease.

            Todos os períodos revolucionários extraem seus ideais de um passado longínquo, como ensinava Hegel, para quem avançar é regressar ao fundamento. Durante a infância vemos o mundo através de um filtro de bondade e condescendência, produto mais da criação que tivemos do que de nós mesmos. Esse filtro vai desaparecendo com o tempo e com a malícia, até não existir mais. Quando crianças, admirando e invejando o poder dos adultos, ansiamos por crescer o mais rapidamente possível, mas assim que atingimos a maturidade, constatamos que o tal poder nos traz muito mais o peso das responsabilidades do que propriamente liberdades e, paradoxalmente, passamos a ansiar por voltar a ser crianças, a única fase reconhecida e verdadeiramente feliz e idílica de nossas vidas. Em conseqüência, passamos a correr desesperadamente atrás daquelas coisas que ontem passaram ao nosso lado e muitas vezes não demos a devida importância, tentando recuperar a espontaneidade da infância, as coisas que dela perdemos e as coisas que nela nunca tivemos.

            As brincadeiras, travessuras e traquinagens narradas por Chaves, mesmo as mais pesadas, hoje soam pueris para essa geração criada e acostumada na cultura da crueldade e da violência, em que a infância foi reduzida a uma etapa que deve ser passada e de preferência contornada o mais rápido possível, pois vende-se o ingresso precoce na adolescência e por conseguinte no mercado de consumo. O jovem de 11, 12 anos já se julga um adulto, incorporando o comportamento deste e sendo capaz, inclusive, dos mesmos atos bárbaros, com a vantagem de não ser responsável por eles.

            Nós que vivemos aqueles saudosos tempos, difíceis sim, como são todos os tempos, mas tempos em que ainda podíamos acreditar em sonhos e utopias plenamente realizáveis, ficamos a perguntar, perplexos: por que a humanidade, em vez de ingressar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie? Hoje prevalece o desalento, um certo estupor pelo rumo que as coisas estão tomando. Ninguém garante que amanhã será melhor, mas hoje estamos vendo que a situação está pior. O que temos visto na televisão, por exemplo, é o consumismo associado ao que há de pior em termos culturais. É o cinismo, a arrogância, a prepotência, a presunção e a vaidade levados ao extremo. A violência virou padrão estético e rumo moral, estampada na música, no cinema e na literatura marginal da TV. Ora, se as crianças e os adolescentes recebem, em doses extras por dia, todo esse conjunto de glamour do que deveria ser abominado, visto que criminosos e terroristas são convertidos em heróis que objetivam fazer justiça pelas próprias mãos, ficam cada vez mais longínquos os ideais de se formar uma sociedade mais justa. Num mundo de mentiras e meias verdades em que corruptos se apresentam como anjos caídos do céu, em que bandidos e delinqüentes são enaltecidos como heróis, em que ignorantes são tomados como gênios, incorre-se no enaltecimento de um equivocado conceito de marginalidade. Assim, a sociedade caminha a passos largos para o egocentrismo exacerbado e para a degradação. E os valores essenciais, que de fato são imprescindíveis para a formação do homem, atropelam-se e estapeiam-se ao sair, atabalhoadamente, pelas portas e janelas dos lares e das salas de aula. “O otimista acha este o melhor dos mundos. O pessimista tem certeza disso”, já disse o físico inventor da bomba atômica Robert Oppenheimer.

            A cidade perdeu inteiramente o seu caráter, a cidade não é mais o espaço da convivência fraterna. A cidade tornou-se um espaço autofágico, canibalístico, que nega a sua própria identidade, o seu jeito de ser, e se consome. As pessoas evitam ao máximo sair às ruas, dominadas pela bandidagem das gangs, das máfias e dos conglomerados econômicos, voltando-se inteiramente para si próprias, preocupando-se unicamente com o seu próprio bem-estar. Em redutos mais privilegiados, os moradores tendem a privatizar os espaços, fechando-os e convertendo-os em condomínios fechados, verdadeiros feudos fortificados com muralhas cercadas por fossos sociais que imitam os castelos medievais. O fim da rua, em última instância, mais do que o fim de uma época ou estilo de vida, não assinalaria também o fim desse espaço público de convivência e solidariedade, e por extensão, o fim da confraternização entre pessoas e povos e a instalação do que o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), autor de Leviatã, chamou de guerra perpétua de todos contra todos (bellum omnium contra omnes), em que as noções de direito e ilegalidade, justiça e injustiça, não têm sentido?

            Hobbes aceita a idéia dominante na época relativamente à existência de um estado natural, anterior à fase social do homem. Revive uma doutrina da escola de Epicuro, recordada por Lucrécio na obra Rerum Natura, de que o homem é naturalmente solitário e egoísta. Vivia o homem, primitivamente, no mais crasso individualismo, isento das regras morais e do direito, sem a tendência e possibilidade de associar-se aos seus semelhantes. A regra fundamental era o egoísmo, com cada um cuidando somente dos próprios interesses. Surgem os conflitos, em cujas lutas deveria vencer o mais forte e astuto. O homem é o lobo do homem (homo hominis lupus). Mas na natureza humana agem dois postulados fundamentais: o desejo do uso particular dos bens comuns e a razão natural, pela qual cada um trata de evitar a morte violenta que é o pior dos males da natureza. Impulsionado por essas exigências íntimas do ser, o homem procura a felicidade, que consiste na manutenção da ordem e da paz. Para atingir tal finalidade, une-se em grupos, procurando extinguir a insegurança proveniente do estado de guerra incessante. Virtude é, nesse momento, tudo o que conduzir à paz do grupo, com a eqüidade, a fidelidade, a solidariedade, a fraternidade, etc. Nada é virtude ou vício por si mesmo, mas só enquanto coopera ou não para a coexistência pacífica. Esta é a lei natural que indica o necessário para a conservação da vida pelo maior tempo possível. Daí decorre que “é necessário procurar a paz quando se tem a esperança de obtê-la; se isto não for possível, é necessário procurar os recursos para a guerra, e é lícito usá-los” (os EUA que o digam...). Estaríamos regredindo a esse estado natural primitivo em que reinava o mais crasso individualismo aludido por Hobbes?

            “Nosso mundo é insano e corrupto, não importa o ângulo de visão”, pronunciou Hugo Mann, personagem do romance Cabeça de Papel, escrito pelo jornalista Paulo Francis em 1977. Contra esse niilismo a que somos irremediavelmente levados, a única saída e solução que o escritor encontra é o de escrever. Como pontificou o poeta conterrâneo Carlos Drummond de Andrade em “Noite na Repartição”, da obra Rosa do Povo, de 1945, “Escreve romances, relatórios, cartas de suicídio, exposição de motivos, mas escreve. Não te rendas ao inimigo. Escreve memórias”. E é o que faz Chaves, um dos escritores mais versáteis e prolíficos em atuação, seguindo uma velha tradição mineira de gerar incessantemente, no ventre de suas igrejas coloniais barrocas, de seus casarões históricos e montanhas minerais, estirpes e mais estirpes de escritores e artistas de todo gênero da mais alta qualidade e capacidade inventiva. “A única forma de suportar a existência é mergulhar na literatura como numa orgia perpétua”, apologizava Gustave Flaubert.

            Que não pensem os leitores que esta dose extra de pessimismo de minha parte, como forma de provocar e atiçar contrapontos dialéticos, perpassa as reminiscências autobiográficas de Chaves, um positivista por excelência que acredita na ressurreição e na redenção da espécie humana. Cabe esclarecer também que ele se define como um saudosista sim, porém moderno, que não esconde a satisfação de quem afinal diariamente galga passos firmes sempre à frente em direção à superação do passado e celebra o presente como ponto inaugural de revivescência desse mesmo passado. Do início ao fim do livro, o leitor subentende o tempo todo este velho axioma, imortalizado na voz de Ataulfo Alves, e aqui transmutado: Éramos felizes e sabíamos!

            Observação final antes de mergulhar no livro: E se alguém que viveu na mesma época e lugar porventura discordar do que conta Chaves, lembre-se do que costuma dizer o ator Lima Duarte: “Pro mineiro não importa o fato, importa a versão”.

            Boa leitura!

 * Cláudio Tsuyoshi Suenaga

Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

 

 

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