HOME | ZINESFERA| BLOG ZINE| EDITORIAL| ESPORTES| ENTREVISTAS| ITAÚNA| J.A. FONSECA| PEPE MUSIC| UFOVIA| AEROVIA| ASTROVIA

 

Página de Marcelo Sguassábia em Via Fanzine

 

Todos os textos:

Por Marcelo Sguassábia*

De Campinas-SP

Para Via Fanzine

© Direitos Reservados

Clique aqui para acessar o arquivo de Marcelo Sguassábia (2008)

Clique aqui para acessar o arquivo de Marcelo Sguassábia (2009)

Clique aqui para acessar o arquivo de Marcelo Sguassábia (2010/2011)

 

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário e colunista de diversos jornais e revistas eletrônicas.

É colaborador de Via Fanzine.

   Seu blog: Consoantes reticentes. E-mail: msguassabia@yahoo.com.br.

 

 

 

Holocausto geriátrico

 

O inevitável bate à porta: o efeito INSS chega aos fundos privados de previdência e pensão. E é preciso deixar claro que o nosso não é exceção à regra.

 

Caso não ocorra uma mortandade maciça de beneficiários em curtíssimo prazo, o sistema entra em colapso. A lógica é aritmeticamente implacável: os recursos da base contributiva não chegam a cobrir um terço dos benefícios pagos, e isso inviabiliza qualquer mecanismo previdenciário. Se fizéssemos parte de órgão público, tudo bem. Na falta de dinheiro, o governo – municipal, estadual ou federal – viria para acudir o rombo, logo tampado com novas alíquotas nas tabelas de impostos e outras manobras emergenciais.

 

Não é esse o nosso caso, e temos que nos virar do jeito que pudermos para que o aumento da expectativa de vida não leve o nosso fundo de previdência prematuramente à morte.

 

Algumas alternativas se mostram bastante promissoras. Sob o pretexto de transformar os “pés-na-cova” em “geração saúde”, podemos expor os velhinhos a riscos consideráveis de irem dessa para melhor. Se de cada dez tentativas, pelo menos duas forem convertidas em óbito, ganharíamos uma sobrevida de aproximadamente seis meses para que possamos planejar com mais calma novos e bem-sucedidos massacres geriátricos.

 

A esse esforço mobilizador temos que acrescentar toda a nossa criatividade. É preciso mexer com a vaidade dos velhotes, com argumentos do tipo: “mostre para o seu parceiro de damas que o seu negócio é trilha” (não aquela de tabuleiro, mas a de lama, bichos peçonhentos e caminhos radicais, cheios de buracos e perigos). Já para as meninas beirando os noventa, uma boa estratégia seria uma campanha com o mote “troque o tricô pela tatoo”, na qual milhares de lotes de agulhas infectadas promoveriam o saneamento das nossas contas – se é que entendem o que quero dizer.

 

Thomas Malthus pregava o controle da natalidade como forma de salvar o mundo da escassez de recursos, mas a redenção de fato está no descontrole da mortalidade. É triste, mas é real. Competições de rapel com mosquetões defeituosos, ônibus de turismo com freios sabotados, teleféricos com cabos rompidos, maioneses com salmonela servidas em bailões da terceira idade são algumas das muitas iniciativas que de imediato devem ser implementadas.

 

Entretanto, é preciso tomar cuidado com extermínios de grandes proporções. A ocorrência de vários deles simultaneamente pode chamar a atenção da imprensa ou alertar os órgãos reguladores do setor securitário, o que certamente nos trará sérios problemas na esfera jurídica. Precisamos agendar as tragédias região por região, de tal maneira que, perante a opinião pública, a estratégia seja entendida como fatalidade.

 

Feliz 2013 a todos!

 

*  *  *

 

O Dedé

 

Foi revendo “Forrest Gump” que lembrei do Dedé, o sumido porém inesquecível Dedé. Estava ao seu lado no cinema, na época do lançamento do filme, quando num rompante inspiradíssimo ele lavrou a versão tupiniquim da filosofia do anti-herói americano: “A vida é como uma empadinha de rodoviária: a gente nunca sabe o que vai encontrar”.

 

Nada do que o Dedé dissesse era levado a sério. Por mais sérios que fossem seus enunciados e máximas.

 

Consta que foi por volta de 1978 que o Dedé cismou que o tempo estava passando mais rápido. Alardeava aos quatro ventos a singular constatação, dispunha-se a chamar a comunidade científica pra comprovar por A+B a sua tese. Tinha toda uma teoria, amparada por equações complicadíssimas, cálculos quânticos e dízimas periódicas. Porém, mais rápido ou não, o tempo passou e a coisa ficou por isso mesmo.

 

Uma figura, o Dedé. Pelo seu jeitão aloprado, muitos o chamavam de Lelé. Que maldade.

 

Líder nato, amava palavras de ordem e gritos de guerra. Adivinha, no colégio, quem era o presidente do grêmio, o chefe da fanfarra, o representante de classe, o orador da turma? Lógico, o Dedé. Na faculdade, estampava e vendia nos intervalos das aulas camisetas do Che, da plantinha de Cannabis e contra o imperialismo ianque.

 

Se havia alguém perito em arrumar uma confusão, esse alguém era o Dedé. Sem querer, espalhava boatos e insultos difamantes, semeando a discórdia por onde passasse. Aprontava todas e, quando o tempo fechava, escafedia-se em meio à turba se estapeando. O Dedé sumia com a leveza e a rapidez de um ninja. Aquele monte de amigos batendo e apanhando por causa dele, e ele lá, rindo e guardando distância segura do quiproquó.

 

O Dedé era também um diletante gastronômico, e suas panelas assistiam às combinações mais esdrúxulas – macarrão doce, sorvete de queijo com cobertura de azeite de oliva e polvilhado com orégano, pato ao molho de fanta uva.

 

São muitas as recordações. Devia ter umas duas semanas de casado, praticamente ainda em lua de mel, e quem me aparece em casa, de mala e cuia? Adivinhou de novo, leitor: o Dedé. Disse que ia ficar só uns dias. E uns dias, para o Dedé, eram muitos. Mais exatamente, 94.

 

Assaltava a geladeira sem cerimônia nenhuma, esparramava-se no sofá da sala para ver televisão e urinava com a porta do banheiro aberta.

 

O ecletismo era sua marca registrada no âmbito profissional. Chegou a gerenciar simultaneamente um bingo para a terceira idade, um serviço de telemensagem e um quiosque de tapioca.

 

Há cerca de dois anos, aconteceu aquela que seria a grande guinada de sua vida. Com a pompa que a circunstância exigia, abriu as portas do “Hair Fashion by Dedé”. Portas que foram fechadas antes mesmo da tesoura de cabeleireiro cortar a fita inaugural, por não ter sido expedido o alvará da prefeitura. Nunca testemunhei tão retumbante fracasso. Mais de 150 convivas, entre autoridades, convidados e representantes da imprensa local, degustando sidra vagabunda e assistindo o fiscal lacrar o natimorto salão de beleza.

 

O sucesso do Dedé com as mulheres era inversamente proporcional à sua desenvoltura como empreendedor. Tinha todas as que punha em sua alça de mira. Incluindo a filha de um promotor de justiça, com a qual chegou a noivar e a quem dedicou uma canção de relativo sucesso na época, finalista de um festival em Santa Rita do Passa Quatro e terceiro lugar num outro em Ijuí.

 

Não obstante essas heroicas conquistas, o pai da moça se opunha ao relacionamento, subestimando seus feitos e julgando-o indigno da filha.

 

Afrontado e ávido por um revide, Dedé foi à luta e um mês mais tarde esfregou na cara do promotor uma medalhinha de menção honrosa no 12º PIC – Piraporinha in Concert, e o cheque de R$ 75,00 a que fez jus.

 

Convertido a uma seita pentecostal, passou a levar uma vida regrada e produzia, em sociedade com um cunhado, pesos de porta com grandes figuras bíblicas, como Maomé, Isaac e Matuzalém. Mas foi à bancarrota ao ter um contêiner de Isaacs devolvidos. O comprador alegou que os Isaaquinhos rechados de areia trajavam suspensórios, artefatos que ainda não estavam em voga naqueles idos distantes.

Assim era o Dedé. Esse ser que não existe.

 

*  *  *

 

Revolução de isopor

 

Antes de mais nada, agradeço a presença de toda a diretoria do shopping a esta convocação extraordinária.

 

Bem, indo direto ao assunto: por meio de pesquisas, detectamos que mais de 90% dos homens odeiam aquilo que 100% das mulheres adoram: experimentar roupas. Para eles, é tortura chinesa entrar e sair de loja, e dentro de cada loja entrar e sair do provador, e dentro de cada provador entrar e sair de ternos, jaquetas, camisas, calças, sapatos… fora isso tem aquela vendedora excessivamente prestativa, em geral comissionada, que fica atrás da cortina perguntando a toda hora se ficou bom. Se não ficou, sem problemas – ela já está a postos com outras nove peças na mão, prontinhas para entrar e sair da máscula carcaça.

 

Diante dessa constatação surgiu a ideia, que motivou essa nossa reunião. O negócio funcionaria da seguinte forma: o sujeito vem até o shopping, tira a roupa em uma sala reservada e é escaneado em 3 dimensões. A partir disso um software faz todos os cálculos e cria virtualmente um clone do físico da pessoa. Os dados são transferidos para uma máquina modeladora – que irá produzir um manequim em isopor do macho em questão. Todo o processo não leva mais que dez minutos.

 

Finalizado o boneco, nossos funcionários saem batendo perna pelo shopping procurando os itens solicitados pelo cliente, de acordo com a predileção por marca, cor, numeração, estilo, etc. Encontrando em alguma loja um produto que tenha a cara do nosso amigo, o funcionário põe no boneco e vê se ficou bom. Se sim, nosso cliente é avisado por celular que na loja tal, por tantos reais, tem uma calça x que cai com perfeição no corpo dele. A foto do produto vai junto, e o sujeito só tem que aprovar ou não a compra.

 

Logicamente que alguns itens ficam fora do serviço. Roupas íntimas, por exemplo. Os lojistas não deixariam experimentar, ainda que o boneco seja de isopor. Com óculos a coisa também não funciona, pois são milhares de armações disponíveis. Além do mais, o rosto não será detalhado no processo de escaneamento, por uma questão de privacidade. Vai que algum credor da pessoa de carne e osso reconhece o seu modelo de poliestireno e resolve atrapalhar a compra ou esquartejar o boneco? O mesmo pode acontecer com um oficial de justiça ou até com alguém da polícia que esteja no encalço de um eventual consumidor foragido… Então, decidimos que o rosto da estátua terá aquela feição padrão de manequim de butique, para não termos problemas.

 

Enquanto isso o contratante do serviço fica no cinema, toma um chopp ou aproveita para comer um negócio – ele só não pode comer ou beber muito, sob pena do boneco de isopor, ao final da compra, não corresponder mais à silhueta do original.

 

Resumindo: ao mesmo tempo em que a gente tem a chance de empurrar mais produtos no cliente, ele segue consumindo na praça de alimentação e nos setores de entretenimento. Isso não é um diferencial, é uma revolução mercadológica! No início, podemos causar estranheza e até alguma rejeição, com os nossos funcionários andando pra baixo e pra cima com os bonecos de isopor debaixo do braço. Porém, com o tempo, a conveniência vai vencer a resistência. Podem ter certeza.

 

Bom, em linhas gerais, é esse o projeto. Perguntas? Dúvidas?

 

*  *  *

 

 

Lindos coros natalinos

 

Foi no 201 do Bloco C. Os vizinhos não souberam dizer o que ocorreu de fato antes do grito fatal, nem o que motivou a briga. Ao fim de barulhenta surra, a vulga Eglantina Vinte Arrobas vazou um dos olhos de Amadeu com o osso da sorte do frango da ceia. Pelo menos é isso o que consta no boletim de ocorrência.

 

Eram doze garotinhos, todos em vermelho e branco. Vermelhos de sangue e brancos de medo, alguns deles também roxos de hematomas. Gritavam alto, e à medida que o faziam eram separados em dois grupos: contraltos e sopranos, para cantarem na missa do galo.

 

Blitz de rotina. Fizeram sinal para parar o trenó. Uma pedra de crack no bolso acetinado do Noel de loja. Sem tempo para explicações: motorista e renas detidos para averiguação. Na cela, comitê de boas vindas: pau no bom velhinho. Em seguida, salmoura e rabanada amanhecida.

 

Nem precisava abrir o pacote para adivinhar o que era. Um cinto, de novo. Claro, tem sido assim desde o Natal de nem sei quando. De courvin, preto, seis furos. Fivela quadradinha, sem detalhes. As mãos tremeram. O sangue subiu à cabeça. "Não vai experimentar?". Experimentou. O cinto cantou na carne, antes que abrissem a sidra.

 

*  *  *

 

Anacrônica

 

Outro dia um colega de trabalho me mostrou um programinha que ele tinha acabado de baixar da internet: um simulador de barulho de máquina de escrever. Acionado o software, bastava ligar as caixinhas de som e, ao digitar no teclado, saíam ruídos que imitavam o tec-tec da dita cuja. Com o requinte de poder escolher entre vários modelos de máquina. Para cada modelo um som diferente, cópia fiel do original. O mais engraçado é que se ia escrevendo e, ao chegar o fim da linha, tinha aquele barulhão do carro da máquina voltando.

 

Retornei ao meu lugar e à época em que se datilografava ao invés de digitar. Tinha uns 12 ou 13 anos quando meu pai me matriculou num curso de datilografia da Escola Remington, do Seu Mario Sundfeld. Guardo até hoje o certificado de conclusão – passei com 9. Lembro direitinho do primeiro exercício, só com a mão esquerda: asdf asdf asdf – quatro ou cinco linhas da mesma seqüência, para o aluno memorizar a localização das teclas. Para boa conservação do equipamento, era bom passar o limpa-tipos de vez em quando – uma espécie de borrachinha que, pressionada como um chiclete nos tipos da máquina, ia tirando os resíduos de pó e de tinta que se acumulavam nas letras e tornavam os caracteres ilegíveis.

 

Quando a gente xxxxxxx errava alguma coisa no xxxx que estava escrevendo, ou resolvia substiutir uma xxxxxxxxxx palavra por outra, o texto ficava cheio de xxxxxxxx. Ou então se usava o corretivo, também chamado de branquinho, utilizado por muitos para fins bem menos nobres. Hoje, o processo de gestação do texto não deixa rastro. Os originais já nascem insípidos e imaculados. Tudo se deleta, se remove, se inverte, sem rabisco e rasura. É o fim do lixo cheio de papel amassado.

 

Uma máquina de escrever era o que se poderia chamar de “bem durável”, com direito a plaquinha de patrimônio. Objeto de ciúme e estimação, inspirava respeito. Era um monolito encravado na mesa do escritório. Muita gente ganhava uma na formatura do ginásio e ficava com ela até se aposentar. A pessoa, porque a máquina, nem pensar. Quanto mais se batucava mais a bichinha ia amaciando o teclado, ficando mais sensível ao toque e aos caprichos do dono. Tinha valor, atravessava gerações, ficava de herança. Já pensou hoje um computador ser arrolado em inventário? Por mais moderno que seja, daqui a uns meses não valerá mais nada – não suportará a versão 11.2 do Word, os novos recursos do Excel e a interface amigável do próximo Windows. Para que os programas continuem rodando satisfatoriamente, será preciso providenciar mais 4 pentes de memória, um processador mais potente, um hd de 100 gigas e 6 entradas USB. Aí o técnico em informática dirá a você que talvez seja melhor e mais em conta trocar de uma vez a CPU ao invés fazer as atualizações.

 

Em contrapartida, o que a minha boa e velha Hermes portátil me pede? Quando muito uma fitinha nova a cada dois anos. E olha que maus tratos é que não faltaram nesse tempo todo em que está comigo. Quanta migalha de bolacha e cinza de cigarro já deixei cair em cima dela. Poderia entornar uma ceia de Natal inteira sobre a coitada, com leitoa e tudo, que ela continuaria firme. Já o teclado do computador, se pingar uma gotinha de refrigerante, pode esquecer. Curto nos circuitos, falha geral de sistema, adeus aos dados não salvos.

 

Preço não é desculpa pra que você deixe de satisfazer esse excêntrico sonho de consumo. Por 100, 150 reais dá pra comprar uma maquininha bem razoável nas poucas oficinas de manutenção remanescentes. De quarta ou quinta mão, mas em perfeito estado de funcionamento – revisada e garantida. Mesmo que não seja pra usar, mas pra sentir o gostinho (ou o cheirinho) de ter uma. Sim, porque as máquinas de escrever têm um cheiro peculiar, de metal e óleo lubrificante. Todas cheiram assim. Exceto as que estão no ferro-velho.

 

NOTA: esta crônica foi gerada em ambiente Windows XP, no editor de texto Word 2003, salva em disco rígido, copiada em CD e finalmente passada a limpo numa Hermes Baby cor de abóbora, fabricada em 1979.

 

*  *  *

 

Autossuficiência

 

 

Ele mantém sua própria horta e um pomar variado, com galhos que vergam ao peso dos frutos.

 

Segue à risca a recomendação nutricional de consumir frutas, verduras e legumes crus, para extrair o máximo de suas vitaminas, proteínas, fibras e sais minerais.

 

Por só comer alimentos in natura, não precisa de gás de cozinha. A água quente para os banhos de inverno é providenciada com um ou outro toco de lenha e uma caixa de fósforos (que dura décadas, tão poucos são os dias frios).

 

A horta e o pomar são adubados com o seu excremento, o que a muitos pode parecer uma indireta e bucólica forma de autofagia.

 

Faz uma hora e meia por dia de bicicleta ergométrica, ligada a um acumulador de energia. A força gerada pelas pedaladas produz eletricidade mais do que suficiente para que funcionem luzes, chuveiro e eletrodomésticos da casa.

 

O ganho de saúde com a bicicleta mantém sua boa disposição e o livra de idas ao médico, mensalidades de planos de saúde e despesas com remédios.

 

Uma nascente de água quase na divisa da propriedade supre suas necessidades potáveis e movimenta um monjolo que faz fubá, em tempos de milho, e farinha, quando é época de mandioca.

 

Não tem carro, porque a rigor não é requisitado em lugar algum, sob hipótese nenhuma, já que não depende de ninguém e ninguém dá pela sua falta.

 

O Imposto Territorial Rural, de valor ínfimo, é pago anualmente com o excedente do fubá e da farinha de mandioca, vendido aos vizinhos. É a única ocasião em que suja as mãos pegando em dinheiro. Mas logo livra-se dele na boca do caixa, ao recolher o tributo.

 

Entretanto, não é um ermitão das cavernas: tem computador e passa boa parte do tempo, entre as cruas refeições, conectado à internet através de sinal roubado de outro sitiante. Escreve mas não imprime, para não precisar de papel.

 

Recita preces à Nossa Senhora e tem domicílio eleitoral em outra cidade, para poder justificar ao invés de votar. Voto, só de castidade. Do qual não se queixa, mas que, se fosse o caso, poderia resolver a questão solitariamente com a vasta oferta online.

 

Na safra de manga, ao menos três caminhões médios abarrotados de fruta são permutados por algumas demãos de tinta nos beirais e calhas da casa. De forma que conserva sempre em bom estado a rústica vivenda de tijolo à vista, tão vistosa que já rendeu a ele generosas ofertas de compra e de casamento. A todas recusa, solenemente. A quem insiste, argumenta que se basta com sua ótima companhia.

 

Quando chegar a sua hora, não quer macular seu currículo e precisar recorrer, finalmente, a alguém. Para isso, providenciou um alçapão bem ao lado da cama, para que possa se jogar no buraco cavado abaixo do assoalho assim que perceber que o coração está prestes a dar sua última batida.

 

Qualquer cagada no circuito autossustentável acima descrito é muitíssimo bem aproveitada, pois serve de adubo extra para a horta e o pomar citados na primeira linha.

 

*  *  *

 

Duña pede a palavra

 

Duña, o oráculo mór, guardião dos segredos das moléculas e dos vitrais das basílicas, dá novamente o ar da graça. E, sem mais delongas, desova mais uma pílula de sabedoria universal, para regozijo e deleite dos mortais. Segue a íntegra do breve pronunciamento, feito da janela de um busão da Cometa, na quinta-feira passada, quando este fez uma rápida parada na rodoviária de Poço Fundo, MG.

 

Não existe a mínima lógica em ser ateu. Por mais que eles, os ateus, batam no peito alegando uma suposta racionalidade em seu argumento (só posso acreditar naquilo que posso provar), desacreditar em Deus é o cúmulo do irracionalismo. E irracionalismo presunçoso.

 

Observem a formiga. O homem a julga insignificante – não sem razão, é fato, se comparada ao gigantismo físico e intelectual de um ser humano. Caso uma delas saísse de seu formigueiro e ganhasse as praças proclamando a inexistência de Deus, cairia no descrédito e na chacota da opinião pública pela nulidade de seu cérebro, e consequentemente de seu raciocínio.

 

Contudo, meus mamíferos seguidores, é necessário lembrar que a cachola do homo sapiens é apenas alguns centímetros quadrados maior que a das citadas rastejantes. Há fortes evidências de que somos nós, os homens, as formigas de um plano de vida superior ao nosso, uma mega-Terra habitada por seres com crânios do tamanho da cidade de Ribeirão Preto e até maiores, dependendo do caso.

 

Ora, tais seres se esborrachariam de rir se nos ouvissem decretando a inexistência de um Criador, já que na perspectiva deles somos reles insetos. Por sua vez eles, os gigantes, seriam insetos de um plano absurdamente maior e mais evoluído. E assim sucessivamente, como aquelas bonecas russas que vão cabendo umas nas outras.

 

Assim, caros ajuntadores de dinheiro e excretores de urina, recomendo um pouco mais de humildade em assuntos metafísicos. Entre crer e não crer, em nome de Deus, creiam”.

 

Como a parada na rodoviária era de apenas dez minutos, Mestre Duña deu por finda sua preleção e pôs-se a mastigar um risoles de palmito, gentilmente oferecido por um de seus fiéis discípulos.

 

*  *  *

 

 

Para o papa, em mãos

 

Se der tudo certo conforme planejei, meu filho lhe entregou este bilhete dizendo tratar-se de um pedido de oração meu – sua mãe. Desculpe o pequeno pecado, Santo Papa, mas isso é mentira. Tive que mentir para ele a fim de que esta minha súplica chegasse às suas piedosas mãos.

 

Sei que, como membro oficial da guarda do Vaticano, ele está aí para tomar conta de Sua Santidade, mas peço que Sua Santidade também tome conta do meu menino. Zelo com zelo se paga. Se puder recrutá-lo apenas para os afazeres domésticos e menos arriscados, seria para mim um alívio e uma forma de aumentar seus créditos junto ao Todo Poderoso. Montando guarda na porta de seus aposentos, por exemplo. Ou trocando a água da sua moringa, mexendo seu cafezinho, escovando suas próteses dentárias, sei lá.

 

Tendo o senhor a influência que tem, penso que preces em favor dele serão muito bem-vindas. Assim, pelo pé-chato que o atormenta desde tenra idade, peço que reze um rosário todo os dias. Pelo medo que tem do escuro, talvez uma Ave-Maria e um Pai Nosso sejam eficazes e providenciais. Pelas frieiras, especialmente nos dias quentes e propícios à disseminação de fungos nos pés, o Santo Padre poderia interceder com uma Salve Rainha, quem sabe um Credo, o que acha?

 

Quando faz a barba, é frequente acontecer de encravar um pelo próximo à costeleta esquerda, o que o aborrece muitíssimo e o debilita a ponto de meter-se o dia todo debaixo das cobertas ou necessitar de uns cafunés de Tia Frida, a madrinha de batismo dele que mora em Berna. Estando a tia tão distante, não sei como ele vai reagir numa eventual crise… o senhor compreende minha aflição?

 

Sua guarda, estimado Papa, tem 110 membros, e fazer do meu filho o seu protegido é um ato de caridade cristã. O senhor dispõe de outros 109 marmanjos para pegar no pesado, pode muito bem me quebrar essa.

 

Penso também que alguns outros detalhes ajudariam para que meu filho mantenha-se em condições de combate. Esse uniforme multicolorido de bobo-da-corte, que Michelangelo criou para não sei que Papa em momento de inspiração duvidosa, é ideal para que se apanhe um vento encanado, que pode muito bem se transformar em pneumonia. Seria muita ousadia de minha parte sugerir uma armadura, ou pelo menos algo não tão vaporoso? Para defender os outros, um soldado que se preza tem que estar bem protegido, concorda?

 

Meu menino também não pode com o sereno, e durante o dia seria prudente que evitasse o sol mais forte. O período entre sete e nove e meia da manhã parece o ideal para o seu turno de trabalho, evitando desidratação e exposição excessiva aos raios UV.

 

Bem, sem querer abusar da sua bondade e já abusando, tenho uma outra solicitação à Sua Santidade. Há pouco mencionei sobre a frieira – mal incurável e atroz, que judia impiedosamente do meu primogênito. Soube que, na quinta-feira santa, é o Papa quem escolhe as pessoas que participarão da cerimônia de Lava-Pés. Por favor, seja benevolente e escolha meu menino, lavando seus pezinhos com sabonete e água misturada com bicarbonato e vinagre. Em seguida, enxugue-os bem e evite beijá-los como costuma fazer, para evitar propagação de bactérias.

 

Muito obrigado, Santo Padre. Vida longa ao seu pontificado.

 

 *  *  *

Novas regras do jogo

 

Está causando alvoroço no setor de informática a recente determinação da presidência da república de obrigar a nacionalização temática de todos os videogames e games para computador. Para quem desconhece a medida provisória, a mesma estabelece que, no prazo de seis meses, os jogos eletrônicos terão de ter seus personagens e enredos adaptados para o contexto do folclore brasileiro e suas lendas.

 

Ao justificar a medida, a presidência apóia-se no argumento de que as nossas crianças e adolescentes, debruçando-se sobre seus consoles com heróis e vilões estrangeiros, acabam por esquecer completamente o rico elenco de figuras do nosso folclore – hoje relegadas a pequenos comentários nos livros didáticos do Ensino Fundamental.

 

Atenta ao prazo final determinado pela nova lei e buscando antecipar-se à observância das regras, a EA – Electronic Arts promete para as próximas semanas o lançamento do Cuca Soccer, com os maiores craques do mundo devidamente metamorfoseados com cabeças e caudas de jacaré. Já a Sega trabalha na substituição do porco-espinho Sonic pela Mula sem Cabeça, mudando também os cenários das diferentes fases do jogo para a amazônia, o pantanal matogrossense, as serras gaúchas e a chapada diamantina.

 

Microsoft e Sony optaram por entrar com recurso contra a medida provisória, por entenderem que a mesma acarretará uma vertiginosa queda nas vendas e no interesse do público pelos produtos adaptados. Os dois fabricantes atentam ainda para o fato de que o leque de personagens lendários brasileiros não é tão extenso, o que acabaria por restringir o número de títulos nas prateleiras e a criatividade dos desenvolvedores. “Ficamos limitados basicamente ao Boitatá, ao Saci Pererê, ao Neguinho do Pastoreio, ao Curupira e às já citadas Cuca e Mula sem Cabeça”.

 

Outro problema levantado está na adequação entre personalidade das lendas e as  características dos jogos. “Como vamos substituir, no caso da Fórmula 1, o Fernando Alonso pelo Boitatá? Ele me parece um tanto lento para o cockpit, não acha?”, argumenta o gerente de engenharia da Microsoft, empresa que produz o XBox.

 

Há dificuldades de ordem técnica praticamente incontornáveis. A notória deficiência física do Saci Pererê tornará impossível a adaptação do lendário afro-descendente ao Mortal Kombat, ao Street Fighter e a outros jogos de luta. Ele teria necessariamente que perder todas as pelejas que disputasse, o que tornaria o game previsível e sem atrativos. No entanto, alternativas vêm sendo discutidas para contornar o problema. Uma delas é fazer do Curupira o adversário do Saci, o que tornaria a disputa mais equilibrada, já que o dito cujo também é deficiente físico (tem os pés voltados para dentro, com os calcanhares para a frente e os dedos para trás).

 

Enquanto isso, sabe-se que a Pelopidinhas Advogados Associados já entrou com uma ação judicial em nome dos herdeiros do Curupira, que reivindicam royalties sobre o uso de imagem de seu célebre antepassado. Tais royalties corresponderiam a 3%das vendas dos novos cartuchos e DVDs, independentemente do fato do Curupira ser ou não o personagem principal do jogo. A fim de ganhar força na disputa judicial – que em casos dessa natureza tende a se arrastar por décadas, a família do Curupira cogita entrar com uma ação conjunta com os descendentes do Negrinho do Pastoreio. Já a viúva do Saci e as oito sobrinhas da Cuca anunciaram sua intenção de ceder definitivamente os direitos aos fabricantes de games mediante o pagamento de 1.680 salários mínimos a cada uma delas.

*  *  *

 

Respondendo à sua pergunta

 

- Com todas essas denúncias comprovadas, o senhor ainda tem esperança de escapar livre?

 

- Pois é, a palavra é essa: livre. Se eu não tivesse lutado o que lutei contra a ditadura, não haveria imprensa livre. Nem você estaria me perguntando isso agora, seu moço. Me diz uma coisa, quantos anos você tem?

 

- Trinta e quatro.

 

- Então, olha só, você nem tinha nascido e eu já enfrentava a polícia e quem mais aparecesse pela frente pra que no futuro você pudesse crescer numa democracia, exercendo seus direitos de cidadão. Viu, seu ingrato?…

 

- O senhor não respondeu o que eu lhe perguntei.

 

- Não estou fugindo da pergunta, não. Você é que é muito insolente em levantar o que quer que seja contra a minha trajetória honrada. O que eu quero dizer é que o povo brasileiro tem essa dívida comigo. Eu mereço ficar livre porque nos anos de chumbo eu arrisquei minha própria vida pela liberdade. Meus torturadores foram anistiados, então é justo que se passe uma borracha sobre possíveis erros meus. Mas esse não é o caso, porque eu nada fiz de errado.

 

- Como o senhor explica as movimentações de dinheiro, o banco envolvido no esquema, as provas contundentes de corrupção ativa, os depoimentos todos…

 

- Eu caí numa trama sórdida, criada por gente inescrupulosa que não se conforma em não ter entrado para a história deste país como eu bravamente entrei. Gente com o apoio dos poderosos de sempre, que colocam seu arsenal midiático a serviço da calúnia e da infâmia.

 

- E as malas de dinheiro? E as contas no exterior? E os aumentos patrimoniais sem justificativa?

 

- Isso é tudo baboseira, intriga, joguinho rasteiro que não vai manchar meu nome de jeito nenhum, seu aprendiz de assistente de foca! Por que você não me pergunta sobre a melhor distribuição de renda, o aumento do poder aquisitivo da classe D, os investimentos nas casas populares e nas creches? Heim, heim? Por que não pergunta o que interessa de verdade pro povão?

 

- Consta que o senhor é um dos 1800 homens mais ricos do mundo. De duas uma: ou pegar em armas para combater os militares lhe rendeu muito dinheiro no passado ou o senhor recebeu uma fabulosa herança de família.

 

- A minha família é a nação brasileira. A ela devo tudo e por ela pautei todos esses anos a serviço da coisa pública.

 

- Mas…

 

- E chega de mas, mas, mas, meu amigo. Não tem nada nem ninguém que vai me meter medo não, seu frangote. Nem tanque de guerra conseguiu passar por cima de mim, fique sabendo.

 

- Nossa equipe de reportagem investigou e descobriu uma conta na Suíça cuja titularidade é o seu nome escrito ao contrário. O senhor confirma mais essa evidência de bandidagem?

 

- Ah, olha só, é você mesmo quem está me inocentando! Essa é a maior prova de que o meu nome é contrário a tudo isso. Você, que me acusa, agora está me dando um atestado de idoneidade. O povo brasileiro não é bobo, está vendo o quanto sou inocente e o quanto fui injustiçado!

 

- O cinismo do senhor é repulsivo… temos imagens de câmeras de segurança do congresso flagrando o senhor colocando maços e mais maços de dinheiro em bolsos de 25 deputados, numa única sessão, cinco dias antes de estourar o escândalo.

 

- Como vocês são maldosos… eu posso e faço questão de explicar o ocorrido. É que o sobrinho de um amigo, que trabalha no setor que gera a folha de pagamentos da Câmara, estava de licença médica e pediu pra que eu lhe fizesse a gentileza de pagar o salário dos deputados em dinheiro, entende? Pronto, foi só isso. A gente quer ajudar e acaba se estrepando…

 

*  *  *

 

Gut, o gênio

 

Farto de interfaces, conectores, entradas disso e saídas daquilo, o imberbe Jo-Jo Gut, nascido Johannes Gutenberg, promete por fim às invencionices estéreis de Zuckerberg, Gates e outros tolos informáticos que pensam ter concebido produtos e sistemas de alguma relevância para a humanidade.

 

Tímido, recluso e humilde como todos os gênios de verdade, o alemãozinho Gutenberg, mais conhecido como #gut no twitter, criou algo realmente revolucionário. Uma espécie de tábua que imprime textos e imagens diretamente sobre papel, sem necessidade do computador e de periféricos como impressora, scanner, cabos USB, discos graváveis, cartões de memória e outros mecanismos dispendiosos que interligam a plataforma em que se trabalha ao resultado final.

 

Analisando o processo atual – e insuportavelmente arcaico – de geração de um arquivo, vemos o quanto representa essa evolução. Observe os passos necessários para que se produza qualquer coisa utilizando os retrógrados recursos de que hoje dispomos:

 

- Ligar o estabilizador;

- Acionar o filtro de linha;

- Inicializar o computador;

- Fazer a varredura do antivírus e proceder à sua atualização via web;

- Gerar o texto em um programa editor;

- Gerar imagem em outro programa separado para depois juntá-la ao texto, numa sequência composta de diagramação e editoração;

- Uma vez pronto, salvar o arquivo – se possível providenciando um backup para o mesmo;

- Ligar a impressora e aguardar até que esteja pronta, verificando antes a alimentação de papel e tinta;

- Dar o comando de imprimir.

Agora, o genial atalho do Gutão:

- Prancha coberta de tinta e prensada sobre papel branco. Só, mais nada.

Nesses nossos tempos atrasados, os gadgets sem fio e de operação remota proliferam como ratões do banhado. Mimos caríssimos e de serventia duvidosa, que entram no mercado de consumo já pré-programados para que se tornem obsoletos em menos de três meses. E somos coagidos a levar debaixo do braço uma ou mais dessas horrendas traquitanas para que possamos nos comunicar, nos expressar, trabalhar e nos divertir.

 

Chamam a isso de mobilidade. Mas a mobilidade que rompe paradigmas é aquela que o visionário Gutenberg nos presenteia, através dos tipos móveis. Com o simples toque dos dedos, qualquer criança vai mudando as letrinhas da prancha e formando palavras e textos, a seu bel prazer. Quando impresso o trabalho – repito, sem nenhum equipamento complexo, que exija programas ou aplicativos – , as mesmas letrinhas são reorganizadas a fim de formarem uma mensagem diferente, de maneira lúdica, interativa e descomplicada.

 

Em entrevista recente, Gut profetiza o fim das redes sociais nos velhos e desgastados moldes que as tornaram populares – com avatares de pixels, perfis mentirosos, amigos que não se conhecem e outros barbarismos dos tempos das cavernas. Diz ele: “Literalmente, é hora dessa conexão cair e do ser humano perceber o quanto é estreito aquilo que denominamos banda larga. É chegada a hora e a vez da imprensa, do contato real e direto, que aproxime os homens dos seus semelhantes”. Em seguida, passou uma mão de tinta na sua tábua, prensou sobre uma folha de papel e exibiu aos jornalistas a mensagem: “O futuro começa agora”.

 

 

*  *  *

 

Big Bad

 

“The Clock Tower”, a torre que abriga o Big Ben, agora chama-se “Elizabeth Tower” – em homenagem aos 60 anos de reinado da Rainha Elizabeth. Talvez isso explique o fato da torre ter entortado26 centímetros do dia para a noite. É como se o prédio estivesse se curvando em reverência à monarca, demonstrando seu respeito e gratidão pela fama conquistada. Porém, estando fora do eixo, fica a pergunta: conseguirá o Big Ben manter a histórica pontualidade, com o mecanismo do relógio penso para um dos lados? Que credibilidade terá o mais célebre dos marcadores de horas daqui pra frente, com seus ponteiros vacilantes e nada confiáveis?

 

O solo argiloso das margens do Tâmisa, as obras do metrô abaixo do parlamento britânico e falhas estruturais da construção, de 1858, são possíveis causas apontadas para o fenômeno. Não acredito em nenhuma delas, e tenho motivos para formular minha particular teoria da conspiração.

 

Creiam-me: há uma escavação em progresso nos seus pilares subterrâneos, capitaneada pelo Príncipe Harry e com o apoio logístico da Al-Qaeda. O plano é simples e maquiavélico. O buraco que irá deixar a torre sem sustentação prossegue sendo cavado em ritmo lento, madrugada após madrugada, pelos terroristas infiltrados como manobristas de estacionamento da Câmara dos Lordes, e assim continuará a empreitada até a morte da rainha, provavelmente por causas naturais.

 

Uma vez morta a figura máxima da Dinastia Windsor, o processo de escavação do alicerce será interrompido, para colocação de algumas toneladas de dinamite no lugar da terra retirada. Aproximando-se o cortejo fúnebre da Abadia de Westminster, onde certamente Elizabeth será enterrada, o perverso Harry, a uma distância segura tanto da torre quanto da igreja, ordenará via walk-talk a derrubada do monumento no exato instante em que passarem perto dele os Príncipes Charles e William, que antecedem Harry na linha de sucessão.

 

A rainha estará duplamente morta, William e Charles fora do páreo pelo trono e boa parte do primeiro e do segundo escalões da família real também estará dizimada, o que fará de Harry o legítimo rei – sem nenhuma possibilidade de contestação. Em seguida, começarão as investigações para apurar as responsabilidades pelo atentado. O novo rei descumprirá o combinado com a Al Qaeda e entregará para a polícia inglesa, através de denúncias anônimas, todos os terroristas envolvidos no imbroglio. Amaldiçoados pela mídia e pela opinião pública, contarão toda a verdade mas cairão no descrédito ao tentarem difamar Harry, o agora enlutado e solitário habitante de Buckingham.

 

*  *  *

 

Vida de Santo

 

Engana-se quem pensa que vida de santo é um infinito dolce far niente. Nem ao mais preguiçoso deles é dada a graça de ficar chupando chicabon eternidade afora. E aquele estereótipo de se recostar em nuvens, entre cânticos e cítaras, é mais coisa de anjo que de santo – e anjo de quadro barroco, idealizado e fora de contexto histórico.

 

Santo passa maus bocados, verdade seja dita. E nem por isso os devotos lhes tratam com o devido respeito, o respeito que o santo, justamente por ser santo, exige.

 

Por exemplo, esse estranho hábito terráqueo de entornar no mínimo 10% da cachaça no chão da venda, dizendo que é pro santo. Posso dizer com certeza que todos eles abrem mão da homenagem e passam muito bem sem ela. Se gostasse mesmo de água que passarinho não bebe, santo não seria santo. Muito pelo contrário.

 

Depois, tem outra: manda a Justiça Divina que, toda vez que se oferece algo pro santo, e não se especifica pra qual santo é o presente, a oferenda seja repartida por todos indistintamente. Vai daí que cada gole oferecido é dividido, em partes iguais, para a santosfera inteira. Sabendo-se que os santos são atualmente milhares, a cada um cabe geralmente uma gotinha de nada – e não é isso que vai desviar a santaiada do bom caminho. Até aí, nada de mais. Mas acontece que se a gente levar em conta que cada pinguço manda pra goela pelo menos uns três copos da marvada, e que só no Brasil temos milhões de alcoólatras, o estrago divino é grande, provocando em vários deles internações frequentes – quando não diárias. E as mais prejudicadas são as santas, que com um tiquinho de martini já estão trançando as pernas.

 

Outro problema sério são as imagens dos santos – tanto as pintadas quanto as esculpidas. Tem santo lá em cima que excomunga sem dó alguns dos displicentes artistas terrenos, pela falta de semelhança deles com as imagens que os representam. Esse tipo de episódio produz verdadeiras catástrofes estéticas. Outro dia mesmo toda a corte celeste saiu em passeata, com cartazes, faixas e gritos de guerra, protestando contra um lote de 250 estátuas de Santa Edwiges que saiu de fábrica com cara de Rita Cadilac. Um repulsivo sacrilégio, que merece punição exemplar. Para evitar novos contratempos, São Tomé propôs em assembleia a instituição do selo “Ver para Crer”, que certifica a imagem beatificamente reconhecida, ou seja, aquela que tem a benção do respectivo santo e que guarda nítida semelhança com a sua figura dos tempos de carne e osso.

 

Além desse tipo de desrespeito, há também injustiças que agridem e irritam a turma de auréola. A maldosa e irônica expressão “Na descida todo santo ajuda” vem merecendo, de uns tempos para cá, um revide da parte dos ofendidos. Julgam eles que a frase denota uma certa acomodação, dando a entender que os santos têm braço curto e que não se empenham nas tarefas mais difíceis, onde só um milagre pode resolver a parada. “Não vamos ajudar mais na descida, ainda que o carro do sujeito esteja sem freio. Pois que se espatifem, aprendam a lição e vão para o inferno” desabafa um conhecido santo, que não quis se identificar.

 

*  *  *

 

Catedral submersa

  

Devaneio ao som de La Cathédrale Engloutie, de Claude Debussy.

 

A verdade é que a lenda de lenda não tinha nada, pois juro sobre a Bíblia que vi a catedral engolida pelas águas, com suas ogivas góticas, seus altares e seus dezesseis sinos mudos há séculos.

 

Ali jaz, até que razoavelmente conservado, o sacerdote de então. Ia com a missa pela metade, já que a história nos dá conta que estava na homilia quando as águas o calaram.

 

E foi-se de estômago cheio, pois regalou-se na véspera com iguarias da Irlanda e vinhos da Normandia, trazidos por um fiel recém-chegado do velho mundo. Apesar do desencarne com o apetite satisfeito, trazia a testa franzida, como se advertisse os fiéis do dia do juízo final.

 

Não muito longe da batina, pequenos peixes iam e vinham virando as páginas de um missal, com fecho folhado a ouro. Confessionários de ponta-cabeça, tomados por corais, bailavam sem gravidade, levando de vez em quando trombadas de tubarões.

 

Um caco de vitral, do quinto mistério do rosário, prendia na areia a conta de água do mês. Paga após o vencimento, com multa e juros de mora.

 

*  *  *

 

Mc Lua Infeliz

 

- Sabe de uma coisa, Ray, você até que é um cara esperto. O seu defeito é pensar pequeno, e um sujeito com 52 anos não tem mais tempo de errar na vida. Aonde pensa que vai chegar com esse sanduichinho de dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola e picles no pão com gergelim? Pretende mesmo pagar a faculdade dos seus filhos com isso?

 

- Meta-se com o seu foguete que eu sei o que estou fazendo. Um dia, milhares de manés californianos, metidos a inventores como você, tentarão copiar a minha receita e não conseguirão fazer igual. Pode apostar.

 

- Bom, igual não vai ficar mesmo. Ruim assim, vai ser difícil. Por que não abraça um projeto maior, com alguma chance de futuro, meu caro? A corrida espacial está só engatinhando, e temos literalmente um universo de possibilidades para explorar. O primeiro desafio é a lua, e os engenheiros da Nasa certamente vão cair de quatro com o projeto do meu foguete. Olha só a maquete... não é linda?? Mal posso esperar a hora de vê-lo rasgando o céu.

 

- Lançamento por lançamento, fico com o meu em terra firme. Melhor uma McOferta na mão que dois foguetes voando.

 

- É, amigo, vejo que um abismo nos separa. Minha ambição está nas estrelas, e a sua numa chapa quente e cheia de gordura. Triste.

 

- Pois fique sabendo que seus astronautas levarão Big Macs desidratados a bordo para comerem na viagem. Isso se conseguirem sair vivos da plataforma de lançamento, porque é bem capaz da sua geringonça explodir antes do fim da contagem regressiva.

 

- Pense bem, homem. Hamburguerias e sanduíches como esse que você imagina eu conheço dezenas só aqui em San Bernardino. E com belas mocinhas de pernas de fora, que andam de patins servindo os carros, o que não é o caso da sua modesta baiuca. E esse nome, então, McDonald's? Diga-me qual o sentido disso? Seu nome é Ray Kroc, caramba. Você poderia ao menos batizar seu "come-e-morre" de Kroc's Burger, lembra comida crocante, não é mesmo? Se bem que, para ser bem sincero, esses seus hambúrgueres mais parecem umas borrachas com gosto de sabão de coco. Jamais permitiria que algum dos meus astronautas se aproximassem dessa gororoba insossa. Eu teria que abortar a missão em consequência de diarréia coletiva.

 

- Bom, em primeiro lugar você precisa achar quem queira se aventurar nessa lunática empreitada, pra depois se preocupar com uma improvável disenteria, não acha? Meus ingredientes serão todos selecionados, de fornecedores exclusivos. Particularmente, confio muito mais nos automovinhos de plástico que vou distribuir de brinde com o Mc Lanche Feliz do que na performance do seu foguete espacial.

 

- Você é mesmo um caso perdido, Ray. Se me permite um último palpite, essa mistura de sanduíche com batata frita não vai dar certo...

 

Hoje, uma das mais controvertidas teorias da conspiração sustenta que o homem nunca foi à lua e que tudo foi armado em um estúdio fotográfico chinfrim pelo governo americano. Por outro lado, se fossem dispostos em fila, os Big Macs vendidos até agora no mundo somariam várias vezes a distância da Terra à lua.

 

*  *  *

 

Liquidificador Jetmaster Superturbo 3 velocidades

 

O fato é que John Boy Walton mal conseguia disfarçar seu entusiasmo com algumas das partes palpáveis de Tetê, aquela que sabia demais e não viu que o tempo passou, ainda que continuasse em ótima forma dentro do seu biquíni de bolinha amarelinha.

 

Há tempos os comunistas deixaram de ser uma ameaça, de maneira que compra-se uma Rural Willys zero quilômetro nos revendedores autorizados com apenas alguns ordenados ganhos – contanto que esse ordenado seja de piloto da Panair, de delegado de polícia ou de funcionário de carreira do Banco do Brasil.

 

O Rio, às três da tarde de sexta, está no mínimo duas doses de cuba-libre abaixo do que seria desejável, e confesso a você que não vejo inconveniência alguma em reservar uns cruzeiros novos para o casaco do Mappin.

 

Se te interessar fala com a irmã do Pedro, o falsificador de carteirinhas, ela trabalha lá e te dará uma atenção especial. Eu posso jurar que vi um dos dedos do Redentor se mexendo.

 

Por falar em dedos, não me parece crível a sua nota final do curso de datilografia. Minha velocidade é de 60 palavras por minuto e ninguém da turma, nem passando graxa nos mãos, conseguiria me alcançar em condições normais de temperatura e pressão.

 

Mas deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem, até porque no momento um girassol da cor dos seus cabelos inventou de brotar do centro das terras de Jerônimo, o herói do sertão, para pousar nos ombros gelados do robô. Você sabe, aquele para sempre perdido no espaço e que passa todo dia antes do John Boy. Ok, cambio? Então boa noite, Mary Helen.

 

*  *  *

 

O melhor da fila é esperar por ela

 

Deu na “Folha”: paulistano às vezes passa mais tempo na fila do que no programa que a originou. É tanto tempo que ela própria virou o passeio. As duas horas em média de fila no restaurante acabam sendo até mais cobiçadas e proveitosas que as próximas duas de esbórnia. Petisca-se e birita-se na faixa, paquera-se, twita-se, lê-se, medita-se, enfim…

 

Como dizem os americanos, no pain, no gain. No caso, sem espera não tem graça. Só que tem cada vez menos pain no processo, com os mimos e agrados que os donos da casa servem para amenizar a demora e o desconforto em pé. Digo em pé, mas até isso está mudando. Tem atração que oferece banquinho, mesa, cadeira e sabe-se lá mais o que para fidelizar a clientela.

E a fila, quem diria, de ritual enfadonho virou objeto de desejo.

 

********

 

- E aí, faz muito tempo que tá aqui na fila?

- Umas três horinhas, mas passou tão rápido. Daqui a pouco já chega a minha vez de sair. Mas até que deu pra aproveitar bastante. Sábado que vem tem mais, se Deus quiser.

- Olha lá o espertinho, quer voltar pro fim da fila de novo… é o fim do mundo, só aqui no Brasil mesmo.

- Pois é, onde é que está a polícia nessas horas?

 

********

 

- Moço, eu vou ser obrigada a entrar um pouco aí no restaurante pra comer alguma coisinha, mas não queria perder o meu lugar aqui. Tem jeito de você guardar a minha vaga? Volto rapidinho, juro…

 

********

 

- Eu não sei onde é que a gente vai parar desse jeito.

- Porque tá falando isso?

- Tá vendo aquela outra fila, lá no outro quarteirão? Então, é a fila pra entrar na fila. Tem até cambista por lá. E vou te dizer uma coisa, deve ter fila de cambista antes dela…

- O garçon, o garçon, aproveita aí!

- Black Label, senhor?

- Pô, mas é só essa porcaria que você sabe servir? Deixa de miséria e me traz aí um Buchanan’s 18 anos Special Reserve com duas pedras de gelo.

 

********

 

- Ai, meu Santo Expedito, já tá chegando a nossa vez.

- É a vida, bem. Nem tudo são flores, tem sempre a hora do sacrifício.

- Que pena, amor. Me sinto na fila pra câmara de gás num campo de concentração nazista. Não entro de jeito nenhum. Não, não e não!

- Já sei, vamos armar um cirquinho, inventar alguma coisa. Finge que tá tentando falar no hospital, fala que a sua tia está nas últimas, e vai deixando os outros passarem na frente. Vai, chora aí, arranca os cabelos que eu ajudo a explicar a história pro pessoal. E assim a gente vai enrolando até umas três da tarde, que é quando fecha o restaurante e distribuem as senhas pra entrar na fila amanhã de novo.

 

 

********

 

“Vendo pela melhor oferta lugar na fila do Massimo, Famiglia Mancini, Figueira Rubaiyat e Dom. Tratar direto com proprietário”.

 

“Realize o sonho da fila própria. Financiamento em até 20 anos pela Caixa, sem comprovação de renda”.

 

“José Bianconte de Sousa Lemonzzito recebeu esta mensagem e encaminhou para seus amigos. Em menos de 24 horas, sua caixa postal estava abarrotada de senhas para filas as mais diversas. Não quebre esta corrente: passe adiante e veja o que acontece”.

 

*   *  *

 

Por onde andará?

 

Rara é a semana em que não me abordam na rua para perguntar sobre o paradeiro de Ditinho Puxa-Uma-Perna, figura que já foi assunto de crônica minha no final de 2009.

 

Levando em conta o apelido do Dito cujo, é óbvio que o seu paradeiro não pode estar muito longe, mesmo tendo-se passado três longos anos desde a última vez que o avistei, engraxando o sapato da outra perna. A baixa velocidade média com que se locomove e sua aversão a táxis, ônibus, metrôs e caronas, certamente não o levariam a Cingapura e adjacências. Mas o que me intriga nessa história é indagarem a mim por notícias dele, logo eu que não sou de sua família nem nunca fui propriamente chegado à sua pessoa.

 

É sabido que conseguiu livrar sua tradicional fábrica de gatilhos da concordata no ano de 2010, fase em que andou frequentando assiduamente o santuário de Duña, o oráculo dos oráculos, em busca de luz para o breu empresarial em que estava metido. Daí em diante, por onde andou Puxa-Uma-Perna para mim é uma incógnita. Na verdade, Puxa sempre prezou a sua notória habilidade de esconder-se do mundo quando queria ou se fazia necessário, e não é impossível que esteja neste momento zombando daqueles que o procuram, amoitado em algum porão de mercearia.

 

Entretanto, do pouco que conheço do sumido manquitola, arriscaria supor que talvez tenha se aproveitado das vagas que as empresas destinam às pessoas com necessidades especiais e se estabelecido como atendente de telemarketing na indústria de adubos de um camarada seu de Mato Grosso, conhecido no pantanal como BB, ou Basílio Bocó.

 

Outra hipótese bastante plausível é que tenha aberto um posto avançado do santuário de Mestre Duña em alguma cidade aqui da região, já que parecia realmente grande o entrosamento entre ambos. Essa possibilidade ganha força pelo fato de Ditinho possuir uma boa reserva financeira obtida por herança de seu saudoso pai - o não menos popular Jovelino Arranca-Toco, que fez relativa fortuna no setor de terraplenagem e certamente legou a Puxa-Uma-Perna quantia suficiente para um empreendimento desse porte.

 

Repito, porém, que estas são apenas conjecturas, já que o nosso apaga-pegadas sempre foi um sujeito de comportamento irritadiço e imprevisível. Morto não deve estar, pois notícia ruim corre rápido. Ainda que o defunto, no caso, fosse o bom, velho e sempre vagaroso Puxa, figura folclórica da terra e merecedor de nome de rua. Quem sabe de escola pública, pracinha de bairro ou até mesmo posto de saúde. No mínimo, no mínimo, uma clínica de fisioterapia.

 

*  *  *

 

Universo Paralelo

 

Naqueles dias, o fake do Todo-Poderoso botou as manguinhas de fora e resolveu criar seu universo genérico, plano que acalentava há tempos. Pode-se argumentar que o termo “Universo”, significando “todo, inteiro”, não poderia comportar uma outra versão, qualquer que fosse ela, sob pena do vocábulo cair em descrédito. Mas não é a essa questão etimológica que vamos nos ater, pelo menos neste despretensioso relato.

 

Após um longo espreguiçamento, o godzinho de araque estalou os dedos, escovou os dentes, juntou todo o seu ímpeto empreendedor e partiu cheio de vontade para a intrincada missão. Começou concebendo o firmamento, que depois de ficar pronto demonstrou não ser firme o suficiente. Sim, amigos. O firmamento apresentava sérios e incontornáveis problemas de encaixe, não se fixava corretamente sobre o espaço infinito e jamais passaria pelo menos rigoroso dos controles de qualidade. Eram ainda visíveis rachaduras de natureza estrutural, evidenciando erros básicos de cálculo.

 

Nosso criador do mercado paralelo não se deixou abalar por esse primeiro contratempo e pôs-se a fazer as estrelas, tarefa que o manteve entretido por umas dezesseis longas horas, que teriam sido bem gastas se a empreitada chegasse a bom termo. Mas qual não foi sua surpresa ao constatar que todas elas nasceram cadentes (ou decadentes, como queiram), já que não paravam no já citado bambo firmamento.

 

É claro que o planeta Terra recebeu especial atenção do fake, que demonstrava o mesmo e incansável empenho em tudo o que executasse, desde o protótipo do abridor de latas até o ciclo das marés. Passou noites e mais noites em claro tentando dar forma ao cavalo de três orelhas e à rosa de pétalas não-despetaláveis (qualidade que, segundo ele, aumentaria em muito a vida útil das mesmas). Todavia, quanto mais tentava implementar aperfeiçoamentos às coisas do universo mais quebrava a cara em seu intento, revelando-se um verdadeiro trapalhão ao trocar as cores das verduras e legumes do tradicional verde para o vermelho, o azul e o rosa-choque, buscando com essa mudança despertar o interesse e a gula das crianças.

 

As anomalias de fabricação foram se perpetrando em série, como numa linha defeituosa de montagem. Feita também nas coxas, a água materializou-se na forma de H3O, trazendo com isso inconvenientes vários – dentre eles o mais básico e catastrófico, ou seja, o de não matar a sede em hipótese alguma.

 

Ao contrário do Todo-Poderoso de verdade, o deus postiço prometia a vida eterna mas não tinha a menor ideia de como entregar a mercadoria. O paraíso para os bons ficava só na promessa, uma espécie de título do governo com resgate em data imprecisa. Um precatório celeste, para ser mais exato – o que gerou uma série de processos junto aos órgãos de defesa do consumidor da época, movidos por centenas de milhares de crédulos lesados.

 

*  *  *

 

Lições de Saturno

 

Há muito mais para se ver em Saturno além de seus estonteantes anéis. Tudo bem que flanar por eles, admirando seu colorido e sua plasticidade cósmica, é passeio obrigatório de qualquer ser humano em sua primeira viagem ao vizinho planeta. Os preços dos pacotes para lá, aliás, nunca estiveram tão convidativos. Mas a verdade é que os saturnianos têm muito a ensinar a nós, terráqueos, especialmente no que diz respeito à sustentabilidade coletiva.

 

A mesma lógica que tivemos ao conceber os edifícios de apartamentos, onde várias moradias se acomodam umas sobre as outras ocupando um só terreno, os saturnianos adaptaram às mais diversas aplicações cotidianas. E muito provavelmente a disposição dos seus anéis concêntricos e alinhados, dádiva natural do planeta, inspiraram as inovações ali implementadas.

 

É sabido que, embora muito maior que a Terra, Saturno padeceu durante milênios por problemas de espaço devido à alta densidade populacional. Mas a engenhosidade extra-terrestre criou prodígios estruturais capazes de intrigar nossos mais audazes inventores.

 

Para conhecer alguns deles, comece alugando um carro. Você verá que, mesmo na hora do rush, engarrafamentos inexistem. Para cada via expressa ou rodovia construída em terra firme (ou Saturno firme), eles empilham oito outras sobre ela. O resultado é um trânsito tranquilo, seguro e fluente, a ponto de algumas das pistas nem serem ocupadas totalmente pelos carros, o que faz a delícia dos satúrnicos teens e seus skates.

 

O sistema viário é um dentre muitos exemplos. Também a agricultura e a pecuária tiveram suas áreas multiplicadas por dez, vinte e até trinta, seguindo o mesmo princípio de empilhamento. Placas de solo especialmente formuladas para as lavouras e criações bovinas são produzidas da mesma forma que as nossas placas de grama, que cultivadas em viveiros são posteriormente transplantadas para seus lugares definitivos.

 

A diferença é que tais placas de solo possuem pelo menos 4 metros de espessura, para suportarem o enraizamento das plantas e também o trânsito de agricultores e tratores sobre elas, quando suspensas. Assim, sobre um mesmo espaço, temos uma área aproveitável dezenas de vezes maior – permitindo inclusive que culturas diferentes sejam lavradas simultaneamente, e tal diversidade é um ótimo negócio para o homem do campo de Saturno.

 

Entretanto, um problema ainda desafia os agrônomos siderais: algumas colheitadeiras, excessivamente pesadas, acabam por envergar e romper a placa de solo por onde passa, provocando um efeito-dominó sobre as placas abaixo dela. Árvores robustas e altas, como as sequóias, são utilizadas como colunas de sustentação entre um pavimento e outro. Ou seja, a concepção é totalmente ecológica e prioriza o aproveitamento da água: a rega do andar de cima, ao escorrer, faz as vezes da chuva para o andar de baixo e assim sucessivamente, até chegar ao solo propriamente dito.

 

Com estas e outras tecnologias, o bem-estar social é tamanho que Saturno vive hoje um Baby-Boom de ETzinhos. Templos religiosos, maternidades e cartórios de registro se empilham pelos quatro cantos do planeta para dar conta da demanda.

 

*  *  *

 

Pompeia, 10 minutos antes

 

- Senhores membros do Conselho da Municipalidade, não há verbas no orçamento para o aquecimento das piscinas públicas. Todos os recursos da prefeitura foram alocados na reforma das bigas dos arrecadadores de impostos, até porque sem impostos recolhidos pontualmente não teremos dinheiro para mais nada, nem mesmo para o necessário aquecimento das piscinas.

- Questiono a colocação do Secretário de Finanças e sugiro que coloquemos em pauta uma sindicância para apurar esse repentino esvaziamento de receitas.

 

- A insinuação do colega é de extrema gravidade e coloca em cheque a honra…

 

- Um de cada vez, por favor, ordem na casa…

- Se me dão licença, quero reiterar minha opinião de que podemos, com alguns poucos milhares de moedas, implementar o projeto do engenheiro Tenório de aquecimento de água a partir da alta temperatura dos gases exalados na cratera do Vesúvio.

- Bom, pelo menos para alguma coisa esse monstro adormecido pode servir. A ideia me agrada, e não vejo porque não implementá-la nos termos expostos no projeto de lei apresentado pela bancada situacionista. Além disso, lembro aos colegas de casa que a medida tem alcance popular e estamos há poucos meses das próximas eleições.

- Alguns meses é muito tempo, o povo esquece fácil. Temos que anunciar a obra bem à véspera do pleito, para fazer a novidade render votos. Imagino que todos aqui concordam com este raciocínio.

- Nosso partido não vai compactuar com esse conchavo imoral, a menos que sejam reabertas as negociações para os cargos de segundo escalão. Nossa sigla vai emperrar tudo, caso permaneçam inflexíveis.

 

Os dois minutos derradeiros

- Relaxe. Jamais seremos descobertos, minha doce vereadora, todo mundo já foi embora. Morre aqui com a gente esta gentil troca de favores.

- Por César, o que não temos que fazer em benefício da coisa pública!

- Se me permite o aparte, acho que o termo correto no caso seria “coisa púbica”.

- Ah, nobre representante do povo… já imaginou se entra alguém aqui agora?

- Confie em mim, só estamos nós dois no palácio. Espera aí, calma vereadora, devagar. Olha a mancha de batom na túnica…

- Esse seu vulcãozinho aí me parece mais extinto que o Vesúvio. Duvido que ele entre em erupção, ainda que lance mão de todo o arsenal erótico que tenho aqui na bolsa.

- Bom, tudo vai depender da habilidade da nobre colega de legislativo. Confio na sua capacidade empreendedora. Sinto que o chão treme quando a ilustre colega faz assim… Isso, continue.

- Que cheiro de enxofre, vereador, você está usando talco pra chulé?

- Inquestionavelmente, a vereadora sabe como quebrar o clima.

 

- Não me leve a mal não, coleguinha. É que o ar parece que está meio estra…

 

(…)

 

*  *  *

 

 

Escotilhas d’além seios

 

I

Os dados e projeções do relatório são válidos e consistentes, evidente que são. Preciso clarear um pouco mais o raciocínio para poder tomar uma decisão ponderada quanto às táticas de vendas, mas não consigo desviar os olhos das veias azuis dos seios dela. A verdade é que jamais imaginei que fabricar escotilhas pudesse abrir tantas portas, inclusive a dos encontros carnais e inconsequentes. O negócio vem superando as perspectivas mais otimistas, a ponto de haver desabastecimento em alguns nichos de alta demanda. Nem mesmo o recall que tivemos de fazer, para reparo em um imenso lote do modelo VY-340 com bolhas no vidro, conseguiu arranhar a boa imagem da nossa marca. Tanto que teremos de abortar nesse ano a tradicional campanha “Há quanto tempo você não troca sua escotilha?”, pois não estamos dando conta dos pedidos.

 

II

Para os humanos, úberes são demasiadamente parecidos. Mas o mesmo diria o boi a respeito de suas vacas? Teriam os úberes para o boi o mesmo e intenso mistério que os seios têm para o homem? Escotilhas abrem portas e escancaram seios. Eis-me aqui com um par deles, miúdos e muito bem torneados, roubando minha atenção do mundo e do mercado dos barcos e navios, seios que abrem suas velas e me levam, de jangada, a ilhas insuspeitas. Que bom momento, pousar a cabeça entre um e outro. Oferecimento, Escotilhas Humbeldt. Para quem quer navegar com estilo.

 

III

Champagne caiu e manchou a última página do relatorio. Culpa dela, a mulher da vez, doidinha por afagos. Meti os pés pelas mãos, danem-se as escotilhas nesse espreguiçamento a bombordo. Uma escotilha por habitante, a meta para 2015. Powerpoints e mais powerpoints de margens brutas e lucros líquidos. Alianças com programas sociais do governo para abastecer todo o Centro-Oeste com modelos adaptados às condições de navegação e às embarcações pantaneiras. Escotilhas para gays, cheias de adornos, rebuscadas e coloridas. A cada um sua escotilha, gênero de primeira necessidade, bem de consumo de massa.

 

IV

De volta aos seios, de auréolas que lembram escotilhas. Não, não estou levando assuntos do trabalho para o âmbito pessoal: é flagrante a semelhança entre uma coisa e outra. E quanto mais escotilhas Humbeldt singram as águas, mais pares de seios se oferecem a mim nessa cama de iate. Ao rei das escotilhas, todo o estoque mundial de tapetes de vison, todas as lagostas criadas em cativeiro de restaurantes estrelados, todas as intenções de sequestro. Chegando agora no notebook a proposta de um grande centro atacadista para vender escotilhas em fardos de 12 unidades, a preços promocionais. Darei uma resposta na segunda. Até lá estarei entretido com outras coisas.  

 

*  *  *

 

Ênio

 

Arrimo de família, o Ênio luta com dificuldade de dar pena. Esfola-se, o pobre, pra conseguir levar pra casa um quilo de acém ou de fraldinha de quando em quando pra misturar com a farofa. Mas nem sempre foi assim. Tempo houve em que o Ênio era notório esbanjador em questões monetárias. Época das vacas gordas, no funcionalismo público. E funcionalismo público, pelo menos naquele em que o Ênio “funcionava”, sabe como é: querendo ou não, o sujeito vai sendo atingido por promoções ao longo do tempo. Basta que não roube, não pegue dinheiro em troca de favores ou não dê vazão aos apelos da carne no ambiente da repartição. Eram os três únicos senões, mas ao terceiro o Ênio não resistiu – foi pego em escancarada bolinação com uma colega de trabalho, na mesa do superior imediato.

 

É bom que se diga que Ênio é apelido, ganho junto aos companheiros de bar. Antes da sem-vergonhice fatídica, foram 20 anos de ênios e mais ênios no histórico de bons serviços do camarada.

 

Explica-se: num período de 10 anos, por exemplo, desde que não tenha faltas injustificadas, o servidor empossado na mesma autarquia de Tarcísio Carlos (o verdadeiro nome do Ênio) fará jus a um decênio, incorporado regular e vitaliciamente ao salário. Só que um decênio traz com ele outros e numerosos ênios. Junto com o prêmio pela década de assiduidade, terá acumulado também 2 quinquênios, 3 triênios, 5 biênios e 10 anuênios. Aos 20 anos de serviço a coisa melhora um pouquinho: terá adicionado ao holerite um vintênio, dois decênios, 4 quinquênios, 6 triênios, 10 biênios e 20 anuênios. Uma verdadeira metralhadora de estatal generosidade, disparando benesses em progressão geométrica.

 

Ênio ria-se do apelido dado por seus amigos boêmios da iniciativa privada. E, se de certa forma sentia-se culpado em acumular tantos ênios sem méritos que os justificassem, também não se mexia para devolvê-los aos cofres públicos. Dessa forma, um triênio aqui virava um fogão de seis bocas e acendimento automático pra patroa; um deceniozinho ali virava intercâmbio no Marrocos para o seu caçula, e assim por diante.

 

Planejava gastar o vintênio recém-conquistado na compra de uma quitinete em bairro nobre da cidade, para fazer neném mais confortavelmente com a colega de trabalho. O escandaloso flagrante chegou para ruir o plano, mas não conseguiu derrubar o direito adquirido. O reforço de caixa chegou, mas ao invés de quitinete virou reserva financeira, que amenizou por algum tempo a nova e dura realidade do nosso incauto amigo.

 

Hoje, ele vive do milênio. Mais especificamente, trabalhando como lavador de calotas no Lava Rápido Terceiro Milênio – de propriedade do Saulo, antigo colega do Ênio, que soube juntar seus ênios sem meter a mão em cumbuca.

 

*  *  *

 

Me dá um autógrafo?

 

O maior colecionador de autógrafos da cidade de Antuérpia vivia, estranhamente para alguém de quem se esperaria hábitos de paparazzo, como um ermitão em sua casa de 4 cômodos – um deles reservado exclusivamente ao seu imenso acervo. Ao todo eram mais de cinco mil. Não autógrafos, mas categorias de. E estas eram cada vez mais específicas. Cantores, por exemplo, eram separados em canhotos e destros, loiros e morenos, acima e abaixo de1,70 m, com ou sem sinais evidentes de anomalias anatômicas, circuncidados ou não.

 

Uma das categorias mais bizarras era a de “Obstetras de Celebridades”, onde se elencavam o autógrafo do médico responsável pelo parto de Idi Amin Dada, o ditador facínora de Uganda, e o da parteira de James Dean, uma ruiva nascida no Estado de Massachusetts. Dizia ele que, na impossibilidade de conseguir o autógrafo de grandes personalidades, não menos significativo seria obter a assinatura daqueles que trouxeram tais figuras ao mundo, para o bem ou para o mal.

 

O fato de ser natural de Antuérpia, referência mundial na lapidação de diamantes, rendeu a ele o autógrafo do sobrinho-neto de Antoine Salisantè, assistente do lapidador que deu a forma final a um dos mais belos topázios de Elizabeth Taylor. A gema pode ser admirada em belíssimo colorido cinemascope nos vinte minutos finais do filme Cleópatra, estrelado pela atriz e grande sucesso do ano de 1963.

 

O terreno religioso reserva alguns dos mais preciosos exemplares da coleção. Como o de uma mulher, Genoveva, descendente da quadragésima nona geração de São Dimas – também conhecido como “O bom ladrão”, aquele criminoso crucificado ao lado de Jesus Cristo e que se converteu minutos antes do suspiro final. Outro autógrafo raríssimo é o do responsável pela emissão do atestado de óbito de Albino Luciani, o Papa João Paulo I, morto após 33 dias de pontificado em circunstâncias mais do que suspeitas.

 

Destaque especial merecem as categorias “Maquinistas de Trem” (223 autógrafos), “Mendigos” (397) e “Gandulas” – setor da coleção subdividido em “Gandulas de jogos terminados em empate”, “Gandulas de jogos terminados em cobranças de pênaltis” e “Gandulas de jogos televisionados pela RTP – Rádio e Televisão de Portugal”.

 

Sabe-se que o acervo ganhou importante incremento quando de uma exposição de Andy Warhol em Nova York, no início dos anos 70. Na ocasião, nosso incansável colecionador matou dezenas de notáveis coelhos com uma cajadada só, ao conseguir roubar o livro de visitas do evento. Nele constavam nomes de primeira grandeza, como John Lennon, Robert de Niro, Mario Puzo, Ted Turner e Muhammad Ali. As páginas com as assinaturas célebres foram cuidadosamente retalhadas com estilete; uma vez subtraídos todos os nomes que interessavam, e mais parecendo um queijo suíço, o livro foi devolvido aos organizadores da exposição.

 

No momento, dedica-se o nosso herói a buscar os autógrafos de James Watt, Alessandro Volta e André-Marie Ampère, vultos que emprestaram seus nomes ao universo da eletricidade, cunhando respectivamente os tão utilizados termos Watt, Volt e Ampère.

*  *  *

 

Amante Mantiqueira

 

O insondável que há por trás de tuas neblinas – uma interrogação que, mesmo fluida, é tão pesada como o ferro que produzes.

 

Do meio da escada rolante, na grande cidade cinza, galopo mentalmente nesse azul esverdeado que é todo teu, Mantiqueira. Vou me encardindo em teu musgo, devasso tua vastidão, perdidamente me encontro em teus cipós e veredas.

 

E já tão verde quanto és, me camuflo do mundo e me soldo contigo, no enlace fecundo entre o animal de mim e o vegetal de ti. Recolho no meu balaio lendas guardadas desde o Gênesis nas copas de tuas árvores.

 

Trazidos por uma aragem passam caboclos e curupiras, camafeus de sinhazinhas, rocas de negras velhas, ais de chibata e de gozo, a grande saga dos séculos que pudeste acompanhar.

 

Ouves agora o eco? É toda a tua quietude aos berros dentro de mim. Mais um pouco e o sol a pino vai mudando teus matizes e o canto de teus pássaros. Sobrevoo esses mares de morros que começam não sei onde para acabar sabe-se lá. Tuas termas de vulcões mortos, o enxofre a desprender dos teus ovários.

 

Reconheço minhas veias nos veios de tuas rochas. Me revelas calmamente teus segredos mais nativos: as Pratas de tuas Águas, as Caldas de teus Poços, teus Pinhais de Boa Vista. Me falas dos milhões de anos que levaste na feitura disso tudo. Da paciência que tiveste, do quanto que esperaste para me ver assim, sob feitiço.

 

Me contas histórias remotas, gravadas em xistos, calcários e granitos, num dialeto ancestral só partilhado por nós. Me inicias em teus saberes, me mostras picadas abertas por bandeirantes atrás do ouro das Gerais. Me escancaras as jazidas de teus minérios. Teus urânios, que enriquecidos te empobrecem. Tuas fontes radioativas, tão vítimas da cobiça extrativista. Me banhas como mãe em tuas cascatas, me ensinas que é por causa delas que teu nome é “Serra que Chora”, em tupi-guarani.

 

Mas o que me entregas é quase nada perto do que escondes. O insondável que há por trás de tuas neblinas – uma interrogação que, mesmo fluida, é tão pesada como o ferro que produzes. Porque és, Mantiqueira, quinhentos quilômetros de mistério. Guardas em tuas nascentes o código genético da Terra, sentes em teu manto o dedo de Tupã. Ele, que te esculpiu fêmea, de encostas insinuantes para seduzir os homens.

 

*  *  *

 

No center do shopping

 

Meus irmãos, as negociações da venda da fazenda para a construção do shopping entraram num impasse sem solução à vista. Ainda que a gente tenha metade da propriedade, o pai é dono dos outros 50%, e pra complicar ele ainda tem o usufruto da casa-sede.

 

O velho continua batendo o pé dizendo que não sai da casa de jeito nenhum, mesmo que tenha que desviar da fila do Mc Donald’s pra tirar leite das vacas.

 

Tentei argumentar dizendo que ele não iria aguentar a muvuca, o trânsito de carros pra cima e pra baixo, o barulho… O pai me respondeu aos berros, falando que o bisa, o vô, ele, nós e os nossos filhos nascemos todos naquela casa – e que ele, pelo menos, só saía de lá pro campo santo. Bateu a porta e se trancou no escritório, onde nos últimos tempos passa horas lustrando a cartucheira.

 

E o pior é que não tem jeito. Dentro da fazenda, a topografia ideal pra construir o shopping é bem na área onde está a casa. Além disso, mesmo se houvesse outro ponto pra fazer a obra, não daria visibilidade pra quem passa na estrada. O restante das terras seria pra construir estacionamento, depósitos, espaço para eventos, tratamento de esgoto, essas coisas.

 

Só que agora tem um fato novo: o pessoal da empreiteira parece que é tão louco quanto o velho e sugeriu deixar a casa onde está, construindo o shopping ao redor dela. Ele se chamaria “Casa Grande Supercenter” e a vivenda no centro dele seria apresentada à imprensa e aos lojistas como uma espécie de construção histórica preservada pela administração do empreendimento. Segundo os caras, isso daria um ganho de imagem, como se o shopping tivesse respeito pela cultura e pela tradição local – o que seria positivo perante a opinião pública. Ou seja, eles literalmente contornam o problema e ainda ficam de “bonzinhos” na história toda.

 

Só que não dá pra imaginar o pai morando lá e a cidade inteira passeando e fazendo compra em torno dele. Como é que ia ficar a privacidade do velho? A gente ia ter que tirar ele da casa de qualquer forma. Uma alternativa é deixar a coisa acontecer e esperar ele mesmo mudar de ideia, quando o shopping começar a funcionar. Provavelmente o povo lá da empreiteira trabalha com a possibilidade de vencer o velho pelo cansaço, depois que o monstrengo abrir as portas.

 

Agora, a questão financeira: se por acaso a gente ainda conseguir convencer o pai a sair e deixar os caras derrubarem a casa, eles pagam 150 reais por metro quadrado da fazenda. Multipliquem isso por cinquenta e dois alqueires, sendo que cada alqueire tem 24.000 metros. Vamos ficar todos milionários! Porém, se a casa e o velho ficarem, o máximo que eles pagam é 10 reais o metro.

 

Pergunto a vocês, meus irmãos: como é que saímos dessa? Acho que se a gente pedir 1000 reais por metro, os caras pagam – contanto, claro, que possam colocar a casa abaixo. Pensei em dopar o velho, misturando alguma merda no suco de graviola. Quando ele acordar no hospital, a gente diz que caiu um avião ou que jogaram uma bomba em cima da casa. O problema é que o pai não é bobo, ele vai ligar os fatos e pode querer descarregar a cartucheira em cima do pessoal da construtora… alguém tem ideia melhor?

 

*   *   *

 

31 de dezembro de 1999

(episódio quase autobiográfico)

 

Um dia de outono de 1981, último ano do colégio. Estava sentado na minha carteira, fingindo que não prestava atenção no pacto que ali, ao meu lado, se selava. Lá na frente, o professor de matemática falava para as paredes.

 

- Fica combinado, então. Nós cinco.

- Aconteça o que acontecer, tem que estar todo mundo lá.

- Tá tão longe isso, gente. Esse dia não vai chegar nunca, vocês não se tocam, não? Tanta coisa mais importante pra pensar... o vestibular, a faculdade. E depois tem outra, a gente vai continuar junto.

- Quem garante? Tudo pode mudar, de uma hora pra outra. Mais cedo ou mais tarde, vai cada um pra um canto.

- Tudo bem, só que até lá estaremos no século 21. De onde a gente estiver, vai bastar apertar um botãozinho e fazer o teletransporte para a pracinha. Tranquilo, pessoal.

- E se eu já tiver casado, com um monte de filhos...

- Não, não. Tem que vir sozinho.

- É, nada de família junto. Só a gente mesmo, esposa não é da turma.

- Que jeito, meu? Que mulher vai aceitar que você passe a virada do milênio com quatro barbados ao invés de ficar com a família? E quatro barbados carecas, porque até lá...

- Bom, por mim, tá feito.

- Eu também topo. Pode redigir uma ata e botar meu nome que eu assino.

 

Eles cinco, a panelinha inseparável, estavam tramando de se encontrarem à meia noite do dia 31 de dezembro de 1999, na praça do coreto. Passagem de ano, de década, de século e de milênio (não exatamente de século e de milênio, mas a data era emblemática). Dezenove anos depois. Eu não conseguia imaginar aquele reencontro. Era amigo dos cinco, mas não era exatamente da turma. Tanto que eles não me incluíram no pacto.

 

 

(Coloque aí na sua telinha um efeito especial de passagem de tempo. Velhas casas de família viram prédios. Os Corcéis, Opalas e Brasílias agora são Vectras, Fiestas e Golfs. A imagem em sépia fica colorida. E aparece aquele texto bem manjado no rodapé do vídeo: “19 anos depois”...)

 

Por nada nesse mundo eu poderia perder aquela cena. Queria assistir de longe, ver sem ser visto, estava de bicão naquela festa privê. Depois do encontro me juntaria a eles. A hora da virada chegou e me pegou sozinho ali na praça. Meia noite, nada. Meia noite e meia, nada. Ninguém apareceu. Só eu, a testemunha intrometida, o que não era pra estar lá. Decidi ficar mais uns cinco minutos, até dar uma da manhã e ter certeza de que não apareceria mesmo ninguém. Era horário de verão. Será que estava valendo o horário antigo? Se fosse assim a coisa tinha acontecido às onze da noite e talvez já tivessem ido embora. Foi quando surgiu um rapazinho, de jeans e camiseta branca, meio ofegante. Sentou-se num dos bancos, olhou para os lados, consultou o relógio, esperou. Os cabelos longos e lisos, os olhos amendoados, as pernas finas. Claro, era o Tavito. Em qualquer lugar do mundo o reconheceria.

 

Saí do meu posto de observação e fui até ele.

- Tavito!

-

Não era possível, o tempo não tinha passado pra ele. A mesma cara, nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. O Tavito me olhava com um jeito de quem não estava entendendo nada.

 

- Sou o filho dele. Meu pai morreu quando eu era criança. Deixou uma carta lacrada, que só deveria ser aberta ontem, dizendo que tinha um encontro marcado com seus melhores amigos hoje à meia noite, aqui nesta praça. Se por algum motivo ele não pudesse vir, eu deveria representá-lo. O senhor deve ser um deles...

 

Logo ele, o Tavito. Dos cinco, o mais descrente do pacto. O único a honrá-lo, mesmo morto.

 

- E os outros três, já foram?

 

Sentei ao seu lado e expliquei a história e minha condição de testemunha. Depois ficamos ali, madrugada adentro, à espera dos quatro ausentes. Uns fogos estouravam ao longe, carros passavam pela pracinha buzinando, grupos de branco iam em direção ao clube. Falei da linha do trem, que antes dele nascer cortava a cidade de fora a fora. Comentei como o pai dele era bom de natação, os campeonatos que ganhou, o sucesso que fazia com a mulherada. Os porres que tomamos, os aventais brancos que vestíamos na escola. Ele me contou do acidente de avião, do trauma da perda, do segundo casamento da mãe. Eu escutava, mas não ouvia. Divagava, vendo em sua boca os lábios do pai dele me sussurrando as respostas da prova de biologia.

 

*  *  *

 

Pequeno Steve

 

 Eram sempre graúdas, doces, se possível geladinhas. Tenras maçãs desde tenra idade.

- Incrível, Steve. Você nunca esquece. Um dia sem suas maçãs na minha mesa e meu ânimo não seria mais o mesmo. Mal devoro uma e já fico à espera da atualização.

- Que bom, professora. Acredito que toda pessoa precisa deixar sua marca no mundo, de alguma forma. Visível, presente. Garanto que esse pequeno gesto fará com que a senhora jamais esqueça de mim, ainda que a partir do semestre que vem nós nunca mais nos vejamos na vida.

- Você parece tão adulto e assertivo. Às vezes você me assusta, garoto. Mas é ao mesmo tempo tão infantil a ponto de não fazer nunca a lição de casa, e sinto que você faz isso – ou não faz isso – de caso pensado.

- Resposta certa, teacher. É que o caderno branco me parece perfeito. Gosto do branco, da coisa clean.

- Percebo que, enquanto estou lá na frente explicando a matéria, muitas vezes você fica o tempo todo olhando para as janelas…

- A professora não pode imaginar as ideias que elas já me deram. Mas prefiro não abrir minha boca, sob pena do Bill estar ouvindo atrás da porta e amanhã na hora do recreio sair dizendo pra todo mundo que a autoria é dele.

- Bill? O da primeira fila?

- Ele mesmo. Essa cara de escoteiro pode enganar a todos, menos a mim.

- Não fique assim, com o pé atrás. Acho que você está fazendo mau juízo, nunca vi William Gates colando na prova ou coisa parecida.

- Não me venha com essa, teacher. Tenho uma opinião muito bem formatada sobre Bill, e não há nada que você possa fazer a respeito. Estive em sua garagem no verão passado e pude ver de perto seus métodos, ok?

- Tá certo, mas vamos mudar de assunto. Isso que você chama de estojo também é algo muito peculiar. Fale-me sobre ele.

- Ah… gostou? Fica tudo mais à mão desse jeito. É uma espécie de arquivo zipado. Basta um toque aqui no zíper e tenho acesso a todos os recursos que preciso, onde quer que esteja. Melhor que deixar tudo jogado de qualquer jeito nestas enormes pastas escolares. No tempo que meus colegas perdem procurando suas coisas eu já fiz o que tinha que fazer.

- Mas acontece que você não faz o dever…

- É preciso que a senhora entenda que não gosto de fazer a tarefa, gosto de pensar no jeito mais fácil de executá-la. O que se vai colocar no caderno, na lousa, na prova, é consequência. Cada um fará do seu jeito, e eu prefiro abrir atalhos enquanto os outros andam em círculos.

- Sabe, Steve, eu poderia reprová-lo ou mandá-lo para a diretoria por insubordinação. Mas sinto que a insubordinada no caso seria eu, pela audácia de fazer o revolucionário Jobs repetir de ano. Prefiro que a história diga que eu fui a primeira pessoa a acreditar em suas ideias, por mais insanas que elas me pareçam no momento. Por favor, não me decepcione.

 

*  *  *

 

O cessar das sessões

 

Fiz análise durante um certo tempo, por motivo que não vem ao caso expor aqui. Esse certo tempo na verdade não chegou a 3 meses, o suficiente para que eu me desse alta – embora estivesse pior que no início das sessões. Bem pior, descrente da panacéia freudiana e de mim mesmo, me achando um caso perdido.

 

Era uma sessão semanal, às sextas e após o trabalho. Rua tranquila, lugar gostoso, consultório aconchegante. A iluminação indireta, só um abajur com uma lâmpada fraquinha. Sentia-me confortável com o chenile do divã e com a perspectiva de 50 longos minutos para um trato nos miolos. O único problema era justamente esse – os tais 50 minutos cravados eram longos demais. O que para os outros pacientes passava voando, para mim parecia todo o período paleozóico.

 

O analista seguia a linha ortodoxa, freudiano até a medula. E como todo discípulo empedernido do velho Sigmund, se agarrava aos sonhos, lapsos e associações livres pra ir formando o quebra-cabeças. Nesse caso, o monta-cabeças.

 

Mas o fato é que o homem não abria a boca. Se havia uma análise em curso naquelas quatro paredes só ele sabia, porque absolutamente não compartilhava com a outra parte interessada. Com receio de perguntar, eu também ficava quieto.

Tenho relativa facilidade de não pensar em nada, quando me é possível desfrutar dessa benção. Tanto que no começo achava bom ficar ali, como um acéfalo, os olhos pregados no teto. Só que tudo tem limite. O tempo passando, o taxímetro correndo e eu olhando aqueles certificados todos na parede. As letras góticas com o nome do doutor. A diferença de desenho do D de um diploma para o D de outro. Um em tinta dourada, outro em nanquim, o de graduação de 1972, o de especialização de 1977, o de mestrado de 1979…

 

Tomei a iniciativa:

- O senhor não vai dizer nada?

- Quem tem de falar é você.

- Mas vou falar o quê?

- A idéia é dizer o que primeiro vier à mente.

 

Dizer que eu estava pensando na letra gótica do diploma era demais. Ou de menos. Mas era a verdade, caramba. Eu pagando uma senhora grana para ficar viajando nas firulas e arabescos de um diploma.

 

Fechava os olhos e nada. Do nada branco passava para um nada negro e sem saída. E o analista impassível, virado de costas pra mim, cruzando e descruzando as pernas. Aquele silêncio era uma goteira dentro da solitária, uma furadeira de impacto me perfurando os tímpanos.

 

Outro pensamento recorrente, mas inconfessável naquelas circunstâncias: o que ele, analista, estaria pensando? Conjectura sobre o meu silêncio? Fica ali, caraminholando, empenhado em me livrar de minhas neuroses, ou não vê a hora de dar o tempo regulamentar pra pegar seu cineminha?

 

Me dei conta de que, além de estar pensando no que estava pensando, estava começando a pensar no que o analista estava pensando de mim. Racionalizava o processo, filtrava, censurava, estragava tudo.

 

E assim foi, não sei quantas vezes. Os brancos eram cada vez maiores. Vinte, trinta, quarenta minutos sem falar nada. O último deve ter durado uns quarenta e sete, porque logo depois ele me mandou embora.

 

Se bem me lembro, os três minutos finais foram mais ou menos assim:

 

- Fala alguma coisa, doutor. Não aguento mais esse silêncio.

Pela enésima vez, ele argumentou:

- A idéia é dizer o que primeiro vier à mente.

- Estava pensando na música que tocava no rádio enquanto vinha pra cá.

- E você gosta dessa música?

- Detesto.

- Certo. Que mais?

- Sei lá… o que me ocorre agora é que vou ter que comer um hambúrguer pra matar a fome quando sair daqui.

- Hum. Sei, sei.

E sentenciou, depois de longa pausa:

- Talvez o que você encontre aqui não lhe soe bem aos ouvidos, nem lhe caia bem no estômago.

Acertou na mosca. Pra mim bastava, meus fantasmas não eram tão assustadores assim. Encontraria formas mais econômicas de praticar meditação.

- Seus 50 minutos acabaram. Até sexta que vem.

- Até, doutor.

Tá lá me esperando, desde 1992.

*  *  *

 

A primeira maquete

 

- Eu quero que você me faça só a maquete, por enquanto.

- Tá certo, mas o senhor tem ideia do trabalho que isso vai dar? E se o projeto não for aprovado, já imaginou o tempo que eu vou perder? Meu negócio é carpintaria e marcenaria, essa história de maquete é servicinho de chinês, não é a minha praia.

- Mas não vai ter jeito, moço.  Quem encomendou o trabalho quer ter uma prévia pra ver se está tudo de acordo. Esse serviço é de muita responsabilidade. Eu diria até que o destino da humanidade depende dele.

- Sei não, acho que o senhor não regula bem da cabeça.

- Digamos que a minha sanidade mental não vem ao caso no momento…

- Mas espera um pouco, o que o senhor quer é uma arca ou um navio? Esse desenho que o senhor me trouxe parece mais um navio. Arca é como se fosse um baú, é pra organizar as tralhas dentro de casa. Ó só, tá aqui no pai dos burros: “Arca: caixa grande, geralmente de madeira, com tampa plana, usada para guardar roupas, objetos etc.”. Por falar em burro, tenho que fazer uma acomodação pra ele e sua burralda, não é mesmo?

- Sim, e pra todos os outros pares de bichos.

- E pra família inteira do senhor…

- É.

- O senhor me falou que tem que ter um casal de tudo quanto é bicho, insetos inclusive, certo? Pois o senhor vai ter problema com o casal de cupins. Primeiro pra saber qual é o macho e qual é a fêmea; segundo porque eles vão procriar dentro da arca e comer todo o madeiramento. Estou alertando agora porque de madeira eu entendo um bocado…

- Ok, meu amigo, mas eu preciso saber do prazo pra fazer a maquete…

- Por favor, me diga pelo menos o que o senhor quer fazer com isso.

- Não posso. Meu cliente me pediu sigilo absoluto sobre esse projeto.

- Mas que espécie de projeto é esse?

- Na verdade não é uma espécie de projeto, mas um projeto de todas as espécies.

- Hã??? Olha, quanto mais o senhor explica, mais eu não entendo nada.

- Deixa pra lá, eu preciso saber se você faz a maquete. Simples assim, meu amigo. Entendeu???

- Pelo tamanho do espaço reservado para o compartimento de comida, o senhor vai viajar com a bicharada uns quarenta dias, mais ou menos. Eu só queria saber como é que vai levar a embarcação até o rio ou o mar mais próximo… Nossa, tá muito mal contada essa história. Fora a confusão toda na cadeia alimentar. Se botar todo mundo junto, sem gaiola de separação, o senhor vai interferir no ciclo predatório. E bicho voador? Pomba, urubu, abelha, borboleta, vai ficar tudo voando misturado? Acho que o senhor faltou nessa aula de biologia, heim.

- Ai, ai, ai, dai-me paciência…

- Bom, pra começar o serviço eu vou precisar de um sinal…

(Trovão, raio)

- Tá bom esse sinal pra você?

- Que sinal? O senhor não me deu dinheiro nenhum por enquanto. E eu vou querer um bom adiantamento…

- Pelo amor de Deus, anda logo com isso. Tá começando a chuviscar… olha, esquece a maquete e parte logo pra arca, depois eu me acerto com o meu cliente. Você é enrolado demais, parece que não quer pegar o serviço.

- Não é isso, não. Pegar o serviço eu pego, mas se começar a chover o prazo de entrega muda. Sabe como é, tem que parar tudo, recolher as ferramentas, esperar a chuva passar…

*  *  *

 

Revanche dos suicidas

 

Assis Valente, aquele gênio nem sempre lembrado da MPB, era o ídolo e a inspiração deles. Tinha um quadro em lugar de destaque na sede da associação, da qual era patrono oficial.

 

Para quem não sabe, Assis Valente tentou suicídio em 1941, saltando do morro do Corcovado. Na queda, quicou na copa de uma árvore, frondosa o suficiente para amortecê-lo e livrá-lo do sono eterno. O ex-futuro morto teve que administrar o próprio chabu, que rendeu-lhe não mais que umas costelas quebradas.

 

Foi um caso único no até então 100% fatal cartão postal do Rio. Não bastasse ser uma figura conhecida na cena carioca de sua época, ganhou as páginas dos jornais no dia seguinte como o único sujeito a escapar da morte pulando do famoso morro. Viveu mais algum tempo, o suficiente para legar à humanidade mais algumas dezenas de obras-primas. Após nova empreitada cortando os pulsos, igualmente fracassada, partiu para a terceira tentativa em 1958 – esta certeira, ao pôr do sol na Praia do Russel, se contorcendo sob o efeito de um gole de guaraná batizado com formicida.

 

Como o autor de “Camisa Listada”, aqueles homens, ali reunidos, carregavam o infortúnio de terem tentado e não conseguido dar fim à existência. Dividiam o peso da humilhação suprema: retornar do gesto abominável com o rabo entre as pernas. Situação constrangedora. Não bastasse o fracasso na vida, tinham fracassado também na morte.

 

Era vergonha demais, precisavam lavar a desonra com sangue, mostrando aos amigos e parentes que não mudaram de ideia e não se acovardaram. Longe disso: eram duplamente corajosos para buscarem, outra vez, o tão sonhado paletó de madeira.

 

Naquela assembleia ordinária, deliberaram um revide à altura. E bota altura nisso: os 324 metros da Torre Eiffel. Partiriam em excursão para Paris, os 21 frustrados suicidas, e saltariam de algum ponto menos vigiado do monumento em 3 grupos de 7 – de mãos dadas e no melhor estilo “um, dois, três e já!”. Só não teriam muito tempo para ensaiar a coreografia macabra, sob risco de descobrirem e interceptarem o seu intento com o ostensivo esquema de segurança da torre.

 

Seria o primeiro suicídio sincronizado da história. Os saltos seriam filmados pelo guia turístico do grupo, também simpatizante da prática suicida mas ainda não suficientemente apto à derradeira atitude. A este caberia, ao fim do espetáculo, entregar a filmagem à imprensa, bem como os 21 envelopes com as últimas palavras dos herois aos remanescentes da raça humana.

 

Porém, o destino foi de novo caprichoso. Ao se afastar andando para trás, procurando um melhor ângulo para a foto, o guia acabou despencando sem querer, antes dos 21. Pronto: soou a sirene, a polícia foi acionada e a turma toda convocada para interrogatório, no inquérito para apurar a causa do acidente. Ficou adiada a revanche, e com ela a lavagem da honra.

*  *  *

 

Inventário de Wandu

 

Passada a consternação que assolou o país com o desaparecimento de um dos maiores nomes de nossa música, a família de Wandu deu entrada na tarde de ontem ao processo de inventário, para a partilha do patrimônio do artista.

 

Na busca por bens e direitos do falecido em cartórios e juntas comerciais, apurou-se que, além de proprietário de duas linhas de telefone celular e do título do Clube de Campo Apogeu da Paz, Wandu era sócio majoritário de uma obscura e deficitária fábrica de giz em Mairiporã, na Grande São Paulo, da qual lhe eram creditados mensalmente R$ 1.230,14 a título de pró-labore até o mês de julho de 2009, quando cessaram tais provimentos.

 

Familiares do cantor afirmam que sua decisão em associar-se à empresa deveu-se a dois fatores. O primeiro, a diversificação estratégica dos seus investimentos pessoais (como ele mesmo dizia, “é preciso colocar os ovos em várias cestas”). O segundo seria prover o fornecimento de gizes coloridos e de boa qualidade para uso exclusivo em suas turnês, já que Wandu tinha por hábito escrever com giz as letras de suas músicas no chão do palco, para que não se atrapalhasse nas apresentações.

 

Como é de conhecimento público, o finado mantinha em sua posse uma extensa coleção de peças íntimas femininas, em especial as vulgarmente chamadas “calcinhas”, que lhe eram arremessadas pelas fãs quando de suas apresentações Brasil e América Latina afora.

 

Contadas e catalogadas, as referidas peças somaram um total de 78.288.935 (setenta e oito milhões, duzentas e oitenta e oito mil, novecentas e trinta e cinco) unidades – de cores, formatos e modelos sortidos, algumas inclusive do tipo comestível.

 

Não havendo nenhum herdeiro legítimo ou requerente legalmente constituído que se habilitasse a ficar com o lote, o Estado determinou encaminhá-lo a instituições de caridade voltadas ao público feminino, de creches municipais a presídios federais, procedendo antes a uma triagem para separar as peças íntimas por faixas etárias: 0 a 7, 8 a 19, 20 a 48, 49 a 62, 63 em diante. O Ministério Público, no entanto, solicitou que do gigantesco montante fossem separados ao menos uns sete ou oito contêineres de calcinhas para doação a universidades e centros de pesquisa, por constituírem valioso material de estudo fúngico-bacteriológico pelas áreas de urologia e ginecologia.

 

Some-se a estes fatos a descoberta de um testamento, lavrado há cerca de três anos no 2º Cartório de Jacarezinho, que pode trazer novidades ao processo de divisão do espólio do cantor. Seu teor diz respeito especificamente ao bem de maior valor arrolado no inventário, ou seja, os direitos autorais da canção “Moça” – sucesso de 1975 executado até hoje nos mais distantes rincões deste país continente. Consta do documento que a citada “Moça” que dá título à composição existe de fato (ainda que, passado tanto tempo, poderia atualmente ser chamada “Velha”, isso se ainda estiver viva). O nome da dita cuja, seu RG, CPF e título eleitoral estão discriminados no testamento, sendo que a beneficiária deverá apresentar-se à justiça para que se proceda à aferição dos seus dados e lhe sejam concedidos os royalties doravante arrecadados pela obra.

 

*  *  *

 

Ensebado

 

Troco numa boa mil megastores de livros novos com cybercafés por um sebo mal arrumado e labirintuoso. Daqueles encravados nos centrões das metrópoles, com as paredes caindo aos pedaços como os volumes que abrigam. Até meados dos 80, nos sebos a gente só encontrava livros e revistas. Hoje tem vinis, CDs, fitas de vídeo e até DVDs. Muitos têm brinquedos usados, jogos de tabuleiro, vitrolas. Outros dividem espaço com brechó. Mas sempre sebos, honestos sebos, sem nenhum vendedor chato querendo te empurrar os últimos lançamentos.

 

O que frequento é muito grande, Pra dar uma espiada rápida em tudo vai pelo menos uma semana. Sério. Como a empreitada é longa, pelo comprido galpão há banquinhos espalhados pro pessoal se acomodar, além de umas duas ou três poltronas. Velhas, com o estofamento puído, mas um oásis pras suas costas depois de algumas horas naquela babel.

 

Embora o habitué do sebo seja, ou quase sempre aparente ser, muito tímido, nem todos têm o perfil do rato de biblioteca. Há o frequentador funcional, rápido e rasteiro. Esse tipo é pragmático e não gosta de antiguidade, vai lá porque é mais barato, geralmente está atrás de um livro específico pra faculdade ou coisa assim. “Tem? Vou levar. Não tem? Tchau”. Pronto. Sebo nas canelas.

 

O silêncio impera nos sebos, e isso às vezes é constrangedor. Dá pra escutar a respiração da pessoa na prateleira ao lado. E a consulta aos volumes vai aproximando fisicamente um freguês do outro. Aí a situação fica insustentável, parecida com o “efeito elevador”. Um dos dois acaba cedendo, indo ciscar em outras paragens até o outro desocupar.

 

Uma vez comprei um livrinho impresso em 1912. O carimbo da livraria, de Campinas, mostrava um número de telefone inacreditável: 27. As ligações, na época, inclusive as locais, eram via telefonista. “Senhorita, por favor, me liga no 36”. Parece morador de prédio falando no interfone com o porteiro.

 

Imagino a peregrinação daquele volume com o passar dos anos. Pode ter sido dado de presente pra filha mais nova de algum barão do café, que passou pro filho dela, que o doou a uma escola pública, que o emprestou a um aluno, que ficou com ele até vendê-lo ao sebo, em meio a um lote de outros 163 volumes. Quis o destino que estivesse agora aqui, a poucos metros das minhas fuças. E daqui a 100 anos, onde estará?

 

Não raramente se encontra, como marcador de página, algo devastadoramente íntimo.

 

Veja esse bilhetinho, que veio no meu “Sagarana” de sebo:

 

“Pedro querido,

Às vezes dizemos besteiras sem pensar. Magoar você é a última coisa que quero nesse mundo. A comida está na geladeira, é só esquentar. Depois conversamos melhor.

Sua esposa, que muito te quer,

Odila Maria”.

 

Odila Maria. Quem será, ou seria? Qual o motivo daquela briga, o que aconteceu e quando? Como era sua vida, a cor dos seus olhos e cabelos, onde morava? A vida lhe deu filhos ou acabou se separando do Pedro pra virar freira? Pode ter morrido tragicamente num acidente de carro, dias depois.

 

Dedicatórias de Natal, de aniversário, formatura. Páginas com anotações do leitor a lápis, trechos sublinhados. Às vezes umas manchinhas. Goiabada, purê de batatas, misto quente, bobó de camarão?

 

Na última visita levei 14 vinis. De “Vida Bandida”, do Lobão, até uma coletânea de Ismael Silva. Total de 53 reais. Faz por 50? Faço, claro. Se preferir tem redeshop. É, sebo hoje trabalha com débito automático e cartão de crédito. Mais: há grandes sebos de São Paulo e do Rio com portinha aberta na web. Tudo separado por assunto, descrevendo o estado do livro e ano da edição. E dá pra dar zoom na capa. Você escolhe, compra e entregam em casa.

 

Mas aí também não tem graça. O legal é banhar-se naquele mar de ácaros e escancarar os pulmões à deliciosa poeira. E foi entre um espirro e outro que pincei um DVD de “As Invasões Bárbaras”, Oscar de filme estrangeiro em 2004. No estojo alguém escreveu, em esferográfica verde: “ L’ Amitié. Notre chanson”. Pesquisei no You Tube. Apareceu uma espécie de clipe em preto e branco, de 1965 e produção rudimentar, onde Françoise Hardy canta “L’Amitié”, uma romântica canção que embala a cena final do filme de Denys Arcand. Acesse e emocione-se. Se for alérgico a ácaros, tudo bem. Pelo menos por enquanto eles não vêm pela internet.

 

*  *  *

 

Análises cínicas

 

I

Não tenho nada a perder, daqui a pouco vou dar um basta definitivo na minha vidinha sem parasitas, vírus, fungos e meningococos. O negócio agora é bagunçar esse coreto arrumadinho de tubos e lâminas, botar desordem na casa. É minha forma, ainda que um tanto sinistra, de deixar minha marca por onde passei. Gastei décadas nesse insípido cenário branco e esterilizado, onde se coletam temores e esperanças da vida lá fora. Se não posso mudar meu destino, mudarei o dos outros. De desconhecidos outros – para melhor ou para pior. Perdoem-me, tenho que fazer isso.

 

II

Misturando a amostra da Denise com a do Tácito Luiz… isso, lindo blend, a coloração tá ótima. Nunca se viram e firmam agora um pacto de sangue, quem diria. A hepatite dele passa a ser dela, a anemia dela também é dele. É bacana essa fraternidade, essa solidariedade mórbida me deixa com lágrimas nos olhos. Cada um entrou aqui com uma doença e voltarão os dois com dupla enfermidade. Agora, ao microscópio. Olha como tá de micose essa lâmina, Deus do céu. Mas como é difícil de tratar mesmo, digo no diagnóstico que não tem nada – assim o velhinho não perde tempo nem dinheiro tentando à toa acabar com esses fungos. Parece tão boa gente, não merece essa esfrega. Além do mais, disso ele não vai morrer mesmo.

 

III

Carcinoma hepatocelular, isso já deve estar em fase de metástase brava… deixa eu ver no facebook o perfil desse infeliz. Festa, churrasco, pescaria, ê vidão… deve enxugar uma cana lascada pra ter o fígado nesse estado. O laudo vai desenganar o cara, e não vai ter tratamento que dê jeito com a situação nesse pé. Tantos amigos e solicitações de amizade, que judiação. Não sou eu que vou estragar o seu restinho de tempo por aqui. Então vamos lá, meu camarada… “Aspecto benigno, não observados indícios de neoplasia”. Só aquele alívio na hora de abrir o envelope já é meio caminho pra melhorar muito o ânimo desse coitado. De notícia ruim já chega o Jornal Nacional. Maravilha, perfeito… agora o face… vou pedir pra me adicionar. Pode até não me aceitar como amigo, mas com certeza sou o melhor que ele já teve.

 

IV

Quintana Rubininsky… tinha um escroto no colégio com esse sobrenome. Se for parente, aí vai a maldição – tasco-lhe um positivo para HIV, tá bom pra você, querido? Vida louca, sem juízo dos infernos, se não tivesse má conduta o seu urologista não pediria o teste para afastar a suspeita. Aí vai, com toda a minha gratidão. É preciso que entenda que não é por mal, só estou fazendo minha parte pra tornar o mundo um lugar melhor.

 

 

Estação Paradiso

 

Abre com lua e estrela, a pleno brilho em lugar qualquer. Clima de épico bíblico. Cena 2: panorâmica nos trilhos da linha azul do metrô. O filme dentro do filme dentro do filme. Metrô é espaço de passagem e não de saudosismo, destrói sem dó pessoas, memórias e o que restar de humano na meia dúzia de desolados a esperar na plataforma. Ninguém “é” estando ali, fica-se provisoriamente.

 

Centenas de cópias piratas de DVD do monumento de Tornattore, prontas para serem esmagadas pelo próximo trem. Do jeito que fazem quando a Polícia Federal apreende contêineres de ray-bans falsificados. Travelling lento. Slow. Fusão para mim, dizendo em off algum lamento indecifrável. Uma cópia de cinquenta centavos do Cinema Paradiso não deixa de ser uma irônica continuidade dele.

 

A banalização da permanência, diria o crítico com ar blasé ajeitando os óculos. A saga das películas salvas e guardadas, as âncoras enferrujadas na conversa dos dois na praia, o ancião cego ordenando que o menino vá embora da aldeia e não olhe para trás. A ferrugem da âncora, metáfora. Totó morreu do coração após aquele choro todo vendo as cenas de beijos censuradas pelo padre – imprevisto que não constava no roteiro.

 

Ennio Morricone é outro que pode morrer em paz depois da trilha que fez, ela também nos trilhos agora, esperando a morte vestida de bites. Ninguém quase soube quando há meses um estilhaço de meteorito colidiu com o estacionamento onde fora o Nuovo Cinema Paradiso, que por sua vez era a reconstrução do antigo que pegou fogo.

 

Pegaram fogo o velho cinema e o velho Alfredo, queimados o celulóide e o projecionista. Um dedo de poeira acumulada sobre a ruína da ruína da ruína. Daqui do buraco da estação eu sei que chove lá fora, no pavimento dos autos. É triste, não gosto. Quero de volta o meu ingresso, trazido pelo Totó menino com vestes de coroinha que vem chegando de bicicleta.

 

*  *  *

 

A luneta

 

Na embalagem havia um enorme splash, onde se lia: “Montagem fácil e rápida”. Bom, dois dias e duas noites não é tanto tempo assim. O suficiente para encaixar nos lugares certos as lentes, roldanas, parafusos, porcas e cilindros de diferentes calibres e tamanhos.

 

Custou mas valeu, telescópio e tripé montados. Agora, ao desfrute. Ao merecido desfrute – porque que de ferro, só a luneta. Marca Superrvision, zoom de 1600 vezes, nitidez absoluta.

 

Primeira parada. Uma enfermeira dando comida na boca de uma velhinha em uma cadeira de rodas. Ai, que estréia mais sem glamour. E a enfermeira era mais velha que a velhinha.

 

No apê ao lado, uma bruta discussão. O engraçado era ver apenas as bocas se mexendo, os braços gesticulando, os socos na mesa, os rompantes coléricos e não ouvir absolutamente nada. Pastelão de cinema mudo, só faltou torta na cara.

 

Vamos lá, meu povo, cadê a sem-vergonhice? Duas horas e quinze e nenhuma mulher sem sutiã passando do banheiro para o quarto. Nem uminha. Tá louco, era o caso de devolver pro fabricante. Telescópio que se preze não faz um papel assim.

Três andares acima, um cara solitário no sofá, o nó da gravata meio afrouxado, à frente de uma TV de plasma. A lente é poderosa, dá pra ver a programação que o sujeito está assistindo. A sala escura, ele zapeia. A luz do aparelho refletida em seu rosto se altera a cada mudança de canal. Enfia um dedo no nariz. Que nojo, não volto mais na sua casa, seu sem-educação. Isso são modos?

 

No quinto andar havia uma loira de tirar o fôlego, há tempos já a observava a olho nu. A vadia não saía do quarto, dando mole pro primeiro telescópio que se habilitasse. Mais que depressa, zoom máximo na dita cuja. Era loira mesmo, e seria perfeita se não fosse um pôster. Duplo azar: além da mulher ser de papel, o quarto com certeza era de macho. Castigo pouco é bobagem.

 

Na noite seguinte, a caçada continua. Ao mirar no décimo-sexto andar do Edifício Itapuã, sua luneta dá de cara com uma outra luneta apontando exatamente para ele. Sim, tinha certeza que era pra ele. O voyeur do voyeur, a perversão das perversões. Assim que os olhares telescópicos se cruzaram, tentaram até fingir que não se viram. Uma luneta virou pra esquerda, outra pra direita, como se assobiassem, disfarçando.

 

Depois de umas dez janelas sem nada de interessante à vista, ele finalmente achou algo com que se entreter. Após um prolongado “Nooooooooooosssa!”, ali parou e ficou. Puxou até uma cadeira pra se acomodar melhor.

 

- Vai, vai, vai…

Uma voz feminina e muito familiar responde ao seu ouvido:

- Vai o que, Claudinho?

Era a esposa. Ô mulher pé de pluma. Quando deu pela presença, já estava no cangote. Mão na cintura, cobrando esclarecimento.

- Vai? Ah, sim. Vai logo, planeta, aparece logo, planeta…

- Planeta? Até onde eu saiba não tem planeta nenhum desse lado do céu. E mesmo se houvesse, esse prédio enorme aí em frente não ia deixar você ver nada.

- Nossa, é mesmo. Nem tinha reparado.

- Mãos ao alto, seu safado. Não mexe um milímetro nessa porcaria. Deixa eu ver o que você está vendo. Sai daí, sai daí!

Se aquilo era um planeta, só poderia ser Vênus. Um raro espécime do belo sexo, dessa vez de carne e osso, em trajes e poses que, digamos, acusavam claramente não tratar-se de uma freira.

- Sabe como é, testando o foco, querida…

E foi assim que, naquela noite, ele acabou vendo estrelas.

 

*  *  *

 

'Entertainer'

 

Filha única do casal Floriano e Aléxia Montezuma, Fatinha nasceu com uma memória prodigiosa, digna de tese pós-doc em neurologia. Dentre outras façanhas, a garotinha de cabelos cacheados aos 3 anos já sabia de cor o Princípio de Arquimedes, e a pedidos da família o enunciava às visitas. A certa altura das muitas reuniões semanais em sua casa, a partir de um sinalzinho combinado com o Tio Ernesto, lá ia a belezinha pro meio da sala, entrelaçando uma mão na outra e olhando para o teto, como quem puxa pela memória: “Todo corpo submerso em um fluido experimenta um empuxo vertical e para cima igual ao peso do fluido deslocado”. Um belo dia arrematou, num improviso que divertiu muito os convivas: “E a mamãe falou assim que o Seu Arquimedes saiu da banheira correndo pra rua, gritando Eureka, Eureka! e assustando a vizinhança com o bilau de fora. Não sei se é verdade, ela que falou. O bilau de fora também… não sei porque eu nasci sem bilau, mas em compensação”…

 

A mãe foi rápida e tapou providencialmente a boca da criança, antes que continuasse e dissesse o que não devia.

 

Quando o sarau familiar se estendia além do previsto, Fatinha era de novo convocada para animar o ponche com pães de queijo, dizendo os nomes das cores do pantone Suvinil. Os convidados se revezavam, escolhendo a esmo um código numérico no leque de 1.563 matizes. Sem titubeio, a menina dizia o nome da tinta. Era um festival de terracotas, verdes maritaca, brancos cordilheira, azuis netuno. Para cada acerto, palmas e mais palmas. Até que alguém falou o código E098, correspondente a vermelho carmim. E a menina: “foi dessa cor que o papai ficou quando pegou a mamãe no sofá da sala com o Tio Ernesto, os dois do mesmo jeito que estava o Seu Arquimedes quando saiu da banheira”.

 

Constrangimentos assim costumavam, compreensivelmente, esfriar a reunião. Mas nem sempre eram motivo para estragar completamente a festa. Assim, se após a Polonaise de Chopin, tocada pela madrinha da menina, o pessoal continuasse sem arredar pé, o jeito era chamar a Fatinha para outro número imperdível.

 

Depois de se fazer um pouco de rogada, lá ia nossa entertainer mirim a desfiar, um após outro e quase perdendo o fôlego, os nomes de todos os presidentes e vice-presidentes equatorianos e de suas respectivas esposas, por ordem cronológica de posse.

 

Se ainda assim os convivas pedissem mais festa, e não tendo mais o que servir para comer ou beber, apelavam de novo para a superdotada Fatinha, desta vez lançando mão de um expediente muitíssimo mais eficaz que a vassoura atrás da porta. Era quando a pequerrucha pegava pesado, ao declamar de cabeça um edital do DETRAN, convocando motoristas para comparecerem à delegacia regional de trânsito, com os nomes em ordem alfabética, modelo do veículo, números da placa e do chassi. Limpava o pigarrinho da garganta e começava: “Marca/Modelo: GM/Chevette/1982. Proprietário: Aarão Fonseca de Sousa, Placa LVG3213/PI, Chassi 9BGLL19BSRB332112. Marca/Modelo Fiat/ Siena/2004; Proprietário: Abdias Hugo Soares de Brito, Placa LVI5840/PI, Chassi 9BWZZZ30ZKT007813”…

 

O decoreba agiu como um repelente de moscas. Terminado o serviço Fatinha foi para a cama, não sem antes dar uma lida no catálogo telefônico de Teresina.

  

*  *  *

 

Clube da Esquina, 40

 

 

A agulha sulcando o vinil é arado rasgando as serras das Gerais – sem meias medidas, num quase estupro consentido. Segue a girar como Minas gira coração e miolos adentro, em quem é de lá de nascença, por costume ou vitimado de deslumbramento, com seus potes de compota e velas de procissão.

 

Belô dos mares de bares, todas as esquinas convergem conformadas e tímidas para aquela uma, a tal que ganhou mundo e fama. Seguem como devotas na quaresma, essas esquinas comuns que não tiveram clube, passos lentos e testas vincadas prematuramente. Seguem pela Via Crucis de paralelepípedos gastos, com baldeação em Três Pontas, Montes Claros e onde mais passe o trem azul.

 

E reverenciam, de joelhos, o latifúndio patrimônio deste mundo. Esse queijão com um furo no meio que Deus benzeu.

 

- Foto: museuclubedaesquina.org.br

 

*  *  *

 

Dois dentes

 

Foi na sala de espera do dentista, enquanto matava o tempo lendo uma história em quadrinhos, que caiu a ficha. Me dei conta que os personagens, quando humanos, apresentavam no lugar dos dentes duas fileiras brancas sem separação, uma em cima e outra embaixo. De onde formulei minha teoria, inútil mas não completamente estúpida: os dentes deveriam ser 2, e não 32. Duas peças ósseas e inteiriças, lisas como fórmica, enraizadas nos respectivos maxilares.

 

Tudo bem que, ao dividir a engenhoca mastigadora em frações, a natureza foi sábia: havendo problema o reparo é localizado, só se mexe na porção avariada. Mas cismei de imaginar se mother nature, no caso, tivesse sido tão pouco inteligente quanto o meu devaneio.

 

Seria a ruína dos ortodontistas, que não teriam o que fazer com seus aparelhos corretivos por não haver mais dentes tortos nem encavalados para alinhar. Os fios dentais sumiriam das prateleiras e as escovas durariam décadas. Resíduos de alimentos não encontrariam onde se alojar, e consequentemente as cáries estariam em maus lençóis. Fábricas de palitos fechariam as portas da noite para o dia. Por outro lado, um tombo qualquer, em efeito análogo a uma pedrada no para-brisa, poderia trincar de fora a fora o reluzente semicírculo bucal, que ganharia um racho vitalício e indisfarçável. Os exames de arcada, comuns nas perícias criminais, deixariam de existir, já que todas elas seriam idênticas. Grafiteiros veriam na alva e extensa chapa um muro biológico para expressar sua arte. A cultura underground conceberia a Odontatoo, a tatuagem dental, personalizando o standardizado sorriso do freguês.

 

É, melhor parar por aqui. Antes que me arrebentem os dentes.

 

*   *   *

 

 

Um control z de presente 

Dedicado ao meu amigo e ilustrador deste texto, Thiago Cayres, que faz aniversário no mesmo dia que eu. E também para o meu pai.

 

Como de hábito, estava eu à noite na varanda, curtindo o fastio da janta e dando comida pro cachorro, quando o Homem lá de cima chegou de surpresa e aboletou-se na cadeira do papai. Que aliás, era mesmo do meu pai. Sem maiores cerimônias, ajeitou-se na poltrona, coçou por instantes a longa barba e desembuchou:

 

- Diga lá, criatura. Como é que está essa força?

- Oi, Criador. O Senhor por aqui!

- Trouxe pra você um presente. Não repara, é só uma lembrancinha.

- Um presente do Onipresente. Não precisava se incomodar…

- Imagina, temos que comemorar seu aniversário.

 

Abri o pacote, embrulhado em um papel cheio de anjos, e no fundo dele vi um pequeno cartão escrito com a inconfundível letra do Todo-Poderoso: “Vale um Control Z”.

 

- Meu Deus! Um Control Z! O comando mágico que conserta as besteiras que a gente faz no computador.

- Pois é, pra você apagar alguma burrada que tenha feito. Um erro que tenha cometido na vida, não no computador. Escolha o momento em que quiser voltar atrás e faça bom proveito. Seus hábitos de fazer o sinal da cruz quando passa em frente à igreja e de desviar das formigas que andam pela calçada o fazem merecedor deste mimo, meu caro.

- Ah, então já sei o que quero fazer. Aproveitando que o Senhor está na cadeira que foi do meu pai, traga ele de volta pra mim. Um Control Z faz isso, não faz?

- Meu querido, o que eu te dei de presente não é lâmpada de Aladim. Um Control Z só pode reverter uma ação que você tenha praticado e se arrependido depois. Ele funcionaria, no caso, se você tivesse colaborado para que seu pai se fosse. Mas felizmente não foi isso o que aconteceu. Do contrário você estaria bem arrumado Comigo…

- Bom, nesse caso, peço que o Senhor use o Control Z que me deu e conserte a Sua ação de ter levado meu pai. Com todo respeito que Lhe devo, o que me diz da ideia?

- Não diga nunca mais isso, sob pena de cair em pecado mortal! Como Onipotente, sou infalível. Se seu pai se foi, era a hora dele e não cabe a você questionar os Meus desígnios. Estou muito chateado com o que disse, e sua ficha razoavelmente limpa acaba de ser maculada.

- Mas Senhor, veja bem…

- Porém, Minha infinita bondade permitirá uma remissão do acontecido. Use o Control Z que acabou de ganhar para voltar atrás no que disse. Aí então estaremos quites. Sua impertinência o forçará a desperdiçar o presente que com tanto carinho escolhi para você.

- Tá certo… mas sem chance de me arrumar um outro Control Z depois deste?

- De jeito nenhum. Assim, sugiro que o use pra limpar sua barra com a minha Pessoa. Além do mais, se bem o conheço, você não ficará com a consciência tranquila sabendo que Eu voltaria lá para cima sentido com o que fez.

- Ah, isso não ia mesmo.

- Então vamos logo com essa história, porque Eu tenho a eternidade toda mas não tenho muito tempo a perder por aqui. Dê um Control Z no que disse, entenda que é para o seu bem e saiba que o seu pai está ótimo lá em cima, cuidando de importantes afazeres.

Fiz a vontade de Deus. Acionado o Control Z, olhei para a cadeira do papai e dei com ela vazia, como se nada tivesse acontecido. Só os latidos do Poopin, pedindo mais ração. E as batidas no meu peito, pedindo de volta o meu pai.

 

- Ilustração: Thiago Cayres.

 

 *  *  *

 

Apartamento 607

 

Naquele cubículo eu a amei mais do que seria o bastante a dois mamíferos normais. Ou mais do que seria conveniente aos olhos e ouvidos dos vizinhos.

- Essa penugenzinha mais espessa caminhando pro seu umbigo, olha só.

- Ah, seu bobo. Cada uma…

Viro pro outro lado e dou com o peixe em zigue-zague ali no aquário, assustadinho. A falta de gravidade, zumbe a bomba de ar, há um verde musgo nos cascalhos e o reflexo da gente distorcido no vidro.

Quero que a tarde plane sobre a pólis desse jeito, com a tv ligada e nos ligando por um zonzo abandono de afazeres. Além do mais, há quase um tudo nesse nada, e é um estrondo a brisa leve nas avencas. Que mais a gente pode desejar, a não ser o dilatamento do tempo governando o espaço nosso?

- Alguém acendeu um aqui perto, sente o cheiro.

- Cheiro é o seu, meu bem.

Cheiro é o dela. Estrógeno concentrado nos cabelos fininhos da nuca. A falta que você fez enquanto hoje não chegava, se soubesse. Se soubesse se arrancava de onde estava e se atirava sem vergonha sobre mim, antes do prazo combinado e dos procedimentos cumpridos.

Os dentes todos, brancos e seus, rompendo a carne da maçã. Que bom é assim, vendo você sem que se saiba sendo vista. O lençol se espraia em ondas pela cama. Florzinhas, detalhes, coisas de mulher que põe sentimento no cio. Há uma batalha em andamento nesses três metros por quatro, sem vencedor nem vencido, só a disputa e a conquista do território do outro. Estar dentro do outro lado, ser os dois lados e um só. Depois é água e bandeira branca, amor.

- Duas coisas, meu anjo: pede uma pizza e traz a manta.

- Sim senhora. E eu, também estou no pedido?

É de perder a cabeça quando ela aciona esse riso, como se abrisse um preview do mistério de que é feita. Vinte minutos de cócegas e guerra de travesseiros. Nada muito mais sério pode rolar daí pra frente, eu sei mas finjo que não e tento falar de nós dois enquanto conto suas estrias.

- Espera aí que eu já volto, o motoqueiro tá buzinando.

Uma sirene de polícia e um alarme disparado Sua pulseira sobre a antologia de Drummond. O relógio e as chaves de casa, do carro e de nós. Trago os talheres e os pratos.

Gosto tanto do atrevimento, tão raro e tão bem-vindo. Das poucas vezes em que você se presta a me domar. É claro que a porta pode se abrir para uma procissão de camelos, mandalas de pedra podem passar razantes sobre nossas cabeças que tudo bem, nada que assuste ou afaste os olhos cravados nos olhos.

- Me ajuda aqui com o fecho do vestido.

Se ela tem mesmo que ir, que vá cheirando a mim. A saciedade é uma ilusão que dura quase 10 minutos. Tudo o que vier a acontecer será só ínterim entre sua partida e seu retorno incerto.

O que consola é você deixar pequenos vocês nos arredores. Batom no copo, cabelo no ralo. Uns rastros poucos que duram, quando muito, até amanhã. E amanhã é muito longe da outra vinda, quando aqui será o nirvana novamente.

 

*  *  *

 

Água no shampoo

 

Não é novidade para ninguém que nosso salão está com os fios, ou melhor, com os dias contados. Ou tomamos providências emergenciais ou seremos forçados a fechar as portas.

 

As orientações abaixo são estritamente confidenciais. Se cairem nas mãos de alguém que não pertença ao quadro funcional, estaremos irremediavelmente perdidos. Assim, sugiro a todos que destruam este documento assim que finalizarem sua leitura.

 

De forma geral ficam valendo como padrões, até segunda ordem, os procedimentos a seguir.

 

Sem que o cliente perceba, procurem deixar o cabelo pelo menos meio centímetro mais comprido que o solicitado. Exemplo: nos cortes masculinos, se pedirem para cortar com a máquina 2, cortamos com a 3, se pedirem com a 1, cortamos com a 2, e assim sucessivamente.

 

Para as mulheres, sugerimos indicar como nova tendência mundial a franja quase caindo nos olhos, o que as obrigará a fazer manutenção do corte a cada 5 dias no máximo.

 

Vamos tentar, tanto quanto possível, canalizar os atendimentos para datas com lua crescente. Como todos sabemos, cabelos crescem mais rápido nesses dias e consequentemente o cliente volta antes.

 

Shampoo e condicionador: diluir na proporção de 3:1, no mínimo. E nada de repetir a operação, sob pena de demissão por justa causa.

 

As assinaturas de revistas, que já estavam suspensas desde 2006, prosseguem cortadas. Uma vez que ninguém mais lê revistas tão velhas, venderemos as que estão em uso para empresas de reciclagem, destacando em uma faixa ou cartaz que estamos fazendo nossa parte por um planeta sustentável, eliminando papel e colaborando para a sobrevivência das florestas.

 

Convênio com médicos ginecologistas.

 

O tempo que as mulheres perdem cortando os cabelos ou fazendo as unhas é, a bem da verdade, perdido. Assim, enquanto tratam da beleza poderiam também cuidar da saúde. Passaremos a oferecer um diferencial único no mercado: exames de Papanicolau simultâneo ao corte de cabelo, por meio de um aparato ginecológico volante, operado por médico da especialidade conveniado ao salão.

 

Banco de cabelos de notáveis.

 

Comportamento ético é muito bonito no discurso, mas não é este o caso em nossas atuais circunstâncias financeiras. Desta forma, partiremos para a fraude sem maiores dilemas de consciência. O engodo na cara dura. Simples assim: não jogaremos no lixo as mechas recolhidas no salão. Inventaremos donos célebres para elas, avalizadas por certificados de autenticidade igualmente falsos, com o cuidado de escolher tons de mecha que correspondam à cor natural do cabelo da celebridade. Como a descoberta do golpe seria caso de polícia e de uma pauta especial no Globo Repórter, ofereceremos as relíquias só em circuito interno e para os clientes mais bobos, que caiam facilmente na esparrela. Além de faturarmos bem com a brincadeira, ficaremos com a fama de sermos o salão de beleza de gente famosa.

 

Outras sugestões são bem-vindas. Lembrando a todos os colaboradores o lema da nossa campanha de redução de custos: “Quanto mais cortes de cabelo, menos de cabeça”.

 

*  *  *

 

A seco

 

Colecionava canetas. Não as que considerava belas, diferentes ou raras, mas todas as que usava até as cargas chegarem ao berro. E só se permitia guardá-las após secarem irremediavelmente: enquanto não se tornassem inúteis, não poderiam pertencer à coleção.

 

A tal ponto chegou a compulsão em juntá-las que, estivesse fazendo o que fosse, com a mão direita ou a esquerda rabiscava qualquer coisa com a intenção única de gastar tinta e incluir mais um exemplar à extensa renca. Falando ao telefone, assistindo TV, trabalhando e até mesmo dirigindo, lá estava ele com um risque-rabisque ao lado ou no colo, alternando entre movimentos retos e circulares para prevenir LER e tendinite.

 

Com o tempo foi percebendo que as canetas mais vagabundas gastavam mais rápido, o que o levava com frequência quase diária ao camelódromo. De lá voltava com dúzias delas, e nem bem se despedia do dono da banca já começava a rabiscar pelo caminho. Muros, postes, panfletos de comida por quilo, toda superfície onde a ponta da caneta deslizasse servia para dar vazão à neura. Rabiscava com o alívio de quem esvazia a bexiga, toma fôlego, mata a fome. Já nem dormia direito, julgando desperdiçadas as horas em que ficava sem caneta à mão. Daí passou para o vandalismo sem controle. Era detido riscando carros pelas ruas, assentos no metrô, fórmicas de balcões de lanchonete, cabines de elevadores. Nos acessos mais violentos, metia-se em banheiros públicos e pintava em tinta esferográfica todas as portas que via pela frente.

 

Preso em flagrante tentando rabiscar os quadros do museu da cidade, não houve fiança que o tirasse dessa vez da delegacia. Na cela, ao invés de um risquinho na parede para contar os dias de cativeiro, fazia um a cada segundo transcorrido. Prisioneiro de sua paranoia, forrava tudo ao redor com centenas de milhares de pequenos traços. Até se contorcer em cãibras, até sangrarem as mãos, até que a carga de vida enfim secasse.

 

*  *  *

 

Duña e as sacolinhas

 

Duña, o venerável e nunca suficientemente louvado profeta dos nossos tempos, mais uma vez interrompeu seus ofícios missionários para recomendações de ordem prática a seus fiéis, desta feita no que se refere ao imbróglio das sacolas de supermercado.

 

Sorridente e aparentando 23 anos a menos que os seus assumidos 118, o sapientíssimo oráculo derramou bênçãos por onde passava, entupindo de fluidos benfazejos desde a praça municipal até as proximidades da Sorveteria do Neco. Lá estacou, bateu três vezes com o cajado no chão e pediu à multidão que silenciasse e se mantivesse de joelhos enquanto falava.

 

O pronunciamento segue transcrito na íntegra, conforme colhido pelo Capitão Dorgival Orozimbo de Castro, militar da reserva e taquígrafo nas horas vagas:

 

“Inicio minha homilia conclamando a humanidade sofredora a reconhecer que mais vale a mercadoria que se coloca dentro do que o saco que a acolhe, seja ele de que material for.

 

Limita-se a discussão às sacolas que deixarão de ser produzidas doravante, mas ninguém menciona o extraordinário potencial de dinheiro que as sacolinhas já utilizadas renderiam aos meus fiéis de espírito empreendedor.

 

Aparentemente, nenhum pobre mortal pensou que elas podem ser recolhidas do lixão, esterilizadas e revendidas ao consumidor final a nove centavos e meio a unidade, valor 50% menor que o cobrado pelos supermercados (dezenove centavos).

 

Lembro aos meus piedosos discípulos que esta não deixa de ser uma forma – ainda que arcaica – de reciclagem. E mais: tendo-se em conta que as sacolinhas levam no mínimo 100 anos para se decompor, o processo de coleta pode se repetir milhares de vezes – isso se as sacolas resistirem sem furos entre uma ida e outra para o lixão, o que me parece improvável.

 

Deixo ainda uma instrução para aqueles que desejam continuar servindo-se de sacolas plásticas em qualquer estabelecimento sem ter que pagar um tostão por isso. Ao fazer suas compras, passe pelo setor de hortifruti e compre pelo menos um cacho de bananas, talvez meia dúzia de laranjas, quem sabe uma baciada da xepa ou algo ainda mais baratinho. Antes de colocar as frutas e/ou legumes dentro do saco transparente, de qualidade infinitamente superior às citadas sacolinhas e disponibilizado à vontade em rolos de diversos tamanhos pelo setor, coloque uns 30, 40 ou mais sacos no fundo daquele em que for acondicionar os vegetais. Pronto. Na hora de pagar, passe primeiro pelo caixa o saquinho premiado e depois embale tranquilamente sua bem fornida compra de mês nos saquinhos extras legalmente surrupiados.

 

Concluindo, alerto aos meus seguidores: cuidado ao circular com sacolinhas de supermercado por vias públicas neste momento, onde elas são assunto de acaloradas discussões nas assembleias legislativas e no Congresso. Ontem mesmo, após o culto das 17h22, alguns dos membros da nossa congregação reuniram-se nas escadarias do templo para, inocentemente, aspirarem sua colinha de sapateiro e relaxarem um pouco da faina diária. Pilhados em flagrante pela polícia, que de longe avistou no saquinho de aspiração a marca PAG-PAG, a turminha duñesca foi indiciada em inquérito, sendo a sacolinha imediatamente apreendida, fotografada e encaminhada a laudo pericial. Já a cola de sapateiro, após raspada da sacola pelo Cabo Janjão, foi devolvida num pote de danone ao grupo. Vejam vocês, misericordiosos irmãos!”.

 

Ditas as palavras finais, o secular iluminado foi aplaudido pela multidão, que o levou nos ombros até a cabana onde vive e pratica a meditação, a penitência e a autoflagelação desde 1942.

 

*  *  *

 

 

De casa pro trabalho, do trabalho pra casa

 

- Nunca me esqueço. Eu devia ter uns quatro anos quando aquela brotoeja pipocou no seu avô. Apareceu assim, do nada, numas férias de verão lá em São Vicente. Ele não deu bola e a coisa foi piorando, piorando, virou outro negócio que quase fez o velho encontrar Nossa Senhora mais cedo.

 

- Sim, papai. O senhor sempre conta essa história.

 

- E vou continuar contando até vocês aprenderem que são demais os perigos desta vida, e que pra morrer basta estar vivo. Não precisa ir longe pra perceber que a gente está cercada de ameaças. Ontem, por exemplo, ao acender a luz do quarto percebi uma mancha amarela em uma das pás do ventilador de teto, próxima ao terceiro parafuso que prende o globinho com a lâmpada. Tratando-se ou não de um foco fúngico, de resquícios de pólen ou seja lá o que for, convém substituí-lo por outro, pra afastar de vez o risco de alergia. Concorda comigo, amor?

 

- Sim, querido. Vai que acontece alguma coisa.

 

- Aproveitando a deixa, venho notando ultimamente que o peso da porta da área de serviço está mantendo-a aberta em ângulo maior que 25 graus, o que é um perigo para criar corrente de vento dentro de casa. Vento encanado pode causar resfriado, que é um passo pra gripe, que mal curada vira pneumonia, que de pneumonia evolui fácil para…

 

- Deixa comigo, amor. Por via das duvidas, providenciarei pra que fique sempre fechada.

 

- Melhor assim, melhor assim.

 

- Não vai tomar seu mingau com semente de linhaça? Acabei de fazer.

 

- Estou atrasado, não vai dar tempo. Dá pra Maria Luiza comer. Estou sentindo ela meio pra baixo. Algo me diz que é deficiência vitamínica, mas não afastaria a possibilidade de uma virose com comprometimento temporário da função hepática. Dai para um aumento incontrolável de glóbulos brancos não custa nada. Foi o que deu na Tia Josélia, lembra? Coitadinha, tá até hoje sem previsão de alta. Bom, o dever me chama. A essa hora já deve ter um montão de gente me esperando. Reparte o meu cabelo, querida. Deixa eu dar uma umedecida que fica mais fácil. Isso, a risca tem que ficar alinhada com o nariz. Isso, assim tá bom. Ah, por falar em umedecer, lembro a todos que ninguém merece um foco de dengue dentro de casa. Portanto, tampas de privada, já sabem: sempre fechando o vaso sanitário.

 

- Mas pai, criadouro de Aedes só se forma em água parada.

 

- Sei, e a água que fica lá no vaso o que é? Falam na televisão pra tomar cuidado com água no vaso. Pra gente se garantir, tinha que deixar alguém apertando o botão de descarga  o tempo todo. O mesmo vale pra esses restinhos de água nos copos em cima da pia. Um perigo, um perigo!

 

- Mas espera aí, assim também já é demais… usamos estes copos agorinha mesmo!

 

- Meu amor, o mosquito da dengue não quer saber se a água está parada há dois minutos ou há quinze dias. O negócio dele é água parada e pronto, azar o nosso. Bom, depois a gente continua a conversa. O patrão me chama e a plateia me espera. Tchau!

 

Respeitável público, com vocês o único, o fenomenal, o inimitável, o primeiro trapezista das Américas a executar  o quádruplo mortal sem rede de proteção! Rufem os tambores… diretamente de Anunciación de las Astúrias, o grande, o fantástico, o destemido… Lorenzo de las Cruces, mais conhecido como “A Hélice Humana”!

 

*  *  *

 

Baba-ovo

 

Não conhecia a expressão até outro dia. Já tinha ouvido muitas de suas variantes elencadas pelo Aurélio: bajulador, adulador, adulão, babão, cafofa, chaleira, incensador, lambedor, lambeta, lambeteiro, louvaminheiro, puxa-saco, sabujo, xereta, banhista, cheira-cheira, chupa-caldo, corta-jaca, engrossador, enxuga-gelo, escova-botas, incensador, xeleléu, lambedor, lambe-botas, lambe-esporas e mais um outro sinônimo realmente impronunciável.

 

Mas baba-ovo pra mim é novo. Não o sujeito, mas o predicado. Aliás, alguém poderia me dizer por que baba-ovo se chama baba-ovo e por que puxa-saco se chama puxa-saco?

 

Questões semânticas à parte, é preciso reconhecer que o baba-ovo legítimo, aquele que honra a classe, geralmente não é o que se poderia chamar de um cara ambicioso. Sua pretensão é ter o seu lugarzinho ao sol e tudo bem. Não chega a ser arrivista e também não é necessariamente mau-caráter. É ardiloso de nascença e por força das circunstâncias, mas seria uma injustiça chamá-lo de canalha. Falta a ele coragem para a vilania.

 

Como tudo que é rasteiro e ordinário, os baba-ovos pululam à nossa volta, é raça que se dissemina em estonteante velocidade. Agora mesmo tem um baba-ovinho nascendo. Tão baba-ovo que, se dependesse dele, ao invés de chorar na hora do parto daria um tapinha nas costas do médico. Sabe como é, nunca se sabe quando é que se vai precisar das pessoas…

 

Uma vez baba-ovo, sempre baba-ovo. Começa com a maçã lustrosa na mesa do professor e termina com o discurso, aos prantos, na cerimônia comemorativa aos 75 anos do Diretor-Presidente. E nessas e outras pequenas coisinhas, lá vai ele se segurando no staff e amealhando pontinhos.

 

O baba-ovo não é o político. É o assessor dele. Seu negócio é mais superficialzinho, não engendra grandes estratagemas e não age em quadrilha. É improvável que um puxa-saco entre em conluio com quem quer que seja pra obter alguma coisa. O baba-ovo de verdade é egoísta, quer fazer ele mesmo e não gosta de dividir o mérito, se é que se pode chamar de mérito o produto de sua desfaçatez.

 

Ser o escudeiro é tudo o que basta ao abnegado puxa-saco. Ele se compraz tendo o imediato superior a reverenciar. A seara dele é o bastidor, a adulação estudada e cheia de intenções adjacentes. O barato do baba-ovo é a própria vassalagem, curvar a espinha é o seu orgasmo. Fica sabonetando e estendendo o tapete por instinto e vocação mesmo. Definitivamente, ele gosta da coisa.

 

O mais engraçado no baba-ovo é a sua inaptidão em disfarçar a babaovice. Se acha um expert em dissimulação, tem certeza de que ninguém está percebendo seus expedientes. Não imagina o quanto sua pretensa sutileza é ostensiva, o quanto é alvo de chacota nas rodinhas de conversa e nas mesas de bar. Enfim, o torpezinho mal sabe a que ponto sua fama é estabelecida na praça. E vai ficando sem saber, já que falta peito aos colegas para alertar o indivíduo. Já pensou chegar pro enxuga-gelo e dizer – “Ô meu, manera na puxa-saquice que tá dando na vista”? Não dá. É algo parecido com aquela história de avisar o sujeito que ele tem mau hálito. Todo mundo sabe que é uma boa ação, até um gesto de caridade, mas ninguém se aventura a ser tão sincero.

 

Nas reuniões, sua perfeita concordância com as opiniões do chefe é tão automática e previsível que não choca mais ninguém. Mas aí acontece um imprevisto: o baba-ovo é surpreendido por uma inesperada promoção e passa a ser sub-chefe de qualquer coisa. Consequentemente ele terá, se não um arsenal, pelo menos um neo baba-ovo mais do que disposto a lamber-lhe as polainas. A pergunta é: será que ele, alçado agora ao posto de “adulável”, vai perceber?

 

*  *  *

 

Justa medida

 

Foi a minha avó, afamada costureira do Rio antigo, quem confeccionou o célebre pijama do Getulio. Aquele que até hoje guarda o furo no peito e as marcas de pólvora.

 

Vaidoso como era, o Dr. Getulio poderia ter escolhido o traje que bem entendesse para a sua hora fatal. Fraques, ternos e até cartolas não lhe faltavam. No entanto, escolheu ele o pijama, seu adorado e fidelíssimo pijama, mais fiel e mais chegado que todos os seus guarda-costas, assessores e correligionários  juntos.

 

Pijama que entrou para a história como o dono. Foi sobre a sua seda que correu o sangue do pai dos pobres, o criador dos direitos trabalhistas, o homem que ficou mais tempo mandando nessa terra de desmandos. Foi dentro da obra máxima da minha saudosa vovozinha que Vargas deu seu ultimo suspiro. Desde 1955 no Museu da República, muito provavelmente é o pijama mais visto e fotografado do mundo. Quando é que a finada vovó Doroty, bordando distraidamente o “G V” do monograma, poderia imaginar o culto que aquela peça teria com o passar dos anos?

 

Minha avó dizia que o Seu Gegê era irritantemente detalhista em assuntos de indumentária de alcova. Seu envelope de dormir não poderia ser muito apertado a ponto de lhe tolher os movimentos no leito, nem tão folgado a ponto da calça lhe escorregar pela pança se tivesse que saltar rapidamente da cama por motivo de urgência – o que não seria difícil naquele tumultuado agosto de 1954. O fato é que o baixinho gaúcho talvez fosse o único bípede pensante a ter pijamas sob medida, um preciosismo que os livros escolares, estranhamente, nunca registraram. Ah, minha velha e injustiçada Doroty…

 

Falando em medida, uma mais do que justa seria o reconhecimento,do governo federal à minha talentosa e dedicada vovó, que com suas tesouras, linhas e agulhas tanto contribuiu num dos momentos mais críticos que este pais já viveu. Imaginem que triste espetáculo, aos olhos do mundo, se Getulio tivesse sido encontrado de cueca ou de ceroulas em seu leito de suicida? Nossa nação, que já não tem fama de séria, cairia em irremediável ridículo no noticiário da época. Dependendo da estampa da cueca,  nem todos os esforços de embaixadores e diplomatas conseguiriam abafar a desastrosa palhaçada.

 

Mas Dr. Getulio era um gentleman até depois de morto, e sabia da importância de um pijama apresentável no contexto das relações internacionais. Não envergonhou o Brasil, ostentando um exemplar digno e maravilhosamente desenhado, com listras simétricas e um estilo de fazer inveja a todo o guarda-roupa de Eisenhower, o presidente norte-americano na ocasião da tragédia. 

 

Solicito então, às autoridades constituídas, que a partir de agora sejam cobrados royalties de toda foto ou vídeo que documente o pijama de Getúlio Dorneles Vargas, e que a quantia seja revertida a mim – único herdeiro vivo de Dona Doroty. Reivindico, além disso, uma pensão vitalícia de valor equivalente ao recebido pelos ministros do Supremo, a título de retribuição por tudo que minha família fez pela nossa história.

 

*  *  *

 

Bobo e sua Corte

 

Já reparou como os termos “Bobo” e “Tolo” têm sinônimos? Dentre tantos, “Doidivanas” sempre me chamou a atenção. Acho que foi lendo algum romance de cavalaria ou livro de Julio Diniz que vi a palavra pela primeira vez. Recorri a um pequeno e nada confiável dicionário e encontrei lá: “Doidivanas: o mesmo que Estouvado”. Fui em “Estouvado” e li: o mesmo que Doidivanas. Ou seja, o pai dos burros me fez de bobo.

 

Ser bobo vai além de ser otário. Tem também o sentido de ignorante, que contempla como sinônimos uma extensa família de quadrúpedes: besta, asno, jerico, jumento, jegue e simpatizantes. Sem falar da anta e da toupeira.

 

Fora do reino animal, um dos meus favoritos é “Bocó”, quase um arcaísmo atualmente. Melhor ainda é “Bocó de Mola”, que sugere um upgrade na acepção original (ou um downgrade, no caso).

 

Igualmente em desuso está o “Monte”. Largamente empregado na zona rural de São João da Boa Vista e adjacências nos anos 70, o vocábulo com toda certeza é oriundo do sul de Minas. Não sei se continua vigindo. Monte é, basicamente, o mala de hoje. Tem o significado de empecilho, estorvo que fica no meio, atrapalhando tudo e empatando a f…

 

Vamos ao “Tonto”. Ele é parecido com o bobo, mas não é a mesma coisa. O bobo é menos bobo que o tonto. Historicamente o bobo tem ofício definido. Como todos sabem, era ele quem divertia os reis nas cortes medievais. O tonto, por sua vez, é um Mane-Quarqué (que me perdoem meus leitores Manoéis ou Manuéis), um “Girolas” inofensivo. Por falar em Mané, há que se mencionar aqui os derivativos “Mané-Coco” e “Mané-Jacá”, além do conhecidíssimo “Mané-Patola”, a quem algumas populações ribeirinhas denominam simplesmente de “Patola”.

 

Temos ainda o “Boboca”, que imagino um semi-bobo, aspirante a bobo ou algo que o valha. É mais do que um bobinho, mas é menos que um bobo 100% genuíno. Na mesma classe estão os “Parvos”, a bradarem suas parvoíces em qualquer tempo e lugar.

 

A letra “P” é rica em sinônimos de lesos: temos, entre outros verbetes, “Palerma”, “Paspalho” e “Pateta” – todos com sentido semelhante e QI idem.

 

Na letra “T”, além do tolo e da toupeira já citados, encontramos o “Tapado”. Por analogia, podemos caracterizá-lo como um surdo-mudo neurológico. Nada é capaz de permear sua couraça obtusa. Pra cantar a “Florentina” do Tiririca ele precisa olhar a letra.

 

Capítulo à parte merecem o “Doido de Pedra” e o “Doido Varrido”, mas não serei eu o maluco a atribuir-lhes o sentido. Só imagino um napoleão-de-hospício esculpido em mármore e um serzinho com camisa de força se debatendo entre ramos de piaçava.

 

O “Abestado” é tão inclassificável que nem é aceito pelo Aurélio. O insigne dicionarista o cataloga como “Abestalhado” – que particularmente considero um tanto quanto articulado para o caso. Abestado é infinitamente mais besta que abestalhado, concorda?

 

Muitos termos possuem a mesma raiz etimológica, mas gradientes peculiares de significado. Compare “burro” e “burraldo”. O leitor logo perceberá que o burraldo puxa a carroça com mais força. O burraldo é o burro xucro, incorrigível, que deixa o rastro das ferraduras por onde quer que passe. O burro é menos pretensioso na escala búrrica – de vez em quando é capaz de falar coisa com coisa. Muito de vez em quando, mas é.

 

“Babaca” e “Panaca”. Mesmo que a grosso modo não pareça, entre eles há uma notável diferença. A grafia semelhante esconde na verdade um abismo conotativo. Explico: o panaca é mais lorpa que o babaca. Panaca ri das cenas de torta na cara; já o babaca não acha mais graça nisso, não. Na escala evolutiva, está um degrau acima do panaca. O máximo que o babaca faz é chifrinho nas fotos de festa de aniversário, embora afirme aos mais chegados que já abandonou o vício.

 

Pouca gente se dá conta, mas “imbecil” e “idiota” não são propriamente xingos. Idiotia e imbecilidade são estados psíquicos – patologias catalogadas e estudadas pela psiquiatria moderna. Psiquiatria que já vem se debruçando sobre os “Sequelados” e os “Sem-Noção” – neo-zuretas desse insano início de século 21.

 

*  *  *

 

Quiosque sagrado

 

INSTRUÇÕES GERAIS PARA FRANCHISING NO FORMATO UNIDADE MÓVEL

 

. Defina um nome para a agremiação religiosa e consulte primeiramente o Google, o site do INPI e www.registro.br para certificar-se de que não existe alguma seita já registrada sob a mesma denominação. Tendo em vista que em média 3 novas associações de cunho religioso são instituídas diariamente, o risco de criar uma igreja homônima é grande.

 

. O crescimento do negócio está diretamente relacionado às taxas de conversão, ou seja, ao índice de arrebanhamento de novos fiéis para a congregação. Uma base inicial de 2.500 frequentadores é suficiente para que o capital investido em instalações, aquisição de imagens, piscininha de lona para batismo e propaganda com carro de som retorne em 24 meses.

 

. Tal estimativa de retorno baseia-se numa renda média per convertido de 1,5 salário mínimo, e levando-se em consideração uma décima parte disso como receita líquida da igreja (dízimo).

 

. Entende-se como quiosque a tenda armada em locais de grande fluxo de pessoas com o perfil socioeconômico visado, compreendendo estrutura em PVC, 3 cadeiras, um frigobar com água mineral benta sem gás, 2 displays acrílicos para folhetos, resma com 500 formulários de conversão, bíblia de isopor para decoração e carimbo “Recebemos”.

 

. A função do quiosque-franchise consiste na prospecção de convertidos para encaminhamento ao templo mais próximo a cada unidade móvel. Assim sendo, é imprescindível estabelecer um acordo operacional entre o franqueado do quiosque e o pastor responsável pelo templo nas imediações do mesmo.

 

. Os atores para encenação dos rituais de desencapetamento podem ser recrutados junto a grupos amadores de teatro, nas cidades ou bairros onde os quiosques se instalarem. Para efeito de cachê, sugerimos um percentual sobre os dois primeiros dízimos angariados dos recém-convertidos.

 

. Mel Curador, Sal da Vitória, Chá Desbrochante, Palitos de Fósforo da Fogueira Divina, Genuflexório de Bolso, Coça-Costas da Prosperidade e Espada da Ira Santa poderão ser exibidos e comercializados em showroom nos quiosques. Todavia, o fiel comprador deverá ser informado pelo franqueado de que tais itens, do catálogo da Sagrada Store, só apresentarão seus miraculosos efeitos após benzimento por missionário, pastor ou bispo e mediante a compensação do cheque utilizado na compra.

 

. Em toda e qualquer forma de comunicação visual, o franqueado deve comprometer-se a colocar, logo abaixo da logomarca de sua igreja, a informação: “Integrante da Rede Bem-Aventurança de Jericó”.

 

*  *  *

 

Abbey Road Remixado

 

- Ok, boys. Já que a ideia é mesmo essa e parece que não há jeito de vocês voltarem atrás com essa tolice, tenho algumas sugestões para deixar o resultado final um pouco menos ruim. Pra começo de conversa, sugiro que vocês quatro se virem pra câmera dando tchauzinho. Sei lá, penso que assim a coisa ficará mais amistosa e interativa do que todo mundo sério e alinhado, olhando pra frente e atravessando a rua.

 

- Mas afinal de contas, o que você tem em mente é uma capa de disco ou um cartaz de circo? Só falta você sugerir que o Ringo fique fazendo chifrinho no George na hora do clique…

 

- Calma, Paul. Eu sei que a ideia é sua, mas vocês contrataram um fotógrafo profissional e eu me sinto na obrigação de orientá-los pra que o resultado fique realmente bom e funcione comercialmente. Uma coisa é certa, rapazes: nenhuma capa de disco entra pra história com quatro sujeitos atravessando uma faixa de pedestres como se fossem uns anônimos e inexpressivos súditos da rainha. Caramba, vocês são os Beatles!!!

 

- Veja bem, por mim você e Paul decidem o que acharem melhor nessa peleja capitalista de vender mais ou menos discos. A única coisa que peço é que a Yoko atravesse a faixa ao meu lado. Caso contrário, não tem negociação, vamos embora agora mesmo. Vocês sabem que não desgrudo um minuto dela, e isso inclui travessias de rua, partidas de rugby e até exames de próstata.

 

- John, isso é efeito da maconha, do LSD ou do sol na cabeça? Estamos falando de um  disco dos Beatles, e não de Yoko e sua banda. Compreende?

 

- Espera aí, gente. Se este pobre baterista pode dar um palpite, recomendo que continuemos a discussão num pub ou algo assim. O trânsito está ficando engarrafado e daqui a pouco começam a buzinar. A intenção era perder no máximo vinte minutos com esta merda de foto. Não temos o dia todo e precisamos gravar mais um take de “Come Together” ainda hoje, esqueceram?

 

- Eu insisto: tá faltando alguma coisa bombástica, arrebatadora, que dê uma sacudida nessa capa. Ou então, sei lá, um toque de humor britânico, mesmo que bem sutil. Por exemplo, um de vocês é o guarda de trânsito, orientando os outros três na travessia. Heim, que tal? Aí sim vai ficar bacana.

 

- Tudo bem, mas e a Yoko?

 

- Sugiro que o guarda se distraia e um carro passe por cima dela.

 

- Por esta gracinha eu poderia te enfiar a mão na cara, Paul. Mas não vou fazer isso porque, independente de como fique essa maldita capa, no final das contas vão achar que o morto é você, e não Yoko. Pode apostar. Babacas do mundo todo vão esquadrinhar cada centímetro da foto, procurando pistas que confirmem a sua morte. O que mais lamento é que ela não passe de um boato.

 

- Gente, por favor, vamos dar uma trégua na troca de afagos. Daqui a pouco começa a juntar gente pra pedir autógrafos, a imprensa aparece e aí a foto já era.

 

- Pensando bem, acho que o Ringo está certo. Vamos voltar para o estúdio, terminar “Come Together” e esquecer essa história de capa de disco na faixa de segurança. Temos mais um tempo pra pensar numa solução melhor.

 

*  *  *

 

Castelo de cartas

 

Chegou uma hora em que não teve mais o que dizer para as paredes do castelo, pelo menos não naquele dia de 1106. Notando o demorado silêncio e temendo o tédio que lhe pudesse aborrecer, o pajem e o bobo da corte bateram à porta do quarto dela e se apresentaram, cada qual procurando agradá-la mais que o outro. Assim, entre mesuras e acrobacias tolas, mantinham o seu lugar sob a boa e frondosa sombra do reino.

 

Se esforçavam os dois, alternando mímicas e passatempos, embora sabendo que ela os olhava sem ver. Era outro e mais nobre o remédio que daria algum alívio à sua angústia de princesa. Um cavaleiro a se matar por ela, cavalgando pântanos e sítios movediços, a se esquivar de lanças e a erguer mais alto o brasão do seu feudo a cada batalha vencida. Queria o guerreiro das cruzadas, o mais destemido e estrategista deles, que fizesse dela a causa da sua vida e a razão da sua morte. Um herói que guardasse no coração e na mente o seu nome e o seu semblante de donzela, como inspiração e ânimo para o combate.

 

Mas, pensava ela, todos os fidalgos e guerreiros que meu pai, o Rei, me permite conhecer não passam de gazelinhas a saltitarem pelos campos provençais, com guizos dourados e patinhas lustrosas, carregando entre as pernas, por baixo das armaduras, castos e inofensivos fazedores de xixi. São funcionalmente eunucos. Todos, sem exceção, ostentam uma hombridade de fachada.

 

Papai é tão flagrantemente corno que ele próprio chega a rir com as piadas que toda corte faz de sua extensa galharia. Mamãe, logicamente, manda vir de outros reinos os escultores de chifres – já que aqui não há um que se aproveite.

 

Súditos e nobres esquecem de suas lidas pouco interessantes em torno de coxas de frango e taças de vinho. Duelam sem motivo aparente nos burgos, jogam a dinheiro, perdem suas colheitas, praticam a maledicência, cumprem as penitências que lhes garantirão o céu e fingem dormir o sono dos justos.

 

Mulheres fiam e bordam, lavam e varrem. Algumas pedem ao Criador que a peste venha e as leve o quanto antes, já que o sono eterno parece mais excitante que isso a que chamam de vida.

 

*  *  *

 

Terça, a estranha

 

Muitos aproveitam o período de festas para falar de amor, fraternidade, união e harmonia. Serei voz destoante e declararei meu ódio pela terça-feira, esse diazinho à toa que merece a implicância e a repulsa de toda a raça humana.

 

Repare como todos os dias da semana têm sua cara e sua personalidade muito bem definidas, desde o início dos tempos. Sua função, digamos assim, dentro da folhinha. Todos, menos a terça. Só ela não diz a que veio, nos impondo suas intermináveis 24 horas de nhaca mal resolvida. A terça é vacilante, é um dia canhoto, um estorvo do qual é preciso se livrar o mais rapidamente possível. Você já viu alguém dizer que terça é o seu dia favorito? Pois então…

 

Raciocine comigo e veja se não tenho razão. A segunda é, por excelência, o dia do bode (se bem que, se você fizer uma enquete, verá que muita gente curte aquela segundona brava, argumentando que qualquer segunda serve para se livrar do domingo). Apesar de horrível, ela se assume como tal. É medonha e pronto, os incomodados que se afoguem em prantos ou se matem como quiserem. A quarta sinaliza o meio da semana útil, é por vocação um marco divisório e ninguém até hoje veio a público questionar sua utilidade. A quinta tem a dádiva de ser a véspera da sexta, e isso é uma honra para um dia da semana que se preza. A sexta dispensa maiores comentários. O sábado é de aleluia sempre, estando ou não na quaresma, e prenuncia o preguiçoso domingo, ansiado por todos. Beleza. E a terça-feira? É um acidente de percurso, um interstício que se mete onde não é chamado. Enfim, pra que a semana não tivesse 6 dias, que é o número da besta, é que inventaram a terça. Às pressas, sem medir as consequências, desconhecendo infantilmente o monstro que estavam criando para todo o sempre.

 

Da terça, até a religião se esquiva – preferindo manter dela uma sacrossanta distância. Temos, no calendário católico, a Sexta da Paixão, o Domingo de Páscoa, a Quarta de Cinzas, o Sábado de Aleluia. E nenhuma piedade com a terça, esta excomungada. Em contrapartida, os ritos pecaminosos deram a ela algum crédito, instituindo a terça-feira gorda para encerrar os folguedos de Momo. Mas é preciso admitir que “gorda” não é propriamente um predicado lisonjeiro, ainda mais quando atrelado a um substantivo feminino. E é assim, taxada de obesa, que a terça vai empurrando com a barriga a sua perpétua maldição.

 

Sem a terça, o ano teria em média menos 52 dias, o que anteciparia as datas dos aniversários (Uhuuuuu!!!). O fim de semana também chegaria mais rápido e a expectativa de vida aumentaria em 14,28%, ou um sétimo a mais.

 

Extinguir a terça é solução apaziguadora e definitiva, que só trará benefícios. Se depender de decreto governamental para referendar a decisão, sem dúvida teremos quorum de 100% no Congresso para aprovação da medida. Até porque a semana parlamentar, que historicamente se inicia às terças, passará para as quartas. Ou seja, nossos nobres deputados e senadores ganharão mais um dia de merecido descanso em suas bases, antes de retomarem sua estafante rotina em Brasília.

 

Clique aqui para acessar o arquivo de Marcelo Sguassábia (2008)

Clique aqui para acessar o arquivo de Marcelo Sguassábia (2009)

Clique aqui para acessar o arquivo de Marcelo Sguassábia (2010/2011)

 

HOME

 

 

 

 

 

 HOME | ZINESFERA| BLOG ZINE| EDITORIAL| ESPORTES| ENTREVISTAS| ITAÚNA| J.A. FONSECA| PEPE MUSIC| UFOVIA| AEROVIA| ASTROVIA

© Copyright 2004-2012, Pepe Arte Viva Ltda.
Motigo Webstats - Free web site statistics Personal homepage website counter