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Página de Marcelo Sguassábia em Via Fanzine

 

Todos os textos:

Por Marcelo Sguassábia*

De Campinas-SP

Para Via Fanzine

© Direitos Reservados

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* Marcelo Sguassábia é redator publicitário e colunista de diversos jornais e revistas eletrônicas.

É colaborador de Via Fanzine.

   Seu blog: Consoantes reticentes. E-mail: msguassabia@yahoo.com.br.

 

 

 

Holy Night

 

I

Quanto ao acontecido, não pairava nenhuma dúvida: o Menino Jesus de gesso tinha virado os olhinhos na minha direção, dando ainda por cima um risinho de canto de boca. Estávamos os oito na igreja, não podia fazer nada a não ser esperar o fim da missa pra contar a todo mundo. De joelhos na hora da Consagração, eu desacreditava e pedia ao Menino Jesus de verdade pra que o seu clone do presépio parasse de brincadeira. Mas não. Olhava para a manjedoura e ele me encarando. Às vezes até dava uma piscadinha, franzia o cenho, mexia as pernas no berço de palha. Apertava forte a mão de minha mãe, disso sempre irei lembrar, me agarrava febrilmente à sua certeza de que tudo estava bem.

 

II

A lata semiaberta de pastilhas Valda no criado-mudo: aquilo era a cara dele. O enxofre do polvilho Granado se via no tapete e empestava o ar. Se velhinho tem cheiro, cheiro de velhinho é aquele, de talco anti-séptico. Vovô Noel de costelas visíveis e peles flácidas, em suspensórios e camisa regata no casulo do seu quarto, deixava o leito em direção à porta, lento como o badalar dos sinos.

- Oi, vô. Deixa que eu te ajudo, espera aí.

- Deus te abençoe, menino. Que o seu neto também seja carinhoso com você, viu?

Lembrei das lições do catecismo e me senti um escoteiro, ciente do dever cumprido.

 

III

Não, não naquele dia a nuvem de cebola refogada, o enxágue burocrático da louça, as coisas todas em seu lugar e um lugar certo pra cada coisa. Não naquele dia a lida doméstica sem gradientes de espanto. Não naquele dia o arrastar na marra dos ponteiros do cuco, mostrando o tempo que faltava para levar as cadeiras à varanda e jogar fora toda a conversa que houvesse no mundo. Não naquele dia. Não na noite de Natal.

 

IV

No olfato se impunha o assado e seu perfume. Era só ele e mais nada, das seis e meia em diante. Uma coisa de não resistir, de ter de abrir o forno às escondidas e furtar a casquinha régia, a mais cobiçada do bicho, onde a marinada da véspera tinha feito repouso e deixado seu suco.

Papai Noel triunfa e ri seu riso balofo, abre sendas de alegria no chacoalhar da pança. Havia o Natal e havia a urgência dos que não podiam parar apesar dele. Havia o André da Botica Almeida & Filhos, em plena noite de 24 a correr vila em cima da monareta, o estojinho de injeção e o garrote tripa-de-mico na garupa.

- Prefere no braço ou no músculo?

Dizia polidamente músculo, às vezes região glútea, dependendo da intimidade com o doente. Concluída a ronda dos moribundos, como seria o Natal do André? Indo um pouquinho mais longe: rezada a Missa do Galo, como seria o natal do Papa? Com quem irá cear o Pontífice e o que terá sobre a mesa?

 

V

O peru se fatia como se em fatias estivéssemos destrinchando as graças e desgraças da vidinha de costume.

Castanhas sobre a mesa, castanhos são os olhos de quase todos ao redor, pastores vão aos berros clamando por conversão na festa da cristandade.

- Ponha o copo de água sobre o aparelho de TV, ore comigo, meu irmão!

Todos os pedidos jazem serenos nos sapatos. Papai Noel, eu quero. Papai Noel, me traz.

 

 *  *  *

 

Ideias: melhor não tê-las

Não diga a todos a ideia que você teve, pois nem todos têm a ideia de deixar que ela continue sendo sua. Não guarde-a para você, entretanto, pois sua brilhante sacada só fará algum sentido se você dividi-la com todo mundo, ainda que seja genuinamente de sua suada lavra. Paradoxal. Triste e paradoxal.

 

Não pense que procedendo ao registro, com não sei quantas cópias assinadas, autenticadas e protocoladas na Biblioteca Nacional, estará sua ideia a salvo, pois ela poderá salvar a falta de inspiração de alguém que você nem imagina quem seja. Não me pergunte como, mas esteja certo de que é isso que irá acontecer. Um Zé Arruela se apropriará dela sem cerimônia ou peso de consciência, e ficará rico com o seu rebento intelectual enquanto o julgamento do mérito se arrasta na justiça. Se é que você vai ter grana, paciência e tempo para tentar provar que o que é seu é seu mesmo.

 

Não se iluda achando que metê-la num blog, com posts datados, pode ser a prova cabal de que a ideia foi primeiro sua. Por ter atualizações constantes, o larápio internético já sabe com que frequência deve passar por lá para saquear ideias fresquinhas. Muitas vezes bem na hora em que elas saem do forno, para ficar cronologicamente empatado com você no post que ele vai fazer no blog dele. Blog, aliás, com cem vezes mais visitantes que o seu sítio virtual.

 

Não caia na armadilha de gestá-la em seu perfil nas redes sociais, pois estará arrumando um ou mais sócios de copyright, que provavelmente descolarão muito mais curtidores e seguidores que você.

 

Não tente escrever um livro juntando suas muitas e grandes ideias, pois esse livro será digitalizado e disponibilizado nos sites de compartilhamento da vida, e ganhará autoria variada. Não imagine, portanto, em se locupletar ou ao menos viver dignamente com o dinheirinho honesto que porventura conseguiria tirar de seus direitos reservados – um sujeito muito mais esperto se reservará o direito de colocar o nominho dele no lugar do seu. Exceção se faça às bulas medicinais, aos manuais do proprietário, a alguns dos mais obscuros livros do Antigo Testamento, à autobiografia “Mein Kampf”, de Adolf Hitler e, evidentemente, aos “Versos Satânicos”, do Salman Rushdie. Nesses casos, pelo menos até onde se sabe, ninguém apareceu até hoje contestando a autoria. Mas amanhã é outro dia, e ao escrever isso eu já estou dando a ideia a alguém…

 

- Imagem: Thiago Cayres

 

*  *  *

 

Bem-vindo ao Spa Ghetti

 

 

É uma alegria e uma honra recebê-lo em nosso Spa. Para que sua estada seja a mais agradável possível, pedimos seguir à risca as seguintes recomendações:

 

É terminantemente proibido o contato com alimentos pouco calóricos ou com caloria zero. Uma mudança radical de vida, que é afinal o que você busca, exige força de vontade. Em todas as circunstâncias, nosso lema é: EVITE A PRIMEIRA GOTA DE ADOÇANTE. Por minúscula que seja, é o suficiente para acarretar uma severa recaída e botar a perder todo o trabalho de nossos nutricionistas, psicólogos, médicos e personal trainners.

 

Na ingestão acidental de substâncias light ou diet, deve-se induzir o vômito ou proceder a uma lavagem estomacal, para desintoxicação.

 

Nossa tradicional sopa de toucinho com manteiga deverá ser ingerida preferencialmente em jejum, visando o máximo efeito terapêutico.

 

Bolsas, valises e malas serão revistadas diariamente pelos monitores. Balas e demais guloseimas sem açúcar, se encontradas, serão apreendidas e enviadas à família do hóspede. Em caso de reincidência, o próprio hóspede será remetido à sua cidade de origem, juntamente com seus bagulhos de sacarina.

 

Há alguns meses testemunhamos em nossas dependências um episódio constrangedor, no qual um interno foi flagrado com um pé de alface na cueca e dois maços de chicória escondidos nas axilas. Nosso detector de verduras e legumes, instalado na recepção, soará imediatamente se infrações semelhantes vierem a ocorrer.

 

Se, por recomendação médica, você necessitar de alimentação mais leve, sirva-se do nosso bufê de frutas: maçã do amor, banana caramelada, creme de abacate, abacaxi em calda e compota de goiaba.

 

A frequência às piscinas só será permitida com trajes de banha ou camisetas de algodão doce.

O campeonato de Tiro ao Magro acontece diariamente, das 9 às 18h.

 

O ócio é o melhor amigo da genialidade e do impulso transformador. Exemplos disso são Dorival Caymmi, que fez tudo o que fez praticamente sem fazer nada, e Isaac Newton, que descobriu a lei da gravidade descansando embaixo de uma árvore. Nosso Spa é um monumento à inatividade restauradora. A única coisa que se mexe aqui são os ovos mexidos, servidos com fatias de cupim no café da manhã. Assim, lembre-se: ao invés de correr, ande. Ao invés de andar, sente-se. Ao invés de sentar, deite-se. Ao invés de deitar-se, peça que alguém coloque você na cama.

 

Para seu maior conforto, nosso projeto arquitetônico contemplou um total de 16 rampas em declive, permitindo que você chegue rolando aos diversos pavimentos. O retorno aos andares superiores poderá ser feito por teleférico ou guindaste.

 

Ao assistir TV, evite os programas humorísticos. Estudos recentes demonstram que o riso, ainda que contido, promove algum gasto calórico.

 

Como parte do apoio psicológico ao tratamento, sugerimos a leitura dos livros “Só é magro quem quer”, “À procura do quilo perdido”, “GG – Manual do Gordo Gostoso” e “Boi no Rolete – coma sem culpa”, todos à venda na portaria central.

 

Não deixe de visitar nossa sala de massagem, onde seu ego poderá ser massageado com as seguintes afirmações, repetidas em rodízio:

  

1 – Nossa, que gordo lindo!

2 – E aí, fofinha? Na minha casa ou na sua?

3 – Uau, onde é que vai com tudo isso?

4 – Essa é a nora que mamãe pediu a Deus.

5 – Sou gordo, mas quem não é? Saco vazio não para em pé.

 

Por último, uma consideração de natureza filosófica: magros são perdedores, gordos são vitoriosos.

 

O magro é alguém que não conseguiu ganhar peso, ou que perdeu, o que de uma forma ou de outra o coloca como um fracassado – justamente por não ter ganho ou por ter perdido.

 

Você está aqui para ganhar peso. Consequentemente, isso fará de você um vencedor. Parabéns!!!

 

- Imagem: Thiago Cayres

 

*  *  *

 

Subtraído da multiplicação

 

 

Esteve a bem dizer na multiplicação dos pães e dos peixes, aquela dos evangelhos, mas nem por isso saiu com a fome morta. Chegou segundos depois, e do milagre do Messias viu farelos e mais nada.

 

Acabaram com tudo, pensou, comeram a não poder mais e nem um bocado restou ao meu estômago nas costas. Quis mesmo o filho do Criador que fosse assim? E se sim, por que comigo e não com outro?

 

Clamava alento e pena da multidão saciada, que não o via, que já na sesta se estirava digerindo seu fastio, que não conhecia e nem soubera esperar por ele – um parente distante de Zebedeu.

 

Era aquele que teve o azar de chegar depois da fartura que o Salvador fez servir. Assim refletia, quando sentiu a pontada no pé – espinha de peixe esquecida pelos famintos da hora.

Santo sou eu que não como, e que do peixe só levo a dor deste machucado – desabafou, erguendo as mãos para o céu. E seguiu caminhando por meses, devagar e meio manco, até que encontrou as botas que Judas havia perdido.

 

- Imagem: Thiago Cayres

 

*  *  *

 

Operação Paçoca

 

Conforme noticiado em primeira mão pelo site mexeriqueiros.com, o cantor e compositor Evandro Vil foi detido na tarde de ontem, após procedimento de busca e apreensão de paçoca em seu apartamento de cobertura.

 

Pioneiro e expoente do movimento Rustic Music, com proposta estética baseada em uivos e gritos primais, Evandro Vil a princípio negou qualquer envolvimento com a droga encontrada, afirmando tratar-se de armação para incriminá-lo. Entretanto, no decorrer do interrogatório, o astro acabou por confessar o delito, com a ressalva de que a paçoca destinava-se exclusivamente ao consumo próprio.

 

Cabe lembrar ao leitor que, pelas leis do país, a posse, o consumo e o refino de paçoca constituem crimes inafiançáveis, qualquer que seja a quantidade e a forma de processamento – em pó, no formato “rolha” ou prensada. Alguns países fronteiriços com a República do Congo toleram o consumo em porções de até 2,5g para alívio de pacientes terminais, com histórico de prisão de ventre comprovado por atestado médico.

 

Foram apreendidos três pacotes fechados e um começado de 1kg cada, divididos em tabletes individuais de 3cm x 5,5cm. O fato de os fardos confiscados serem prensados leva à óbvia dedução de tráfico – a exemplo dos quadradinhos de haxixe e de Cannabis sativa comercializados pelas quadrilhas de entorpecentes.

 

A substância ilegal estava acondicionada em compartimento blindado, camuflado atrás dos discos de ouro conquistados pelos CDs “Sou mesmo rústico” e “Rústico Acústico”. Corre no meio artístico a informação de que o bolachão de vinil de “Sou mesmo rústico” contém, quando girado ao contrário, mensagens subliminares que fazem a apologia do consumo de amendoim.

 

Fontes ligadas à delegacia de narcóticos afirmaram que o generoso lote de paçocas vinha sendo há algumas semanas rastreado pela alta inteligência da PF, tendo desaparecido na última quinta-feira no chamado triângulo das bermudas – região da Rua 25 de Março formada pelas lojas “Ao Bermudão Elegante”, “Bermuda’style” e “Samba-Canção & Cia”. Ainda segundo os investigadores, o carregamento seria dividido em pequenos lotes, colocados nos bolsos das vestimentas e dali distribuídos Brasil afora.

 

O advogado de defesa de Evandro Vil argumenta que uma celebridade da estatura de seu cliente jamais atuaria no prosaico e pouco rentável tráfico de paçoquinhas. E que, se fizesse da contravenção o seu negócio, optaria por drogas mais pesadas e sofisticadas como a amêndoa, a castanha-do-pará e a macadâmia. Informou ainda que pelo menos 2 dos 3 kg da paçoca interceptada seriam destinados a rituais da recém-fundada seita “AMÉM DO-IN”, que agrega alguns dos dogmas do cristianismo à milenar prática oriental.

 

Contradizendo esta versão, a PF declarou que junto às paçocas foram encontrados dezenas de maços de notas de 1 e 2 reais, o que é um forte indício da venda a varejo do alucinógeno na própria casa do artista. E faz um alerta à população em geral para que se afaste de guloseimas de origem duvidosa e batizadas com nomes inocentes e insuspeitos, como “Madre Úrsula”, “Nana Nenê” e “Sacizinho”.

 

- Imagem: Thiago Cayres

 

*  *  *

 

Viu uma, viu todas – parte 2

 

Receita culinária na TV é aquele arroz e feijão básico, sem tempero e requentado. Experimente um pedacinho:

 

I

- Eu vou desprezar as pontas, porque no caso só nos interessa o miolinho. E sem as sementes, lógico, pra não azedar na hora do cozimento. Isso, pronto… olha só que maravilha. Uma dica: não joga os talinhos no lixo, não. Isso aqui dá uma sopa espetacular e muito nutritiva, rica em vitamina C. É como eu sempre digo – na cozinha nada se perde, tudo se aproveita.

 

II

- Agora os ovos. São quatro, mas nós precisamos só das gemas, então presta atenção como é fácil separar das claras. Ô câmera, chega mais perto pro nosso telespectador ver como é que faz…

 

Bom, enquanto a nossa cebola vai dourando com o alho e o azeite, nesta outra panela a gente já pode começar a preparar o molho de anchovas. Lembrando que o creme de leite, já sabem: só fresco.

 

Aí você me pergunta: posso substituir a sobrecoxa pelo peito? Pode, aí fica a seu gosto. Porque afinal culinária também é invenção, cada um dá o seu toque. Vamos aproveitar pra repetir a receita, mas você também nem precisa anotar nada agora, tá tudo lá no site do programa.

 

III

- Gente, pena que televisão não tem cheiro, porque o aroma aqui tá uma coisa de louco. O pessoal da produção tá com água na boca, todo mundo doido pra cair matando na comida quando terminar o programa.

 

IV

- Televisão é tempo, pessoal. Então faz de conta que já se passaram quarenta e cinco minutos com o forno a 180 graus e tchan tchan tchan tchan… dá só uma olhada que coisa mais linda. Daí é só juntar o molho branco de anchovas e decorar com esses raminhos de alecrim. Comida a gente também come com os olhos, então é muito importante a apresentação, o aspecto do prato na hora de ir pra mesa.

 

Minha nossa, deve estar ruim isso, heim? Vamos fazer o sacrifício de experimentar um pedaço só pra matar de inveja você que tá aí em casa.

 

Huuuummmmmm!!! (girando a cabeça pra cima, fechando os olhos e lambendo os beiços)

 

Huuuuuummmmm!!! (expressão de orgasmos múltiplos)

 

Huuuuummmmmm!!! (Chef quase cai de costas, depois fica com cara de quem está tentando verbalizar o gosto que está sentindo)

 

Meu Deus do céu, coisa de louco. Agradecemos a sua audiência e até a próxima quinta com mais uma receita de dar água na boca!

 

V

 

– Enfim, o acaso acrescenta um ingrediente novo.

(Close no prato pronto encerra a transmissão. Na tela sobem os créditos do programa, mas a equipe técnica esqueceu de colocar a trilha de encerramento. Ou seja, o sinal de áudio no estúdio permaneceu aberto e o programa é ao vivo).

 

Voz do Chef em off:

- Porra, Denilson, da próxima vez vê se espirra um pouco mais de laquê na gororoba, pra dar mais brilho. Olha só como ficou sem graça esta merda!!! Caramba, quantas vezes vou ter que falar? Bom, cês limpam a bagunça aí que eu tenho que ir embora pro meu restaurante. Sim, porque se depender da merreca que os caras me pagam aqui eu acabo morrendo de fome, tá certo?

 

*  *  *

 

Viu uma, viu todas

 

Com raríssimas variações, entrevista de ator em talk-show é sempre a mesma coisa. Ainda que pegue a conversa já começada, dá pra entender tudo. Inclusive que ela é exatamente igual às outras.

 

(pergunta óbvia do apresentador)

 

Bom, acontece que eu estava de férias em Nova York, como eu faço todo ano, quando eu vi a peça em cartaz na Broadway. Me apaixonei de cara pelo texto e voltei pra rever o espetáculo umas oito vezes. Quando eu regressei pro Brasil, ainda no aeroporto eu liguei para o (Diretor consagrado), convidando pra fazer a direção. Pra minha surpresa ele também conhecia o texto e topou na hora.

 

(pergunta óbvia do apresentador)

 

Ah, tem o talento mas também vale a sorte, viu. Tipo estar na hora certa no lugar certo e ao lado das pessoas certas. Aí a carreira anda sozinha, uma coisa vai puxando a outra. Pelo menos comigo, a ida pra televisão foi bem por acaso mesmo, quando o Daniel Filho apareceu num ensaio que estava fazendo pra uma peça do Guarnieri. Assim que acabou o ensaio, ele foi até o camarim e me fez o convite pra substituir o (Ator Consagrado), que estava com amigdalite e teve que se afastar das gravações. Hoje muita gente comenta que não conseguiria imaginar outro ator fazendo aquele personagem…

 

(pergunta óbvia do apresentador)

 

São linguagens completamente diferentes. A minha formação você sabe que vem toda do teatro. Fiz a Escola de Arte Dramática, o Tablado com a Maria Clara Machado e trabalhei um tempo com o Abujamra e o Zé Celso, grande Zé Celso do Oficina. O teatro é aquela coisa cara a cara, tem o improviso, um dia nunca é igual ao outro. Televisão é linha de produção, a interpretação é mais contida, a impostação de voz é diferente, a câmera e o microfone pertinho. E conforme se comporta a audiência a história vai mudando. É uma indústria, né, a gente tem que acatar as regras do jogo.

 

(pergunta óbvia do apresentador)

 

Eu acho assim, é uma troca, entendeu? A gente manda energia pro público e recebe energia de volta. É uma troca mesmo. No caso da comédia, tem o “timing”, você tem que ter o tempo certo da piada, e isso depende também muito do humor da plateia naquele dia. Você sobe no palco e já sente – hoje vai rolar legal, o público tá mais receptivo, ou não… é mais ou menos por aí.

 

(pergunta óbvia do apresentador)

 

Tem uma hora em que você não consegue mais se livrar do papel, e incorpora o personagem na sua vida mesmo. Você quer matá-lo mas ele já ganhou vida própria, é mais forte que você. E aí você se pega na sua casa agindo como o personagem, falando como ele, pensando como ele. É muito louco esse processo. Precisei de uns anos de análise até aprender a lidar melhor com isso.

 

(pergunta óbvia do apresentador)

 

Depois da temporada eu pretendo dar um tempo, ficar com a família, viajar um pouco. Já tenho dois convites pra novela, mas por enquanto eu ainda estou analisando.

 

(despedida óbvia do apresentador)

 

Imagina, o prazer foi meu em estar aqui com você e com esta plateia maravilhosa. Mas, antes de ir embora, se você me der licença eu queria citar os patrocinadores da peça, tudo bem? Você sabe, mesmo com a lei Rouanet, não é nada fácil nesse país encontrar empresas que prestigiem e apoiem a nossa cultura.

 

(pergunta óbvia do apresentador)

 

De quarta a sábado, às 20h30 e aos domingos às 18 e às 21. Espero vocês lá, heim?

 

(apresentador, obviamente, pede pra repetir)

 

De quarta a sábado, às 20h30 e aos domingos às 18 e às 21.

 

(apresentador diz que já volta e pede pra não mudar de canal).

 

*  *  *

 

Happy family

 

A casa perfeita da família feliz recebia, de dois em dois anos, uma demão de tinta na parte externa e nos madeiramentos. A cada seis meses, dedetização e limpeza da caixa d’água. De 45 em 45 dias, o jardineiro para aparar a grama. Diariamente, a perua escolar e suas duas buzinadinhas regulamentares para buscar filhinho e filhinha.

 

Havia pichações por todo o bairro, menos no imenso muro caiado da casa feliz. Nem sinal de sujeira de pomba, fuligem de queimada ou formigueiro. Asséptica e harmônica em suas formas, a casa feliz era quase música, uma figura etérea em meio à feiúra do quarteirão. Tinha chaminé, cerquinha, floreiras nas janelas e o caminhozinho sinuoso que saía da porta em direção à rua.

 

Como de hábito, após dar lustro à coleção de miniaturas papai colocava os planos familiares em planilhas do Excel. Ali ficava horas com seus cálculos e projeções. Mamãe evocava a proteção divina em preces e cânticos. Depois, recolhia as roupas do varal com altivez de matriarca honesta, realizada por dar conta do seu fardo. No armário, as camisas polo de filhinho eram empilhadas por cores, em nuances que iam do vermelho vivo ao bege claro. As pretas e as brancas ficavam em gavetas separadas. Papai mantinha a caixa de ferramentas providencialmente organizada, com um sortido estoque de brocas e buchas. Sobre o rack, o controle do som, o controle do vídeo e o controle da vida ao alcance da mão. No lavabo e nos banheiros as toalhas eram rosa, com monogramas bordados.

 

As fotos da família feliz eram acondicionadas em compartimentos, de acordo com o tipo de comemoração: casamento, batizados, formaturas, aniversários, natais e férias. Ao lado da caixa de retratos, canhotos de talões de cheque acumulados desde 1981, recibos de contas pagas, cópias de declarações de imposto de renda, boletins escolares.

 

Era com nítido orgulho que filhinho se projetava alistando-se aos 18. Filhinha, por sua vez, gastava folhas e mais folhas de papel vegetal a desenhar grinaldas e buquês de noiva. Na casa perfeita, ao romper da aurora, a família fazia seu desjejum com farinha láctea, mel e mamão papaia. Verduras hidropônicas e legumes sem agrotóxicos faziam as delícias do almoço e do jantar. Mais ou menos por essa época, filhinha foi debutante e filhinho escoteiro.

 

A felicidade, ali, se alastrava como fogo em mato seco. Vizinho nenhum jamais ouviu um palavrão saído de dentro daquela casa. Nem um “cala a boca”, um “anda logo”, um “caramba” ou coisa assim. O carro estava sempre limpo e a mecânica em ótimo estado. Todas as revisões feitas nas quilometragens e prazos recomendados pelo fabricante. Dizem as más línguas que um dia, em outubro de 1993, papai esqueceu o guarda-chuva em casa. Mas um boy da firma logo apareceu para buscar.

 

Por volta das três – com margem de tolerância de cinco minutos, para mais ou para menos, filhinha sentava-se ao piano e interpretava com doçura e sentimento uma peça de Clementi. Não constam registros de estouros de champanhe, gritos de gol ou fumaça de churrasco vindos da casa perfeita da família feliz. Eram três, e não mais que três, as ocasiões semanais em que todos saíam juntos: para o culto dominical, para a visita aos pais de mamãe e para divertirem-se a valer vendo os aviões pousando no aeroporto.

 

No aconchego daquelas quatro paredes, os narizes eram assoados silenciosamente, o piso era encerado com regularidade monástica, os travesseiros exalavam a alfazema mais pura desse mundo. As contas nunca eram pagas na data de vencimento – no mais tardar dois dias antes. Os vestidos de mamãe eram todos 4 dedos abaixo do joelho. Os cachimbos de papai eram escovados e acondicionados em saquinhos de veludo. Filhinho não sabia o que era cotovelo ralado. Filhinha não sabia o que era amasso no portão. Mamãe era professora mas não exercia a profissão. A família feliz sabia que roupa suja se lava em casa, mas nunca havia roupa suja para se lavar. Papai e mamãe não se esqueciam e se saudavam mutuamente no aniversario de noivado. Com menos entusiasmo que no aniversário de casamento e mais calorosamente que no aniversário de namoro. Por sua conduta exemplar, papai foi várias vezes convocado a compor júri no fórum. Era sócio benemérito do conselho para o bem-estar comunitário. Mamãe colaborava com as obras do berço.

 

Um belo dia papai reuniu a família feliz, pegou os 20 metros de pisca-pisca natalino guardados numa gaveta da edícula, dividiu-os em 4 partes de 5 metros, distribuiu uma parte para cada um. Foram os quatro encontrados na sala de estar, os corpos dispostos de maneira simétrica e em ordem cronológica decrescente.

 

 *  *  *

 

Relatos literais: cor de burro quando foge

 

Reconheço de antemão que a comprovação de qual seja fielmente a cor do burro foragido continuará sendo uma das grandes interrogações do homem contemporâneo, de demonstração tão complexa quanto o último teorema de Fermat. Não é justo, entretanto, que me furte a trazer aos cativos deste espaço dois experimentos que se propõem, cada qual a seu modo, a elucidar a questão e quiçá lançar uma pá de cal sobre o assunto. Julgo, todavia, que ambos nunca estiveram tão longe da verdade, como perceberá o leitor no breve relato que se segue.

 

O primeiro é um tanto quanto frágil no tocante à metodologia científica adotada, pois se baseia meramente na acuidade visual dos investigadores.

 

Sustenta este grupo de nefelibatas, composto por pesquisadores do Alabama, que o ato da fuga enrubesce o animal devido ao esforço físico exigido, o que confere momentaneamente ao mesmo uma coloração que varia entre o rosado e o vermelho-vinho, passando pelo magenta queimado. Esta elástica paleta de cores, convenhamos, continua a deixar a questão sem resposta. Vale notar que argumento semelhante rendeu defesa de tese há cerca de 12 anos na Universidade Quincas Borba, cuja banca examinadora era encabeçada pelo laureado professor Demóstenes Benz, sobrinho-neto da mundialmente famosa Mercedes. A discutível validade dos achados, somada à suspeita de plágio que paira sobre os autores, me autoriza a desconsiderar a pesquisa na fundamentação de qualquer investigação rigorosa que se empreenda sobre o tema, aqui ou no exterior.

 

O segundo experimento levanta a hipótese de que a cor do burro em desabalada carreira se manifestaria em sua epiderme. Sendo o bicho coberto por espessa pelagem, seria logicamente impossível um flagrante fidedigno. Assim, procedeu-se à realização do teste em uma área previamente raspada, próxima à crina do quadrúpede.

 

Expoentes diversos do setor de medicina veterinária julgaram o resultado cromático obtido na empreitada como inconclusivo, uma vez que refere-se especificamente a um burro estudado, e não ao conjunto de burros fugitivos espalhados pelo planeta. Argumentaram que a amostragem só ganharia lastro científico se contasse com pelo menos cinco grupos de controle, formados por burros de cada um dos cinco continentes.

 

Outras contundentes objeções também não faltaram a este estudo, consideradas impeditivas para a exatidão dos laudos apresentados:

 

. O grau de inclinação do terreno onde se realizou o galope;

 

. A natureza do solo, sua porosidade e o coeficiente de resistência entre este e as patas do animal;

 

. A quantidade de feno consumida desde a véspera pelo burro-cobaia, bem como o total de líquido ingerido e o número de horas dormidas na noite imediatamente anterior aos testes;

 

. A raça, a idade, o peso e as variantes de temperatura, pressão arterial e batimentos cardíacos do dito cujo.

 

Finalizando, podemos categoricamente afirmar aquilo que já tinha-se como comprovadamente constatado, ou seja, a cor de burro quando foge é da cor do burro quando foge.

 

*  *  *

 

Amor intergalático

 

 “Imagine dois jovens gêmeos idênticos. Um deles é recrutado para ser astronauta e fazer um voo experimental em uma nave capaz de atingir 50% da velocidade da luz. Ele parte, vai até Alfa Centauri (a estrela mais próxima do sistema solar) e volta, numa viagem de 16 anos. Quando retorna, a surpresa: seu irmão gêmeo já é um idoso, à beira da morte, enquanto ele envelheceu apenas o tempo da viagem”.

(Superinteressante, Ed. 265, maio/2009, pág. 20)

 

- Não tem trocado, moço? A passagem é R$2,50 e não tenho troco pra R$100.

- Eu acerto com você na volta, então. Tudo bem?

- De jeito nenhum. Quando o senhor voltar eu vou estar mortinha da silva há muitos anos.

- Ah, é. Tinha esquecido deste detalhe.

- E vai que a nave desembesta e atinge a velocidade da luz… aí o senhor vira luz também. E luz não paga o que deve pra ninguém. Nem conta de luz.

- Faz sentido. E pra falar a verdade eu tô embarcando justamente pra escapar de uns credores que andam me enchendo a paciência. Uns três ou quatro anos de viagem, a uma velocidade beirando aí os duzentos e noventa mil quilômetros por segundo e pronto. Quando fizer o retorno a dívida já vai ter caducado há décadas. Fora que eu vou estar só com um pouquinho mais de idade e perfeitamente apto a galinhar as bisnetas dos caras que estão me cobrando hoje.

- Pensou em tudo, heim?

- E outra: supondo que os meus credores de hoje fiquem com o meu patrimônio, vou recuperar tudinho e muito mais casando com uma das bisnetinhas.

- O que é a tecnologia, não?…

- Bendito Albert Einstein e sua Teoria da Relatividade. Aposto que ele não tinha atinado com este maravilhoso desdobramento enquanto se matava de trabalhar enunciando suas descobertas.

- Pro senhor ver.

- Bom, voltando ao nosso teórico e relativo impasse. Não tem mesmo troco pra 100?

- Não tenho. Se tivesse a gente não ficaria aqui perdendo tempo, o senhor já teria embarcado e, quando voltasse do seu passeio intergalático, eu, coitadinha, já estaria comendo grama pela raiz. E vale-transporte, o senhor não tem nenhum aí? A gente aceita.

- Eu sou autônomo, quisera eu ter um patrãozinho pra me pagar a condução. E por favor, não me chame mais de senhor. Falando comigo desse jeito, me sinto mais velho que o Einstein naquela foto com a língua de fora. Olha, acho que o destino tramou para que você não tivesse troco. Seria uma tristeza voltar dessa viagem sem graça e encontrá-la na sepultura… que desperdício, imagina só.

- O senhor está sendo um tanto precipitado. Nos conhecemos agora e o senhor – quer dizer, você – tinha outros planos em mente, muito mais audaciosos. Pra quem imaginava um golpe do baú espacial você está se contentando com muito pouco. Se eu te mostrar o meu salário e a pindaíba em que vive a minha família, você muda de ideia já.

- Então vamos fazer o seguinte: enquanto eu fico aqui resolvendo o que fazer, você cobra as passagens de outros viajantes e arranja troco pra minha nota de 100. Daí, quando acabar o seu expediente, a gente toma uns drinques e de repente você decide ir comigo. Afinal de contas, você não vai querer ficar a vida inteira trabalhando de cobradora de foguete, certo?

- Mas antes você se casa comigo?

- Ô louco. Depois eu é que sou precipitado… vamos com calma, pra isso tem tempo.

- Todo o tempo do mundo, meu senhor. Quer dizer, meu amor.

 

*  *  *

 

Mortos de rir

 

O Willy não precisava ter ido tão cedo. Não precisava mesmo. Uma desatenção nossa e olha ele aí, finado. Ainda se tivesse procurado o fim – tomado veneno de rato, dado um tiro na têmpora, um enforcamentozinho. Mas assim, pego de surpresa, ver-se defunto da noite pro dia e a contragosto, não deve ter sido fácil.

 

Bom Willy, tão viciado em vida e de repente nessa situação. Em quase todas as sepulturas do cemitério, a estrelinha e a cruz, a data da morte e o dia do nascimento. Com estrela você combina, mas cruz não é o seu estilo.

 

Prometo que, tão logo o padre encomende sua carcaça, cairei fora desse latifúndio de esqueletos e entrarei no bar mais próximo para beber à nossa saúde. À minha aqui embaixo e à sua aí em cima, seu desalmado. Embora beba quase nunca, farei isso por você.

 

Aguardo, sua besta, você numa noite dessas pra me puxar as pernas, fazendo gracejo das coisas sagradas. O céu nunca mais será o mesmo depois da chegada de “Aero Willy”, o querubim gozador. Tô até vendo você tentando empurrar uma rifa pra cima de São Pedro ou convencendo Santo Expedito a ser seu fiador numa confortável nuvem de dois dormitórios.

 

Quero que fique em relevo no mármore branco e no granito preto desses túmulos um pouco dos melhores momentos que tivemos. Um dia, querendo ou não, a vida vai me mover um processo de desapropriação e virei também morar por essas bandas. Seremos vizinhos de novo, como éramos de rua.

 

Agora é essa serra azulada circundando o campo santo. Deixar você assim desamparado, no meio de tão desanimadas companhias, é de cortar o coração. Sinto um espírito me soprando ao ouvido: “escreve aí no seu texto pra cuidarem mais da gente. Só lembram que a gente existe dia 2 de novembro, isso é uma desumanidade”. É justo. Inexistente também existe. Não é porque morreu que deixou de merecer consideração.

 

Assim como os vermes daqui a uns dias avançarão com menos apetite sobre os seus restos, as lembranças suas também irão perdendo o brilho e a nitidez, sei disso. Sei do inevitável disso. E deixo subirem à mente as pipas todas que soltamos e milhões de bolhas de sabão, da época em que a gente tinha o tamanho dos anjinhos tocadores de trombeta, iguais a esses da tumba aqui do lado.

 

- Acorda aí, palhaço. Que cara de sonso é essa…

- Willy, é você? Eu tava sonhando ou é você que veio me buscar?

- Dá um cigarro, vai. Anda.

- Tá, mas primeiro me conta o que é que está acontecendo.

- Calma, tudo a seu tempo. E tempo a gente tem de sobra daqui pra frente.

 

Caímos na gargalhada. Acesso de riso no cemitério, coisa mais sem cabimento. Rimos tanto que apagamos as velas com as nossas risadas. Ao fundo, a trilha de Nino Rota para “Oito e Meio”. O coveiro passa por nós, mede a dupla de cima a baixo e faz um “tsc-tsc” de desaprovação.

*  *  *

 

Relatos literais – Viajar na Maionese

 

Duvido que você conheça alguém que tenha ido até lá e não tenha voltado cheio de histórias fantásticas para contar. Coqueluche do mercado turístico brasileiro e internacional, a chamada Costa da Maionese vem atraindo, com seus deslumbrantes encantos, um número cada vez maior de veranistas mineiros, gaúchos, amazonenses e polinésios.

 

Nossa equipe de jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas decidiu conferir de perto, quilômetro a quilômetro, toda a adrenalina desta espetacular aventura.

 

Como seria de se prever, durante o percurso o veículo apresentou dirigibilidade comprometida e comportou-se como se estivesse num rinque de patinação. Além da falta de agarre dos pneus e da instabilidade na suspensão, o atrito constante com o creme interferiu na aerodinâmica, efeito que tornou-se mais intenso à medida em que aumentávamos a velocidade. Mas não se impressione: em pouco tempo você se habitua às condições da pista e ganha confiança suficiente para transportar as crianças, a sogra e até um boitatá de porte médio no banco de trás.

 

O ideal é encarar inteiramente nu o trajeto, dispensando inclusive a sunga, sob pena de engordurar suas peças de roupa a ponto de torná-las imprestáveis.

 

Recomendamos unir o útil ao agradável, permitindo que a oleosidade da maionese tenha efeito de protetor solar na pele.

 

Sentir-se untado dos pés à cabeça é sem dúvida uma sensação indescritível, talvez só superada pelas cócegas na região axilar. A empreitada é realmente divertida, mas nem tudo é um mar de Hellmann’s. Um vidro um pouquinho aberto em uma das janelas pode ser o bastante para a entrada de salmonelas, o que significa parada obrigatória antes do próximo pedágio. E às pressas, à beira do acostamento mesmo – como de fato veio a acontecer com o nosso repórter, que encontra-se até hoje em observação na UTI do Hospital Sacré Couer, sem previsão de alta.

 

À parte estes poucos e eventuais dissabores, viajar na maionese costuma ser uma deliciosa experiência. Entregue-se ao deleite de observar de perto e fotografar o suco de limão misturando-se às gemas de ovos e aos óleos vegetais, em lustrosa e inesquecível homegeneidade, até dar ponto turístico. O fenômeno lembra, de certa forma e guardadas as devidas proporções, a pororoca amazônica. Passeie despreocupadamente a bordo de facas, garfos, colheres e outros utensílios autopropulsores, em companhia da família, provando de todas as variantes possíveis dessa iguaria culinária: a maionese de casamento, a de Natal e ano novo, a de atum com a manjadíssima rosa feita de pele de tomate e até a vegan, que tem de tudo menos maionese de verdade.

 

Quanto a opções de hospedagem, fique tranqüilo: ao longo de todo o trajeto espalha-se uma extensa rede hoteleira, com guias e roteiros customizados para os mais diversos gostos e paladares. Aproveite até o último bocado. E lembre-se: uma vez de volta ao ponto de origem, feche bem o pote e conserve-o sob refrigeração, observando o prazo de validade do produto.

 

*  *  *

 

Esta é a sua vida

 

- É daí que publicaram o anúncio “Sua vida inteira com preço pela metade”?

- Isso. Eu escrevo biografias por encomenda. Tenho quatro na fila, só pra esse mês.

- Mas essa oferta é pra todo mundo ou é só pra quem tem uma vidinha do tipo mais ou menos, sem muitas peripécias?

- Olha, tanto faz se a vida é da Dilma Rousseff ou da tia-avó dela, que ficou lá na Ucrânia.

- Bulgária.

- Isso, Bulgária. É indiferente, meu camarada.

- Então, mas pra aproveitar a promoção existe um limite de páginas?

- O meu sistema de cobrança é por vida, não por página. Caso o livro fique fininho, não tenho nada a ver com isso. Se a vida do sujeito é inexpressiva a culpa é do biografado, não do biógrafo. Agora, uma vida cheia de sobressaltos é mais trabalhoso, enquanto que uma vida sem muitos altos e baixos é mais tranquilo de fazer. De qualquer forma, não tem diferença de custo.

- Mas você concorda que, se eu tenho uma vida comum, eu não vou querer uma biografia, certo? Vou falar o quê? Que eu acordo, escovo os dentes, tomo café da manhã, vou trabalhar, volto pra casa, janto e vou dormir? Quem é que vai querer ler isso?

- Bom, se você pensa assim, então porque tá ligando?

- Isso é problema meu. O senhor faça o favor de ter mais educação com os seus clientes potenciais.

- Tá bem, me desculpe, é que você me ligou num momento meio conturbado. O velhinho que eu estou biografando está morre-não morre e a história toda ainda está patinando no capítulo 3. Mais exatamente na parte do bolo estragado da festa da crisma. E o pior é que o velho está com insuficiência respiratória severa. Eu tenho que ficar com o ouvido colado na boca seca do desgraçado pra ir ouvindo aos poucos o que ele fala. Daí então eu corro pro computador, escrevo aquilo que ele disse e volto pra ver se arranco mais alguma coisa antes que ele bata com as dez.

- Sei. Só que pra contratar os seus serviços eu preciso ver algum livro que o senhor tenha escrito, pra avaliar o estilo, sabe como é. Tenho que ver o que eu estou comprando.

- Sim, sim. Podemos dar um jeito, embora o meu nome não apareça como escritor por questões de contrato com o biografado. Pra todos os efeitos, é o sujeito que escreveu, entende? Escritor fantasma não tem portfólio.

- Certo, mas agora voltando ao orçamento. Como eu ainda estou muito bem disposto e não pretendo morrer tão cedo, mereço um desconto extra. Não dá pra comparar o trabalho que o senhor vai ter comigo com aquele que está tendo com o velhinho vai-não vai. Posso inclusive ir aí na sua casa, pra facilitar as coisas na hora de contar as histórias. Além disso o senhor deve estar meio a perigo, já que publicou seu anúncio num site de compras coletivas. A coisa anda feia pro lado do seu cheque especial, não anda não? Me vê aí o melhor preço à vista que o senhor pode fazer.

- Não estou matando cachorro a grito, não! Como disse, meu amigo, tem quatro na sua frente e a fila tem que andar. Portanto, se for continuar me esnobando, eu tenho mais o que fazer.

- Quanto, eu quero saber quanto sai a brincadeira…

- Então, tá. Vou dar o meu preço sim. Sabe quanto? Dois reais. Dois reais está bem pago, porque pelo jeito a sua vida é tão nula que não vai me dar trabalho nenhum. Não deve encher nem um gibi. Quando muito, um folhetinho desses que distribuem no semáforo.

- O quê????

- Se bobear, cabe tudo na frente. Não precisa nem do verso.

 

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12 years old

 

I

 Chamemos de “platô” aquele efeito áureo, a sensação boa do pileque propriamente dito. Pena ser efêmero demais, raramente vai além de dez minutos esse golden moment. E não adianta querer prolongá-lo. Está quase sempre entre o fim da primeira e o começo da segunda dose. Interessante a percepção da lindeza extrema que emana das coisas desimportantes, nesta fase do processo. Mesmo você, quem diria, acaba ficando lindo. Veja até onde pode chegar a alucinação da bebida…

 

II

Três ou quatro generosas bicadas e se instala o fator solidário, a ânsia de dar e receber calor humano, a qualquer preço. Sem que você tenha a menor possibilidade de controle, esse espírito natalino fora de época se esparrama por tudo e todos. Sobra até para o rato no ralo do quintal – a quem você não negaria um trago nem um abraço caloroso, fosse ele do seu tamanho e chegado numa birita. Vai um queijinho pra acompanhar, ratão velho de guerra?

 

III

Vamos de cowboy porque está frio. Você desliga do que interessa – as coisas enfadonhas sujeitas às leis de ação e reação, causa e efeito – como, por exemplo, deixar de pagar a parcela de financiamento do carro e ter suas garrafinhas de Buchanan’s confiscadas. A partir daí, você começa a entrar numas até com o rejunte do azulejo, filosofando longamente sobre o papel fundamental de suas vias lisas e pavimentadas para a locomoção segura das formigas caseiras. Você olha para o hominho de saiote do rótulo e se pergunta se é aquele cara desenhado a bico de pena quem engarrafou o bálsamo, ou quem seria o escocês dono da destilaria, ou porque os paraguaios são tão grosseiros em suas falsificações, ou o que faz o Natu Nobilis provocar furúnculos no rosto de seus apreciadores.

 

IV

A questão é que a sua autocrítica muda bastante depois do primeiro copo esvaziado, e aquela promessa de fazer da primeira a única dose fica na promessa. E do fugaz platô você escorrega pra fase xarope e decididamente torpe, onde tenta o resgate do estado de graça bebendo mais, e mais, e mais. É justamente essa a hora do seu pai chegar, com o mesmo bigode fino e o mesmo terno de linho da foto no criado-mudo, trazendo debaixo do braço uma penca de lembranças bem mais envelhecidas que os 12 anos do uísque. Ao lado vem seu avô, arrastando os chinelos e deixando um rastro de polvilho Granado pelo corredor onde você neste momento passa trançando as pernas, a caminho da geladeira e em busca de mais gelo. Sim, o gelo faz render mais o líquido precioso.

 

V

Você baixa os olhos. O livro sobre a mesa. A página misteriosa, a mais intrincada e hermética passagem da Clarice Lispector, uma que você marcou para tentar decifrá-la daqui a alguns anos, ganha entendimento tão elementar quanto um gibi do Chico Bento. Um sentido que só se anuncia com os neurônios assim, meditando em seus divãs. Isso é o que se passa enquanto o entorno flutua e parece sussurrar vozes de outros planos, a estranha certeza de estar a um fio da próxima dimensão. Você volta ao kilt do hominho da garrafa, a curiosidade aumenta e, já que o computador está à sua frente, você acessa o site do fabricante. O patrocinador da sua trip falando dele mesmo. A história, o portfólio de produtos, fale conosco. A realidade é movediça, o dedo de Deus mexe o drink onde você turbilhona como se estivesse dentro de uma máquina de lavar.

 

*  *  *

 

Equino equívoco

 

Eu não poderia estar aqui. O homem do abate deve estar bêbado. Cavalos não vão para o matadouro, morrem de velhos. E não me venham, por favor, com a propalada mortadela equina, que isso é lenda infundada. O que se poderia aproveitar da minha carne adocicada e gordurosa para fazer embutido não justificaria o custo, o trabalho e a duvidosa aceitação do paladar humano.

 

Entrei na fila errada, e ela está andando rápido. Digo que é doído o sentimento do boi, a agonia adrenando as tripas, a certeza ancestral de saber ser este o caminho da morte. O boi conhece a sua hora e aceita sua fatalidade assim como se conforma com o afastamento prematuro da mãe, com o leite surrupiado dele para fartar os meninos de bigodinhos brancos e poupar os seios de pera das mamães novas. O boi é triste e conformado, tem a noção instintiva de que nasce para abandonar a vida no auge do viço.

 

Com cavalo é diferente. O máximo que fazem é usar nossa crina em arco de violino. Até o esterco é subaproveitado. Com um pouco de sorte ou influência leva-se um vidão puxando charretinha em estância hidromineral. Pangaré manso, só no trotinho pra criança não assustar. Que galopem eles, que se dizem racionais, em suas metrópoles. Que se ferrem, que se esfolem e se matem para amealhar a porra do dinheiro que no fim das contas será gasto lá, na calmaria das montanhas, em infindáveis voltinhas de seus pimpolhos carregados pelos meus primos, enquanto eles fornicam em suas suítes.

 

Agora só tem mais um na minha frente. Basta um relincho pra que me tirem daqui ou terei que meter um coice no peito desse imbecil?

 

*  *  *

 

Nasce uma holding

 

Seja no mercado corporativo, seja no residencial, a pujante indústria de monogramas (para quem não sabe, camisas e roupas de cama e banho com as iniciais do usuário) vive hoje uma fase áurea. A disseminação desenfreada do seu uso, especialmente dos modelos em letras góticas, traz alento aos tradicionais fabricantes e aguça os empreendedores que procuram oportunidades de fazer dinheiro rápido com risco zero.

 

Ainda que muito promissor, o segmento definitivamente não é para amadores e aventureiros do marketing. A empreitada exige ciência e faro, e não basta um portfólio com meia dúzia de pijamas bordados para transformar um reles auxiliar de costura num Christian Dior dos monogramas, com unidades fabris da China ao Cazaquistão.

 

Mesmo quem já está estabelecido e com sólida carteira de clientes sabe que o negócio não prospera sozinho, e que é imperioso inovar sempre – especialmente nos sistemas de gestão.

 

No intuito de reduzir custos, obter total controle da qualidade do produto final e concentrar os diferentes elos da cadeia produtiva de monogramas sob um único guarda-chuva, optamos pela criação da Holding Monograma Inc.

 

O Grupo compreende coligadas de administração autônoma, cada uma delas responsável por fomentar com seus insumos uma etapa específica do processo industrial.

 

MONOGRAMA FAZENDAS REUNIDAS

Área total de 20.634 hectares destinada ao cultivo de algodão, matéria-prima básica para as linhas de cores variadas e em sintonia com as últimas tendências dos mercados interno e externo.

 

MONOGRAMA BIOAGRÍCOLA S/C

3 plantas dedicadas à pesquisa, ao desenvolvimento e à formulação de defensivos agrícolas para aplicação nos algodoais. Todas em conformidade com a legislação ambiental vigente e regidas pelos mais modernos conceitos de automação e sustentabilidade.

 

VAD RETRÓS S/A

Empresa de sociedade anônima que reúne centenas de máquinas injetoras de plástico bioformulado, dedicada à produção dos retroses das linhas a serem utilizadas nos bordados.

 

NEEDLES & NEEDLES LTDA.

É a Metalúrgica do Grupo, responsável por suprir a manufatura de monogramas com dedais e agulhas de costura de variados calibres.

 

ETFMO – ESCOLA TÉCNICA DE FORMAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA

Forma, capacita tecnicamente e disponibiliza programas de reciclagem aos nossos 37.871 colaboradores diretos, ou seja, o quadro de funcionários alocados na execução propriamente dita dos bordados – etapa final de um longo e dispendioso processo, recompensado pela incontestável e cada vez mais elástica liderança de nossa marca.

Concluindo, convidamos toda a população a participar do projeto “Monograma, minha gente!”, a ser realizado no próximo dia 7 de setembro, no Estádio do Mineirão. Nosso objetivo é reunir um total de 65.000 pessoas para bordarem, simultaneamente e ao som do Hino da Independência, aquele que seria o monograma de Dom Pedro I, contemplando as iniciais de seus 18 nomes: Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. A empreitada, com duração prevista de 22 horas ininterruptas, premiará com um carro zero quilômetro a(o) bordadeiro(a) amador ou profissional que primeiro concluir a tarefa proposta. O evento será transmitido em rede pelos canais abertos de televisão, sem intervalos comerciais.

 

*  *  *

 

Ele

 

Esse era o quarto dele. Ainda é, quando acontece de vir até aqui ver essa velha que Deus insiste em não querer levar. Rústico desse jeito, pé direito alto e esse exagero de janelas. Ele, menino, ficava brincando de acender e apagar a luz, com esse interruptor do lado da cama. Falava de cinema, gostava disso. Godard, Fellini, Antonioni, gente assim. Tá tudo como era, só a lâmpada que desde 1965 trocamos umas vezes. Mas não muitas, umas quatro. Pra você ver como o cômodo de lá pra cá ficou mesmo abandonado. Certa ocasião, em campanha, Antônio Carlos ficou hospedado aqui. De noite, nessa cama, ele ficava pensando. Tô falando dele, não do Antonio Carlos.

 

Esse vidro de Hellman’s aí em cima do criado-mudo tem a camaleoa que um dia ele raptou numa moita da pracinha e resolveu conservar no formol. Tá mais pra iguana, porque camaleão é bicho que não tem na Bahia. Não se desfez do pobre, disse que dava sorte. Mas também não levou pro Rio. Então fica aí, fazer o quê.

Eu, você sabe, é de casa pra igreja e da igreja pra casa. E quando estou no meu canto, é o dia inteirinho abrindo a porta a quem bate pra conhecer o lugar onde ele nasceu. Não é difícil chegar carro apinhado de gente, mas nunca falta uma cajuína geladinha com tapioca pra servir.

 

Sei dizer que, com aquela história toda de misturar Chacrinha, Vicente Celestino, um tal de Oswald de Andrade, Beatles, parangolé, ditadura e o que mais estivesse sob o sol nas bancas de revista, ele foi indo e ficando conhecido, nada no bolso ou nas mãos. Pelo menos no começo, antes das câmeras, porque depois o bolso não ficou mais vazio, muito pelo contrário. Mas nem por isso o deixei de fora das minhas orações, achava aquilo tudo um endoidamento passageiro, coisa de cabeludo de um tempo conturbado. Quando eu tinha, sei lá, uns sessenta e ele uns vinte ou um pouco mais, cantando aquela música das Cardinales bonitas.

 

O irmão mais velho dele mexia com pirógrafo, fazia coisas em madeira pra turista levar de lembrança da cidade. Esse meu menino vive até hoje comigo. Daqui a pouco ele chega e eu te apresento. Não é a cara dele, como a irmã, mas também não é o avesso do avesso do avesso do avesso.

 

Numa tarde assim, que nem essa de hoje, ele chegou pro irmão, enrolando os caracóis dos cabelos, e falou: “Eu vou escrever aqui uma coisa sonora e linda, tão sonora e linda que é bem capaz de dar filme ou quem sabe música um dia, quando daqui partir pro sul. E é bom que escreva a fogo pra ser difícil de esquecer.

 

E grafou com o pirógrafo, numa letra um pouco trêmula, uma frase na cuia do berimbau: “Existirmos, a que será que se destina?”.

 

Acontece que hoje, a bem dizer, ele está sabe Deus onde, segue de hotel em hotel, entende como é? Ao léo e sob o mesmo sol nas bancas de revista, só que agora estampando as capas. Ele e a irmã, tão longe e tão daqui, continuam meninos novos correndo no quintal, na minha teimosia de mãe velha. Penso nele, espero tocar o telefone, olho pro retrato dele da época do exílio. E vamos vivendo, com a bênção de Santo Amaro. Quando a saudade dói muito, uma canção me consola.

 

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Relíquias

 

Com inenarrável satisfação, comunicamos aos amigos, frequentadores e à comunidade em geral que, no recente ranking publicado pela Associação Mundial dos Leiloeiros, ficamos posicionados pelo quinto ano consecutivo em terceiro lugar, atrás apenas das casas de leilão Sotheby’s e Christies.

 

Queremos dividir esta representativa conquista com todos os que prestigiam o nosso trabalho, e aproveitamos para informar as próximas raridades a serem leiloadas por nosso intermédio, detalhadamente descritas a seguir.

 

- Pequeno frasco contendo aproximadamente 7ml de água colhida na torneira do quintal da casa habitada por Neneco, baterista do lendário “Sambalançando”, 3 meses antes do mesmo tornar-se celebridade nos palcos de Osasco e Guadalajara. Em poder da faxineira que prestava serviços à época, na residência de Neneco, o item possui Certificado de Autenticidade, lacre com holograma antifalsificações e assinatura de perito juramentado. Deusdinéia de Jesus afirma ter acompanhado, enquanto regava as plantas, vários ensaios dos futuros ídolos das gafieiras dos anos 50 e 60. Antevendo o sucesso que em breve fariam, a profética serviçal desviou um balde cheio até a boca da referida água, tendo comercializado, quando do estouro da banda, milhares de frascos a peso de ouro – que renderam à doméstica três apartamentos duplex e um triplex no bairro de Perdizes. Este último frasco remanescente, que irá a leilão em novembro próximo, contém as derradeiras gotas da aquosa preciosidade.

 

- Uma folhinha de grama do tipo Esmeralda, muito provavelmente pisada por um ou mais membros do “Formidable’s  Summer Trio”, quando a caminho do palco, no show que fizeram dia 03/11/2005, por ocasião da Feira Agropecuária e Industrial de Formosândia. Análise microbiológica da relíquia detectou fragmentos de borracha vulcanizada que coincidem com o tipo de sola do calçado utilizado pelos integrantes do conjunto, que alçou o estrelato pelas mãos do saudoso maestro Luiz de Arruda Paes.

 

- Prova, contendo erro crasso de revisão, da página 72 do livro “Marimbondos de Fogo”, obra que rendeu ao ilustre ex-presidente José Sarney uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

 

- O quarto e mais valioso item encontra-se em exposição provisória na antecâmara do nosso recinto de leilões, sob uma redoma à prova de balas. Transportado em carro blindado com escolta de 12 viaturas, o artefato fez parte do acervo pessoal da soprano Maria Domitila Ferraz Gotlieb, que notabilizou-se como a mais esplendorosa Vanusa cover de Sorocaba e região. Trata-se de um guardanapo folha dupla, medindo 42×42 centímetros quando aberto, com marcas de batom da artista misturadas a resquícios de espaguete à bolonhesa, prato servido à diva cover e sua trupe após show no Clube Athlético “Afufe o Fole”, com sede na estrada vicinal que liga Agudos a Agudos Mirim. A renda obtida pelo leilão deverá ser revertida a oito diferentes entidades assistenciais de Morrinhos – GO, conforme prevê o testamento deixado pela artista.

 

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Ocorrências policiais da província

 

A loja de armarinhos de Dona Matilda foi invadida ontem por meliantes desaforados, que, após renderem a proprietária, buliram nas partes baixas de sua primogênita. No momento do assalto, a filha de Dona Matilda fechava o caixa. Os gatunos levaram a féria do dia – montante estimado em R$ 29,95, mais dois novelos de lã da marca Cléa e alguns retrozes de linha. A polícia vem empreendendo incessantes diligências no sentido de reaver as mercadorias, mas até o momento só recuperou um dos dois novelos, achado no porta-malas de um Chevette abandonado às margens de um capinzal. O retrato falado do outro novelo foi afixado em vários postes do nosso município e enviado por fax às unidades policiais da região.

 

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Sansara Mahranta, dono do Espaço Holístico Luz do Oriente, compareceu à delegacia para dar queixa do estabelecimento vizinho, a churrascaria Boizão Grill. O mestre iogue argumentou que o cheiro da picanha na brasa atrapalhava a concentração dos seus alunos na prática da meditação. Frisou ainda que tal odor, misturado ao incenso de jasmim, causava náuseas insuportáveis em pelo menos 70% da classe, e que todos ameaçavam trancar matrícula caso persistisse o fumacê bovino. Até o fechamento desta edição, as partes envolvidas não tinham chegado a um acordo amigável.

 

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O menor J.L.C. foi detido para averiguações ao ser pego com a bicicleta de outro menor, Z.B.F. Inquirido sobre as razões que motivaram aquele ato reprovável, J.L.C. argumentou que só queria dar uma voltinha, e que devolveria a bicicleta a Z.B.F. tão logo concluísse um passeio no quarteirão. Após uma série de sopapos, cascudos, croques e piparotes do pai da vítima no guri infrator, o Cabo Éverton estabeleceu que o menor deveria, a título de pena, engraxar os coturnos de todos os membros da Corporação, durante um mês, tendo o garoto que fornecer os apetrechos necessários à tarefa: graxa nugget, pano e escovas de polimento, além da caixa de engraxate.

 

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Na quinta-feira passada, o Vigário Adamantino dirigiu-se ao Distrito para denunciar do sumiço de vinho da paróquia, atribuindo ao sacristão Denófrio a autoria do furto. Como prova, trouxe consigo uma devota de São Judas, a qual, tendo participado recentemente de uma quermesse escolar, identificou o vinho do padre como um dos ingredientes utilizados no ponche do evento.

 

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Domingo último, por volta das 21h14, o Dr. Augusto Vicentino Soares saboreava calmamente seu chumaço de algodão doce na praça central. No momento em que a Banda Municipal executava “O Cisne Branco”, Dr. Augusto notou um movimento atípico atrás de um arbusto próximo. Remexendo com sua bengala o referido vegetal, deparou-se com sua cadela Yorkshire a copular com um sarnento vira-latas, ambos em frenético vai-e-vem ao ritmo da música. Irado com a intromissão, o vira-latas mordeu um dos calcanhares do doutor, que teve de tomar uma anti-rábica.

 

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Mais uma vez o jovem Odorico Ângelo Júnior foi flagrado cheirando maconha e fumando cocaína em via pública. O pai declarou que desta feita nada faria para tirá-lo de trás das grades, e que seria um favor mantê-lo trancafiado. A autoridade de plantão disse que seria oneroso sustentá-lo no xadrez, uma vez que a compra de 2 marmitex ao dia no Restaurante Rodoviário custaria R$ 14,60, valor bem maior que a fiança de R$ 10,00 para libertá-lo Assim sendo, o sargento acabou ele mesmo pagando a fiança do viciado, para não comprometer ainda mais o minguado orçamento do Distrito.

  

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Contratamos

 

O Grupo Industrial e Mercantil Hadock Vronsky Mingana, que congrega as empresas Upa, Upa Cavalo Marinho, Doralice Virabrequins S/C Ltda. e Barros Center Fraldas, em franca expansão de suas atividades, contrata em regime de 40 horas mensais e para início qualquer dia desses:

 

Sujeito(a) bem apessoado(a) e não-usuário de prótese auditiva para assumir a função pretendida, seja ela qual for, no período compreendido entre DFM (Depois do Fim do Mundo) e AG (Antes do Gênesis), prorrogável por mais algum tempo, dependendo da demanda de mercado. Necessário domínio da mecânica dos moinhos de vento, versão Quixote 4.0. Desejáveis conhecimentos da tabuada do 8 em sistema salteado, além de urina fluente e esperanto para conversação. Experiência em rotinas de aplicação da Norma ISO NBR para industrialização de goiabada de tacho não é imprescindível, mas servirá como critério de desempate técnico no decorrer do processo seletivo.

 

O candidato deverá enviar CV, com teste do pezinho recente, acompanhado de pretensão salarial e redação do próprio punho argumentando porque se considera apto a assumir o posto.

 

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Duña explica “Bulhufas”

 

Aproveito o ínterim entre o escalda-pés das quatro e meia e o das sete e quarenta e cinco para uma lauda de esclarecimento aos que me cultuam acerca do real significado de algo que permeia nossas vidas, da primeira escovação de dentes até a hora de vestir as ceroulas: BULHUFAS.

 

O Dicionário Houaiss define o termo como “coisa alguma; nada”. Balela do ilustre filólogo! Fosse assim tão vazia, a expressão não teria atravessado os séculos e chegado incólume aos dias de hoje, onde é empregada com tanta frequência e propriedade – de discursos parlamentares a teses de pós-doutorado, passando pelos blogs de autoajuda e tabloides sensacionalistas.

 

Incorporado à norma culta, não são raros os sonetos e contratos de seguradora que aplicam BULHUFAS ao seu escopo. E estranharíamos se assim não fosse, pois sua importância é de tal envergadura que chega a ser referência de grafia quando se soletra alguma coisa. Nas ligações de telemarketing, vira e mexe nos deparamos com a operadora dizendo: “A” de Abelha, “B” de BULHUFAS, “C” de Casa, e por aí vai.

 

Mas nem tudo são glórias no caminho da inserção definitiva de BULHUFAS à língua de Camões. Estejam meus devotados seguidores avisados de que zombeteiros vêm disseminando, levianamente, uma acepção equivocada e difamante de BULHUFAS, atribuindo-lhe o sentido de negação de entendimento. Assim, propagam aos quatro ventos absurdos semânticos como “Não entendi BULHUFAS”, em contexto análogo a “Não entendi patavina” ou “Não entendi necas de pitibiriba”. Nunca tais nefelibatas estiveram tão distantes da luz da verdade, e a infâmia que hoje cometem a eles retornará carmicamente em encarnações vindouras. Assim é a lei Duñesca, justa e inapelável, que recompensa ou pune o homem conforme seu merecimento.

 

Ora, hão de convir meus contritos discípulos que, se alguém diz “Não entendi BULHUFAS” está na verdade afirmando que entendeu tudo, caso contrário diria “Entendi BULHUFAS”. Está clara a fundamental e necessária distinção? Da mesma forma, os que declaram “não entender patavina” não entendem patavina sobre “patavina”. E os que se arvoram a dizer “não entendi necas de pitibiriba” não entendem necas de pitibiriba de “necas de pitibiriba”, ressalvando aqui que, etimologicamente, “Pitibiriba” tem raízes morfológicas no tupi-guarani, língua a que me dediquei com afinco quando estas barbas que me envolvem o rosto ainda eram negras como a asa da graúna.

 

Com a autoridade que os céus me investiram e com o mérito que fez de mim o líder inconteste desta seita, afirmo que é blasfêmia das blasfêmias a forma com que alguns inconsequentes reduzem BULHUFAS a termo raso e sem função. Incorrem em erro crasso os que lhes dão ouvidos, estando sujeitos à expulsão sumária da Ordem Duñesca os fiéis que doravante fizerem uso inapropriado do vocábulo, incluindo aí sua forma abreviada, sem o “BU” original, ou seja, “LHUFAS”.

 

Publique-se esta missiva, que a partir desta data passa a ter força de Decreto, o qual selo agora com meu lacre cor de abóbora, meu brasão de família e minha firma reconhecida pelo tabelião de notas desta província.

 

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Zero à esquerda

 

- Perdão, meu senhor, mas não estou lhe reconhecendo.

- Senhor? Para com isso ou eu também te chamo de senhora. Apesar da careca e das rugas que eu tenho e você não tem, somos do mesmíssimo ano de 62.

 - Meu Deus. Desculpe a franqueza, mas ou o senhor, quer dizer, ou você está muito acabado ou eu estou conservada demais.

- Por cavalheirismo, sou obrigado a ficar com a segunda hipótese. Sob protestos.

- Tá certo, agradeço. Agora, se me dá licença…

- Eu usava cabelo repartido e aparelho nos dentes.

- Sei, sei.

- Sentava na mesma fileira, 3 carteiras atrás de você. Professora Maria Luiza, antigo quarto ano primário. Ah, bala Soft de limão, isso não te lembra nada?

 - Absolutamente. Porque, deveria?

- Não é possível, olha bem pra minha cara.

- Desculpa, sou péssima fisionomista. Ai, que situação chata, senhor, ou melhor, moço. Quarto ano primário… sei lá, José Alfredo?

- Tá frio, bem frio.

- Reynaldo?

- Ichi, chutou a bola pra fora do estádio.

- Dézão. Você é o Dézão!

- Nossa, esse era feio demais. Acabou comigo agora.

- Erivelton.

- O Jurema? O Erivelton Jurema? Tá querendo dinamitar minha autoestima. Na aula de Educação Física chamavam ele de Buda. Faça-me o favor… uma vez, estudando na sua casa pra prova de recuperação de matemática, você ficou passando o pé na minha canela debaixo da mesa. Tava um gelo naquela noite, você usava meia de lã toda listada, igual a das Frenéticas. Só não correspondi ao afago porque tinha na época um chulé insuportável. Outra dica: Carnaval de 81 e 82, eu fui de Barney nos dois anos…

- Ok, agora chega. Meu marido é aquele ali que tá buzinando, tenho que ir e acho que não é o caso de saber quem você é. Depois de tanto tempo, não vai fazer diferença mesmo.

- Espera aí, mas aquele lá no carro é o Marquinho Bereba. Vai dizer que você casou com aquele tranqueira?

- Bom, depois que levei o fora do Silvio, foi o ombro amigo dele que me valeu e me tirou da depressão. Fizemos bodas de prata no ano retrasado. Ah, mas chega de ficar dando satisfação da minha vida pra quem não devo. Até mais, senhor…

 - Silvio.

 

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ZYB

Você está ouvindo a Rádio Difusora de Jaboracanga, transmitindo em 103.7 Mhz. Por falar em megahertz, a amiga ouvinte já conhece a promoção Mega Hair? Por apenas dez parcelinhas de dezessete e cinquenta você, que está com o cocoruto quase ao estilo Marcelo Tas, se transformará instantaneamente numa cacheada e vistosa Rapunzel. E ainda poderá escolher a cor de suas longas e estonteantes madeixas. Maiores informações na Unidade Mega Hair Jaboracanga, com Jussara. Se você disser que ouviu a propaganda aqui na Rádio ainda ganha 75% de desconto na depilação de virilha com cera quente.

 

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- Alô, com quem eu falo?

- É a Zileide.

- E você, Zileide, gostaria de oferecer a próxima música pra quem?

- Praquele fi duma que ronca e fuça.

- Mas diz aí pra gente qual é o nome do seu afeto ou desafeto, se não ele não vai saber…

- Ele sabe sim, moço, é só falar que é a Zileide que ele já sabe…

- Mas escuta uma coisa, então fala o seu nome completo, onde você estuda ou trabalha, porque tem tanta Zileide por aí…

- É, mas que gosta daquele fi duma que ronca e fuça só tem eu. E depois tem uma outra coisa, eu…

(tu-tu-tu-tu-tu)

Estivemos fora do ar por falta de energia em nossos transmissores. Voltamos agora à nossa programação normal.

 

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“Jantar à luz de notas”. Um cardápio supimpa, com sucessos de todos os tempos para embalar sua janta. De segunda a sábado, das sete às nove da noite, uma exclusiva seleção de baiões, xaxados e fox-trotes na interpretação do afamado organista Lafaiette. Lembrando que hoje, dando uma canja, teremos como convidado especial o formidável Adelmo do Reco-Reco e suas cabrochas. Tá certo que as cabrochas é só o staff aqui da Rádio que vai admirar, mas mesmo assim não dá pra perder este programão, heim.

 

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A sua Difusora de Jaboracanga apresenta…

“O Prefeito Responde”. Você manda sua pergunta para o prefeito, e como o nome do programa diz, ele responde. Recebemos em nossos estúdios uma longa missiva, do munícipe que assina como Aleixo Xis e que pede para não ser identificado. Caramba, mas então porque assinou Aleixo X? Bom, vamos em frente. Ele tece aqui uma série de elogios ao chefe do nosso Executivo, diz que é funcionário público aposentado e cobra do prefeito maiores esclarecimentos a respeito da análise do alumínio utilizado nos marmitex servidos aos presidiários da cidade, que se fundidos poderiam potencialmente se transformar em objetos cortantes e pontiagudos, facilitando assim uma eventual fuga dos detentos.

- Sr. Prefeito, está na linha? Alô, Sr. Prefeito, está me escutando? É, amigos, parece que perdemos o link… assim que reestabelecermos contato com a Prefeitura daremos continuidade ao nosso programa. Enquanto isso, fique com mais um campeão de audiência jaboracanguense: “Achados e Perdidos”, onde você anuncia o que perdeu e encontra o que já nem esperava mais achar. Aliás, se alguém na cidade encontrar o sinal que acabamos de perder, é só ligar aqui pra Difusora.

 

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Ou não

 

Sou motorista de táxi, sim, e com orgulho de um tamanho que olha, vou falar pra você, se bobear nem cabe no porta-mala. Nem no porta-mala do Logan, que leva pra mais de 500 litros.

 

O Francisco Petrônio, seresteiro de marca maior, antes de ficar famoso com a “Festa Baile” e os Bailes da Saudade pelo Brasil afora, foi taxista – naquele tempo chamado “chauffeur de praça”. E foi cantando pra um e outro enquanto dirigia que um belo dia um sujeito levou ele pra fazer teste na TV Tupi, e deu no que deu. Largou do ponto e ganhou programa de auditório. Veja você, meu colega. Como já estou no bico do corvo e é muito tarde pro estrelato, vou me conformando em levar celebridade pra baixo e pra cima. Se não dá pra ser uma, pelo menos vou tocando a vida perto delas.

 

Vai daí que, de taxista, eu passei pra motorista particular. Comecei com o Jackson do Pandeiro, quando tinha uma Belina II que fundiu o cabeçote. Essa Belina era minha, não era dele não. Dirigi para o Luiz Gonzaga, o velho Lua, que era conhecido do Jackson. Fiquei depois até 2003 com o Alceu Valença e daí pra frente tô direto oferecendo meus préstimos pro Seu Gilberto Gil.

 

Não vou dizer pra você que é o melhor emprego do mundo, mas o Seu Gilberto é muito boa pessoa, quando dá pra entender as esquisitices que ele fala. Em vez de cortar caminho e ir direto ao assunto, o cabra gosta de ficar dando volta. Comigo então, nem se fala. E aí fica naquela: “você pegue a direita, ou não. Você me leve até o apartamento de Bethânia, ou não”. E fico nesse vou-não-vou até ele aprumar as ideias e resolver pra onde vai. Mas às vezes custa, heim. Ah, custa. O homem parece que tem a cabeça que nem carburador engasgado, rateia que parece bateria pra pegar no frio. Já ouvi falar na televisão que ele fuma aquele negócio que o Fernando Henrique disse que não traga, mas eu a bem dizer nunca vi nada, nadinha que desabone a pessoa do Seu Gilberto.

 

No caminho ele tem o costume de ficar sempre com o laptop aberto, às vezes me pede o bloco de anotação que levo no porta-luva e fica rabiscando rápido, diz que é pra não esquecer depois. Só não entendo porque me pede o bloquinho, já que tá com o computador no colo. Ele me disse que são uns começos de música e letra que ele vai fazendo. Quase sempre o trajeto é da casa dele pro aeroporto, daí ele fica uma temporada boa fora e eu confesso que até pego o carro de vez em quando pra dar uma vadiada, que ninguém é de ferro. Teve um dia que juntei uma quenga no banco de trás, lá na garagem da casa de Salvador, e fiz o serviço sem pressa porque sabia que o Seu Gil estava lá em Moçambique e a Dona Flora tinha ido pro Rio, passar uns dias com a Preta. Na volta ele reparou numa mancha esbranquiçada no estofamento, eu falei que era canjica que a netinha do Seu Gil tinha derrubado quando fui buscar ela na escolinha. Ele engoliu (a história) e não falou mais nada.

 

Uma vez o homem encasquetou e inventou de me pedir pra ficar falando a esmo enquanto o sinal não abria. Assuntei ele pra saber o que era esse negócio de “esmo” que eu nunca que tinha ouvido falar, não. Falei que conhecia torresmo, mas aí ele deu aquela risadona dele e disse que não era isso, falou assim: “Desencana, Oduvaldo, desencana”, e começou a assobiar aquela música do abacateiro e depois aquela outra que manda o abraço pro Chacrinha. Ê, Seu Gilberto…

 

Se não forem efetuadas alterações aos calendários da atual presidência húngara da União Europeia, que termina no final do corrente mês, e da próxima presidência polaca, que se inicia a 01 de julho, quase um mês separará a primeira aparição em Bruxelas do primeiro-ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, os líderes dos dois partidos do governo de coligação PSD/CDS-PP.

 

Paulo Portas - que já tem experiência de Bruxelas quando foi ministro da Defesa entre 2002 e 2004 - deverá "estrear-se" como chefe da diplomacia numa reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros agendada para 18 e 19 de julho, em Bruxelas.

 

Até ao final da atual presidência húngara da UE haverá apenas dois conselhos ministeriais, no Luxemburgo: uma reunião extraordinária de Competitividade e um encontro de ministros da Agricultura, que poderão assim assinalar a primeira presença "europeia" dos novos ministros da Economia, Álvaro Santos Pereira, e Agricultura, Assunção Cristas.

 

Já durante a presidência polaca da UE, "entrará em ação" o novo ministro das Finanças, Vítor Gaspar, que deverá apresentar-se aos seus homólogos europeus nas reuniões do Eurogrupo (países da Zona Euro) de 11 de julho e do Ecofin (27 Estados-membros) do dia seguinte, em Bruxelas, o último Conselho agendado até às férias de verão.

 

*  *  *

 

Feira Vintage

 

O relógio

 

De hoje acho que a gente não escapa. Estamos brilhando como nunca, improvável que ao menos um desses turistas de sandália e meias ¾  não se apaixone. Meus queridos, são 208 anos com a corda toda, trabalhando 24 horas. Chega de garoa e de poeira nessa carcaça suíça. Tudo tem seu tempo, e o meu por aqui já está chegando ao fim.

 

O bule de prata

 

Acreditem ou não, já fui posto uma vez na mesa de café da manhã do Getúlio Vargas. Mas pra falar a verdade ele nem ligou pra mim. Estava cheio até o bico de café preto, fumegava convidativo, só que o baixinho de São Borja preferiu chimarrão. Eram dias difíceis, um pouco antes do tiro no peito. Anos depois fui à leilão, embrulhado numa nojenta folha de jornal, levado num porta-malas por cinco intermináveis horas. Lustrado, fui parar na cristaleira de uma quatrocentona de Sampa, moradora de um apartamento de enorme pé direito na Alameda Santos. Logo em seguida houve a briga dos herdeiros e ganhei esse amassado vitalício, ao ser arremessado na cabeça da amante do marido da finada. De lá para onde estamos foram mais uns meses, e daqui provavelmente não saio nunca mais. Quem se habilita em me levar quer um desconto muito alto por conta da minha escoriação.

 

O terço de cristal

 

Eu rezo para que todos permaneçamos juntos e para que minha antiga dona nunca passe por aqui, me reconheça e me leve de volta para aquela incômoda gaveta da penteadeira. Lá fiquei durante décadas numa escuridão terrível, ao lado de alguns cordões umbelicais secos e duas pontes móveis de dono(s) ignorado(s). Prefiro a luz do sol da praça, gente passando e me olhando, admirando meu brilho, deslizando de mão em mão – ainda que ninguém me leve. Quando me vendeu a velha estava na pior, precisava de dinheiro para comprar comida. Se já tiver morrido, o risco de ser reconhecido é zero porque só deixou filhos homens, e homem que é homem não se lembra com detalhes do terço da mãe. Embora, pelo que me recordo, o filho mais novo não parecia tão macho assim…

 

A câmera

 

Que tal um retrato para a posteridade? Vamos aproveitar que o Diógenes comprou um veludo novo pra gente, e esse azul marinho na luz do inverno vai dar um instantâneo e tanto. Torçam para que o meu obturador não engripe e que o meu rolo de filme já não esteja vencido… vamos lá, agora, ninguém se mexe, digam x… bule, vira um pouquinho a asa… isso… ô relógio, para um segundinho senão você vai sair tremido na foto.

 

O retrato

 

Detesto ser desmancha-prazeres, mas dentro de você, câmera, não deve ter filme nenhum. E ainda que houvesse, quem iria revelar? O tempo passou e você não registrou as mudanças, essa é a triste realidade. Eu ainda sou o que sou não sei como, pois quase todos os retratos da minha época já viraram farelos. Portanto, esqueça. Ao invés de tentar guardar, viva este bom momento enquanto nos derem chance. Sei que, sendo um retrato, não deveria falar assim. Estou defendendo uma tese que contraria a minha própria utilidade. Porém, inútil por inútil, quem dentre nós ainda acha que serve para alguma coisa?

 

*  *  *

 

Não mais que dois minutos

 

Caros encarnados iludidos, só tenho dois minutinhos para permanecer neste plano atrasado de vocês e transmitir uma ou outra notícia que dê rumo e alento à crescente legião de humanos sem fé. Por isso falarei o que for lembrando e que seja de relevância, no escasso tempo que me é permitido.

 

Chico Xavier exerce função contrária à que se dedicava quando estava no horrendo planetinha de vocês, ou seja, psicografa os pensamentos e lamúrias dos vivos dirigidos aos que já foram dessa pra melhor.

 

Hitler serve uma reconfortante canja diária a todas as vítimas do holocausto (são mais de cinco milhões de refeições a cada 24 horas, o que transformou o seu sono eterno em insônia eterna). Além disso, o dito cujo sofre de LER, devido ao incessante movimento da mão direita levando a colher do prato à boca dos ex-prisioneiros. Por compreensível falta de tempo, o monstro nazista não é frequentador assíduo das barbearias celestes, e seu célebre bigodinho hoje rivaliza com o de Nietzsche.

 

Suas orações-decoreba são inúteis, pois se perdem nos círculos do purgatório muito antes de alcançarem o mais rasteiro dos planos superiores. É claro que um Pai Nosso bem rezado opera milagres, mas quase sempre é recitado no piloto automático. Não percam mais tempo com fórmulas e mantras, abram o coração e digam o que querem dizer do seu jeito. Dá muito mais resultado e não cansa a beleza do santo de plantão.

 

Bin Laden não chegou onde vocês imaginam que esteja, ou seja, no inferno não há nem sinal do ex-amiguinho do Bush. Tem alguma coisa errada na informação que seus elementares meios de comunicação difundiram.

 

Darwin tem passado os últimos cem anos tentando entender e codificar a criação do mundo em 7 dias, pois foi isso o que de fato aconteceu, por mais que ele relute em admitir. O louvado cientista britânico debruça-se numa teoria que denomina provisoriamente de “Evolução dos Espíritos”, e não mais das espécies. Aliás, lá em cima o Charles Darwin não desgruda da Gioconda, aquela do famoso sorriso enigmático que Da Vinci perpetuou no Louvre. Diga-se de passagem que o tal sorriso da moça não tem nada de enigmático, pelo menos depois de morta, embora o Darwin ache lá sua graça. Falar em Da Vinci, o multimídia do Renascimento, ultimamente anda morrendo de rir dos códigos, significados ocultos e símbolos maçônicos presumivelmente embutidos nos seus quadros. Diz que esse tal de Dan Brown é um zombeteiro de marca maior, a quem o Filho do Homem e Maria Madalena irão chamar pra uma conversa séria depois que bater com as botas.

 

Michael Jackson descobriu que é na verdade fruto da relação extraconjugal que Miles Davis teve com uma pipoqueira carioca, que por sua vez era tida e havida na Cinelândia como amante do Nelson Cavaquinho. A roupa suja ainda está sendo lavada, porém aos poucos os ânimos dos envolvidos vão se serenando com a intercessão de Cleópatra. Contudo, a forma como o rebento nascido em Madureira foi parar no Jackson Five permanece um mistério a ser elucidado.

 

Quanto à anunciada proximidade do fim do mundo, que alguns vigaristas anunciam como sendo favas contadas, é preciso que se diga que há um fundo de verdade na boataria, já que...

 

Opa.... espera aí, agora não, eu preciso terminar... mas já passaram dois minutos? Devagar, não me puxa, deixa pelo menos eu me despedir...

 

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Brothers

 

- Não há mais nada a ser feito. Já tentamos todos os recursos imagináveis. Esgotamos as possibilidades de um acordo amigável e na forma da lei. Eu estou jogando a toalha, sinceramente. Minha última esperança era aquele suposto álibi, que já não vale mais nada. Investiguei e descobri que o cara está na Espanha, o porteiro não viu entrar ninguém estranho no seu prédio aquela noite e numa improvável acareação vai ficar a sua palavra contra a dele.

 

- Você não pode desistir agora, nem a pau que você vai me deixar na mão. Não nessa altura do campeonato. Eu te conheço melhor que você mesmo, e sei que não pegaria a causa se não tivesse certeza de ganhar de cara, em primeira instância. Se o problema for dinheiro, vamos resolver isso agora. Diga quanto a mais.

 

- Se me conhecesse mesmo, saberia como me ofende falando isso. Como disse, quero equacionar tudo como manda o figurino. E isso inclui o meu modus operandi nessa pendenga. Aliás, é bom deixar claro que eu só me meti nesse embrulho pela nossa amizade.

 

- Bom, já vi que o buraco é mais embaixo. Sei da sua retidão de caráter, isso é inquestionável.

 

- E insubornável.

 

- Claro, principalmente insubornável. Você teve a quem puxar, seu velho era o maior ficha limpa da Via Láctea.

 

- Pois então. Ontem mesmo antes de pegar no sono eu estava lendo o salmo 91 e pude escutar papai ao meu lado, me aconselhando a abandonar a coisa de imediato, no pé em que está. Ficamos assim, eu te devolvo o adiantamento do serviço, a amizade continua a mesma e vamos fazer de conta que não aconteceu nada. Nada.

 

- Eu até aceitaria se soubesse que alguém mais nesse mundo poderia me defender nessa história. Só que esse cara não existe, tem que ser você e todo homem tem seu preço, meu velho. Ainda que esse preço não seja em dinheiro.

 

- Tá querendo dizer o que com isso, exatamente?

 

- Que o seu preço tá lá no seu passado, e ninguém é ou foi Madre Teresa 24 horas por dia. Tá me entendendo ou quer que eu desenhe?

 

- Espera aí, nem me passa pela cabeça que você se atreva a mexer nisso.

 

- Pois é, nem eu me animo muito a revirar essa sujeirada toda que você varreu pra debaixo do tapete. Mas, se não tiver outro jeito…

 

- O que passou, passou. E eu tenho certeza de que não deixei rasto nenhum, por isso pode ir descartando a possibilidade de chantagem. E tem outra: eu mudei, o mundo deu muita volta e mesmo que você levantasse agora esse delito ele já pres…

 

- Não prescreveu, não. O que eu tenho na manga faz reabrir o caso, tranquilamente, mesmo com tantos carnavais passados. Aliás, o episódio rolou no carnaval, lembra? Que ano foi, 82, 83? Mas enfim, é toma lá, dá cá. Uma mão lava a outra, meu irmão. Meu irmãozinho de sangue. Sim, porque não é só dessa história antiga que eu estou falando. O seu velho não era tão ficha limpa assim, brother.

 

- Não envolve o coitado do meu pai nessa merda!

 

- Então lá vai, na bucha: a gente é irmão, meu camarada.

 

- Ah, tá bom… a sua mãe com o meu pai?

 

- O nosso pai com a minha mãe.

 

- Brincou.

 

- É, eu sei que é muito pra um dia só. Vai pra casa e dá uma revirada nas suas fotos, descubra semelhanças, deixa caírem as fichas todas. Calmamente, eu não tenho pressa. Se preferir ficar por aqui, pode ir lá no meu quarto e abra a terceira gaveta da cômoda. Meu irmãozinho vai rever algumas das suas roupas velhas, que o seu santo papai dizia que ia doar pro orfanato. Bom, tô de saída. Mais tarde conversamos. Tem uísque no barzinho e gelo no freezer.

 

*  *  *

 

Fazendo justiça a Ignácio Escorbeta

 

Existem vultos injustamente esquecidos pela história, não obstante sua farta contribuição ao progresso da humanidade e ao bem-estar social. Dessa malfadada classe faz parte Ignácio Escorbeta, inventor da serpentina carnavalesca e do prendedor de roupas.

 

A serpentina foi concebida por Ignácio na segunda metade do século 19, a quatro mãos com outro Escorbeta, um primo residente em Mossoró. Desenvolvido o protótipo, de 75 metros de comprimento por 6 cm de largura, Ignácio arregimentou a mulher, os filhos e vizinhos e forjou uma folia doméstica, sem música alguma para animar. Enquanto lançava os rolos da recém-nascida invenção sobre os saltitantes convivas, observou que em 100% dos casos os mesmos não se desenrolavam, sendo arremessados intactos sobre as cabeças das vítimas.

 

Escorbeta atribuiu o fiasco à excessiva dimensão dos “rolinhos”, que mais pareciam bobinas. Perseverante, voltou com ânimo redobrado ao laboratório.

 

Após meses de pesquisas e cálculos de resistência, Ignácio finalmente brindava o mundo com a serpentina na forma como a conhecemos hoje. Em comemoração o bairro todo foi saudá-lo com uma chuva de confetes, já inventado naquela época – daí se originando a dobradinha que tanto abrilhanta os festejos de momo.

 

Igualmente complexo foi o processo de criação do prendedor de roupas, outro prodígio de Escorbeta. A bem da verdade esse artefato já existia, com a finalidade de manter fechadas as embalagens de Cheetos na despensa. Coube ao nosso herói o lampejo de adaptá-lo a outro contexto. O problema é que o prendedor não chegava a prender a roupa, apenas a indiciava em inquérito. Somente as peças mais leves, como meias, cuecas, calcinhas e camisetas regata ficavam devidamente suspensas para secagem. O inconveniente foi sanado dobrando-se o número de espirais do arame que unia as duas partes de madeira do prendedor, garantindo assim maior poder de fixação. Os bons resultados não tardaram a aparecer. Maravilhado, Escorbeta foi às lágrimas ao constatar que seu invento prendia eficazmente qualquer tipo de roupa. Incluindo blazers, japonas, sobretudos e até vestidos de noiva.

 

Enquanto isso, do outro lado do mundo uma nova revolução se processava. Cansado de prender as roupas para secar em encostos de cadeiras, Vladislav Varal, um tcheco naturalizado belga, decidiu inventar algo mais prático. Mas isso pede uma outra crônica.

 

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Casamento irreal

 

O organista da Abadia entrou em pânico. Taquicardia. Suores frios nas mãos. Como que tomado de repentino e incontornável Mal de Parkinson, encarou cego de nervosismo o teclado do grande órgão de tubos e esbarrou numa nota errada logo no primeiro acorde. Desconcentra, para, não consegue mais mover um dedo. O cerimonial do Royal Wedding havia desconsiderado um plano B, tamanha a notoriedade e a fleuma do instrumentista, cuja frieza rivalizava com a British Royal Guard. Não consta dos anais de Westminster que o homem tivesse sequer titubeado antes, em 27 anos de ofícios religiosos. Foram meses de preparo com o coral e o regente, ele sabia todo o repertório de cor e por segurança ainda tinha as partituras de cada parte da cerimônia à sua frente, para a eventualidade de um improvável branco. Dois bilhões de telespectadores esperam o desenrolar do impasse. Muvuca em torno do órgão. Massagem nos ombros, água com açúcar, gravata afrouxada, calmante sublingual e nada. O estado do sujeito é de pré-apoplexia. A realeza se entreolha com cara de “what is happening?”.

 

O rígido protocolo inglês pode prever e administrar tudo, menos o que é por natureza imprevisível e inadministrável: o tempo em Londres. Um vento noroeste, mais insidioso que todos os tabloides ingleses juntos, entrou traiçoeiramente sabe-se lá por que porta da Abadia e armou um mini-ciclone embaixo da túnica de um dos sub-auxiliares de celebrante. Ainda que de baixa graduação na hierarquia de Canterbury, o dito cujo estava posicionado frontalmente à câmera naquele momento. A versão sacra da cena de Marilyn Monroe no bueiro do metrô revelou que o religioso guarnecia as partes baixas com uma calcinha amarela de cetim, repleta de detalhes de strass e lantejoulas na região da virilha, adornada por coraçõezinhos com as letras W&K. A realeza se entreolha com cara de “what is happening?”.

 

O cocheiro Edward estava com a bexiga mais cheia que a cara do Príncipe Harry em sábado de balada. Mas a consciência do dever tinha de ser mais forte que a necessidade fisiológica, por menor que fosse a velocidade daquele maldito coche 1902 State Landau e por maior que fosse a distância entre ele e uma das 39 privadas dos serviçais de Buckingham. Como nem tudo depende do esforço e da boa vontade humana, um dos cavalos da carruagem real perde a ferradura. O animal torce a pata e amontoa bem no meio do Mall que leva ao lar, doce lar de Elizabeth. Kate desmancha o sorriso, ajeita a tiara emprestada pela rainha e retoma a interminável sequência de adeusinhos à multidão, mesmo com o trole empacado. William desce e troca um parecer com o chefe dos guarda-costas. O cavalo acidentado é desatrelado dos arreios. O príncipe coça a careca de padre. Nem todo o ouro da Casa de Windsor compraria um fim rápido e digno para o embaraço. Um outro animal assume o posto, mas é marrom e não branco. Esteticamente comprometido, o cortejo ainda assim seguiria em frente rumo ao palácio, não fosse um sósia do Primeiro Ministro se postar à frente do triste séquito com uma metralhadora de brinquedo na mão e uma foto de Lady Di com um bigode feito com caneta esferográfica na outra. A realeza se entreolha com cara de “what is happening?”.

 

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Roberto Carlos 70

 

Digamos que minha celeste obsessão começou no berçário da maternidade. Entre um arroto e outro da primeira mamada, eis que avisto um par de sapatinhos azuis que uma tia de Lady Laura tinha tricotado para colocar na porta do quarto. Sapatinhos azuis, e não marrons. Azuis como todos os sapatinhos, sapatos, tênis, pantufas de vovó, botas de lavrador, galochas, chuteiras e assemelhados deveriam ser. Ainda empapado de resíduos placentários, olhei para o adorável parzinho de lã, sorri marotamente e dei uma piscada, já ensaiando os flertes que teria mais tarde com as garotas de Cachoeiro. Todas, coincidentemente, de olhos azuis. Melhor dizendo, escolhidamente – ainda que nenhuma das mulheres com quem casei tivesse olhos desta cor. Ninguém é perfeito, nem mesmo as boas esposas. Mas são os desígnios do Senhor, e ao Senhor só rendo e componho louvores.

 

O resto é história, que vocês já estão cansados de saber. São sete décadas de adoração a essa cor que inspira e eleva. Eleva tudo mesmo, já que aquele comprimidinho milagroso, não por acaso, é azul. Mas não nego que vivi também  momentos que preferia esquecer, como as inverdades que a imprensa marrom se esmerou em espalhar. Boatos, intrigas, coisas que nunca disse, casos que não tive, emoções que não vivi. Aliás, imprensa ruim, irresponsável e maledicente tinha mesmo que ter esta cor. E pensar que ao longo de anos e anos tive aqueles cachimbos, todos marrons, grudados à boca o tempo todo. Era uma brasa, eu pensava, mas como estava cego… 

 

De ruim teve também, é claro, o episódio do trem. Se fosse o Trem Azul, do Lô Borges e do Ronaldo Bastos, certamente ele não teria passado por cima da minha perna. Nem eu teria, injustamente, mandado o maquinista para o _______, aquele lugar que não posso dizer o nome e que fica abaixo do paraíso e do purgatório.

 

É, bicho, mas tirando estes poucos infortúnios eu não posso me queixar da sorte que a cor azul sempre me deu. E essa sorte eu quis dividir com o meu amigo Eduardo Araújo, quando ele fez aquela música chamada “O bom”. Ele mostrou a canção pra mim em primeira mão e perguntou o que eu achava. Disse que era bacana e que tinha tudo pra estourar nas paradas, mas que eu trocaria a parte que fala “Meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear” por “Meu carro é azul, não uso espelho pra me pentear”. Ele manteve a letra daquele jeito e a música até que fez sucesso na época, mas também depois… não emplacou mais nenhuma, mora? Não foi por falta de aviso.

 

O que eu queria mesmo era comemorar silenciosamente estes 70 outonos aqui na minha casa da Urca, sozinho com meus fantasmas e minha imagem de Nossa Senhora, assistindo “Avatar” no home theater. Aquele adorável filme que mostra um maravilhoso mundo de seres azuis. Um manifesto ao extermínio do racismo, já que brancos, negros, vermelhos e amarelos não existem. Só os essenciais azuis, a cor que importa. Roberto Carlos Braga é, na verdade, Roberto Colour Blue. Mesmo aos 70, ainda é tempo de mudar o meu registro no cartório e envelhecer em paz com o azul do céu e dos oceanos. Amém, bicho.

 

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Rockabilly

 

Vou te ver de Lambretta, aconteça o que acontecer a este esquisito que chamam de Marco Antônio. É, de Lambretta! Sábado agora, pode esperar, na mesma bat-hora este repetente mascador de chiclete aparece com a mesma bat-jaqueta. Fiquei com aquela branca e azul piscina, igual a que te mostrei anteontem na rua.

 

Brilhando como está, de longe você reconhece quando estiver estacionada na sorveteria da praça. Melhor assim, Diana, território neutro. Meio caminho entre minha casa e a sua, pra evitar diz-que-diz-que se virem a gente em algum canto mais afastado. Depois sim, de Lambretta, aí a gente se embrenha onde o desejo mandar e a cidade não veja. Mas relax, eu vou saber esperar seu tempo, cheirosinha, vai acontecer e vai ser bom e gostoso como andar de Lambretta nova.

 

E ela vai ter o seu nome, vou decalcar um “Diana” em letra manuscrita na carenagem do lado esquerdo, onde fica o coração, olha só que romântico. Dianinha, a filha do delegado, comigo. Minha, escoltada pra baixo e pra cima pelo maluco aqui. Bacana isso. É pra que todo mundo saiba que tem dono, essa Diana deusa da caça, linda de tranças. Estou com o exame médico vencido, se não ia te ver no clube antes de sábado. Mas tudo bem, enquanto isso amacio pra você a minha, quer dizer, a nossa Lambretta. Manera com esse biquíni, não sou só eu que gosto dele.

 

Usa aquele maiô preto quando não estiver comigo e tem dó de mim tendo que escutar essa seleção de marchinhas dos tempos de nem sei quando que o vô põe na radiovitrola. É só vir chegando o carnaval que começa esse suplício, estourando os falantes. De Lambretta vai ser diferente, vamos juntos ouvir a melhor música do mundo, a do vento zoando no ouvido. Em jukebox nenhuma tem um hit como esse. Você agarrada na minha cintura e eu acelerando até o talo quando a gente passar pelo convento, acordando as pobres das freiras na terça gorda, a caminho do mato.

 

E as ovelhas desgarradas de Nosso Senhor na esfregação e na cheiração de lança, aproveitando o aval da carne enquanto a quaresma não vem. Não vão conseguir pegar a gente, nem chamando a viatura da rádio patrulha. Eles trabalham na quarta de cinzas, depois do meio dia. Eles não sabem do vento no rosto. Eles não têm Lambretta, baby.

 

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Sabotagem

 

Eu trabalho enrolando cubanos. Não, não é falsificando vistos e passaportes para moradores da Ilha que, disfarçados de gringos fazendo turismo, queiram fugir para lugar melhor. É na manufatura de charutos, mesmo. Enrolando largas e secas folhas de fumo, sempre no mesmo sentido sobre uma pedra de mármore, com a mesma apurada destreza para que saiam perfeitos, das 8 às 22, há 34 anos.

 

Puros, hechos a mano. Amo o que faço. Fabrico a morte dos que podem mais, e isso me excita e me vinga. Pagam dezenas de dólares por um único Castrovilla, que eu de caso pensado manipulo com as mãos besuntadas de fezes e catarro, sem que o inspetor de qualidade perceba. Fezes e catarro que dão liga às folhas que fazem este fálico objeto de desejo. Entre um gole e outro de licores finos, os poderosos enchem suas bocas bem cuidadas com meus excrementos. Antes que morram hão de saber da verdade, e tentarão com seu dinheiro extirpar seus pulmões e implantar outros novos, rosadinhos, sem a merda e sem o catarro que tantas vezes inalaram.

 

O que há de mais imundo em mim viciando o ar das reuniões sigilosas e dos conchavos secretos. Meus dejetos sacramentando o jantar dos deuses – nos transatlânticos, nos cassinos, onde houver luxo e cobiça. Que mais um pobre nativo, sem berço e sem dinheiro para o caixão, poderia querer da vida?

 

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Bendito templo

 

Sei que isso quer dizer bem pouca coisa para você, que não foi nem protagonista nem testemunha, mas ainda assim insisto. Observe que ocorre uma química interessante, no laboratório de física, entre o aluno número 11 e a aluna número 39. E que dessa química há bolhas púrpuras que entornam do tubo de ensaio. Em cada bolha um duende cativo, rindo de se matar, não se saberá nunca de quê. Elemental das minas, de dentes gastos e feios, primo daquele outro que dorme entre os halteres da sala de ginástica.

 

Presente, professora. A professora presente como a merenda intacta na lancheira, há décadas e décadas sem sinal de bolor e ainda ali mesmo, embaixo da carteira. Perto do taco solto, onde se guardava a cola. Não a que grudaria o taco: a que passaria de ano você, ele, os números 7, 15, 28 e a turma inteira do fundão.

 

Tudo pode acontecer no intervalo entre uma aula e outra, até o que poderia acontecer em qualquer tempo e lugar, menos no intervalo entre uma aula e outra de uma escola com brasão lustroso e nome a zelar. A normalista de 1915 deixou um recado na parede. Raspe as últimas quatro ou cinco camadas de pintura e verá uma mensagem cheia de PHs, escrita em tinta verde. Casta que nem meia três quartos, certinha que nem saia plissada. Sem nenhuma segunda intenção as poucas linhas da moça, prometida em casamento a um filho de fazendeiro. Terão uma renca de filhos num casarão de pé direito alto, com janelas enormes e vista para o morro.

 

É terminantemente proibido fumar mas todos fumam como se acreditassem que o fazem escondidos, fingindo supor que o inspetor não sabe. Ele que, à época, tinha essa idade minha. Vou te dedar. Vou te pegar na rua. Vou meter uma barata morta dentro da caixa de giz e espalhar que foi você.

 

Repare ainda que o cheiro da massa de modelar não muda, inspire fundo e tire a prova. Agora não se mexa, permaneça assim o tempo que aguentar, com o ar preso nos pulmões. Feche os olhos e morda a polpa da lembrança, a doce e sem semente, aquela de se guardar no cofre e jogar o segredo fora.

 

Os hormônios explodem e formam fila para fazer filhos embaixo da mesa do professor, atrás do muro da cantina, onde mais houver espaço e oportunidade de infringir as normas disciplinares do templo de instrução. Mas a façanha fica na vontade. Você nunca foi disso, nós todos não éramos. Ou éramos mas não tínhamos coragem, o que é muito mais provável. Cantemos então o hino nacional, com a mão direita no peito, vendo a bandeira que sobe.

 

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Campanha de motivação interna

 

Às vésperas de completar 6 décadas de atividade ininterrupta, servindo bem para servir sempre, o Bar e Mercearia Estrela do Leste inicia hoje a supercampanha de motivação interna “A Estrela é Você”, com a finalidade de reconhecer e premiar os mais brilhantes talentos de sua dedicada e dinâmica equipe de colaboradores.

 

A CAMPANHA SERÁ VÁLIDA DE ABRIL A DEZEMBRO DESTE ANO E OBEDECERÁ À SEGUINTE MECÂNICA:

 

- A cada R$1.000,00 de incremento nas vendas DIÁRIAS de gêneros alimentícios e produtos de limpeza, o funcionário terá um acréscimo de R$0,10 (dez centavos), a serem adicionados aos seus rendimentos no mês subsequente ao da efetivação das vendas. Tal bônus será adicionado temporariamente ao salário-base do empregado, que retornará ao patamar anterior tão logo expire a promoção.

 

- Para efeito de premiação, só terão validade as vendas DIÁRIAS e não cumulativas. Ex: o colaborador que vender R$850,00 em queijadinhas num determinado dia não poderá acumular o seu escore para complementação em vendas no dia seguinte. Ou seja, seu total de vendas ZERA a cada 24 horas.

 

PREMIAÇÕES EXTRAS – ACRÉSCIMOS DIFERENCIADOS SOBRE O SALÁRIO DO COLABORADOR:

 

Acréscimo de R$0,11 ao invés de R$0,10, para os funcionários que superarem em 200% as metas de vendas de paçocas, marias-moles, queijadinhas, guarda-chuvas de chocolate, dadinhos e balas mastigáveis em geral;

 

Acréscimo de R$0,12 ao invés de R$0,10 para superação de metas de vendas de mortadela fatiada, pinga em dose, sapólio, prendedor de roupa e blister de pilha palito;

 

Acréscimo de R$0,13 ao invés de R$0,10 para superação de metas de vendas de saco de lixo de 60 litros, chicle de bola, rocambole recheio goiaba, benjamim bi-volt, acetona e porção de tremoço.

 

EXCLUSIVAMENTE PARA OS 3 PRIMEIROS COLOCADOS:

 

- Viagem com direito a acompanhante para Guapimirim do Leste, terra natal do nosso fundador, Claudionor Bevilaqua. Os contemplados ficarão hospedados na acolhedora residência de dona Gersina, genitora do Sr. Claudionor, em regime de pensão completa (colaborador contemplado) e meia-pensão (acompanhante). Fica a critério do ganhador complementar, por sua própria conta, a quantia faltante para que seu acompanhante usufrua também de estadia com pensão completa.

 

- 6 meses de estágio na Universidade do Suspiro, instituição criada pela Fundação Claudionor Bevilaqua, com a finalidade de formar e aperfeiçoar nossos colaboradores, fornecedores e players de futuras joint-ventures na confecção dessa centenária iguaria.

 

- Sorteio de uma caixa com 20 unidades do doce “Teta de Nega”, oferecimento de nosso Distribuidor D’Assumpção & Netos. O referido produto tem validade até 28/11/2011 e o sorteio será aberto ao público, sendo que o contemplado desde já cede os direitos de divulgação de sua imagem para veiculação em mídia impressa e eletrônica das fotos e vídeos relativos à entrega do prêmio.

 

Dúvidas poderão ser dirimidas com Januário, do Departamento de Marketing da mercearia. A todos, bom trabalho e boa sorte!

 

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Você nem queira saber

 

I

“Só sei que nada sei”. Pra se saber um por cento do que é preciso seria preciso mil quinhentas e noventa e seis vidas de oitenta anos cada. A conta é essa por enquanto, amanhã aumenta, depois de amanhã nem se fala. Há um email marcado como não lido, faz quinze dias. Leio e fico sabendo que lá se foi um camarada meu, dos idos do rolemã e dos cachorros amarrados com linguiça. Acendo mentalmente uma vela e tomo um trago à sua saúde, ou no caso, à falta dela. Fica até chato ligar agora pra família depois da missa de sétimo dia. É essa pressa maldita, besta nervosa em que se monta e se galopa sem sela, no desajeito. Desculpe aí, meu amigo. O que faltou ser dito fica pra outra encarnação, tá certo? Isso eu juro pra você.

 

II

Todo conhecimento do mundo é atualizado a cada 5 anos. Não sei mais onde nem quando li isso, mas se sair pesquisando vou perder tonéis de infos que correm na raia 3 e chegam em cima da hora, breaking news extra-extra, plantões do Jornal da Globo e os outros 235 canais que clamam pelo meu zapping, mendigando uma parada que justifique a assinatura. Mas aí toca o telefone, aí o jantar tá na mesa e aí a mesa é só um adereço, porque já me adianta a vida se der pra comer de pé. Por favor, me quebra essa, eu não tenho o dia todo e você sabe bem disso. No olho do sobressalto, o jeito é partir voando. Pode ir na janelinha, no caminho eu explico tudo.

 

III

A urgência de ler “O Ócio Criativo”, aquele livro que fala da necessidade vital de fazer coisa nenhuma. Tenho muito o que fazer antes de pôr as mãos nele, que encabeça uma pilha de 80 centímetros de livros, que por sua vez faz as vezes de criado mudo para o copo d’água e o lexotan. É que acordo sempre no meio da madrugada assustado e suando frio, na ânsia de precisar saber o que não é possível saber por não haver tempo hábil.

 

IV

Basculante de spams sendo despejado. Agora não. Blogs sendo atualizados. Depois, quando baixar a poeira. Só que a poeira aumenta porque o galope aperta. Revistas, resenhas de fôlego, imperdíveis que se perdem. Não deixe o inadiável pra logo mais. Sem querer cobrar, mas já cobrando, há 1000 lugares que você precisa conhecer antes que se despeça do mundo. 1000 filmes que você precisa ver de qualquer jeito, irremediavelmente. Antes que seja tarde, antes que algo mais grave impeça, antes que uma merda de um Parkinson se instale precocemente, antes que o depois chegue de uma hora pra outra e seja o sujeito que rapte, e faça refém e mate no esconderijo sem mesmo pedir resgate.

 

V

Estabeleça prioridades: primeiro os clássicos, sempre. Mas eles que esperem, afinal são clássicos e venceram a prova do tempo, essa coisa que lhe, que me, que nos falta. Continuarão sendo clássicos a despeito da sua leitura, da audição que faça deles, de aplaudir ou não suas peças e seu legado à humanidade.

 

“Só sei que nada sei”. Quem foi que disse isso mesmo? Ao Google. São Google. Tenho três minutos e meio até que o circo pegue fogo. Deve dar, tem que dar. Torça por mim, por favor.

 

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Atrás do trio elétrico

 

Quarta-feira de cinzas seria um dia mais propício ao ocorrido, considerando que os mortos foram os protagonistas. Mas como os desígnios sobrenaturais são misteriosos e ingovernáveis, resta apenas admitir o fato como verídico – testemunhado que foi por toda a cidade.

 

Passava um pouco do nascer do sol quando, em pleno sábado de Carnaval, os finados todos do cemitério ergueram em perfeito sincronismo os granitos e mármores que os cobriam e saíram em comboio às ruas de paralelepípedos, entoando marchinhas de Lamartine e João de Barro. Sem bumbos, cuícas e tamborins para marcar o ritmo, eles cantavam a cappella. Acompanhando as vozes um tanto roucas, apenas o bater dos seus calçados no chão coberto de confetes e umedecido pelo orvalho.

 

A cena tinha lá sua semelhança com a magistralmente narrada por Erico Verissimo em seu “Incidente em Antares”, com a diferença de que, desta vez, a coisa não era obra de ficção. Estranhamente, os cadáveres exalavam o cheiro suave e fresco dos que acabam de sair do banho, a despeito de alguns deles habitarem o campo santo há mais de 150 anos. Calças vincadas em régua e esquadro, saias plissadas, sapatos brilhando, batons milimetricamente aplicados, barbas e bigodes aparados com capricho quase artístico. Assim se apresentava aquele ruidoso regimento, que pulava e saracoteava como uma galerinha de adolescentes, ainda que muitos dos foliões tivessem sido enterrados com ossos e crânios completamente destruídos por acidentes de trânsito e quedas de edifícios.

 

Os pândegos vivos se divertiam e comentavam uns com os outros, em tom de sarro e rindo até se arrebentar:

 

- Minha nossa, olha só o bloco dos mortos. Não tem pra ninguém, esse povo aí já ganhou o primeiro lugar em originalidade. Que ideia mais doida, fantasia de defunto…

 

- E essa aí travestida de Dona Júlia de Andrade. Incrível como ficou igualzinha à velha… ai, meu Deus, que morbidez.

 

A farra de Momo prosseguiu nessa levada, com mortos encoxando vivos e vivos sem saber que davam beijos de língua nos mortos. Até que alguém, um pouco menos bêbado, se deu conta:

 

- Ei, espera aí. Tirando os que foram viajar pra praia e fazer retiro espiritual, todo mundo que mora aqui na cidade estava na folia desde ontem, sexta-feira. E se todos continuaram aqui, emendando a sexta com o sábado, de onde vieram esses caras fantasiados de mortos? Só se for gente de outra cidade. Mas forasteiros não conheceriam tão bem os finados da terra a ponto de se vestirem e se comportarem como réplicas deles. Tem alguma coisa estranha nessa história. Ah, isso tem.

Para a suspeita virar certeza foi um pulo. E então fez-se o pânico, tão fulminante a ponto dos encarnados, sem exceção, irem desta pra melhor. De susto, de horror ou de arrependimento, já que alguns tinham acabado de praticar necrofilia sem saber. Aos poucos, os defuntos foram sepultando os então vivos nas covas que até há poucas horas ocupavam. Concluído o serviço, seguiram todos cantando: “Atrás do trio elétrico só vai quem já morreu”…

 

*  *  *

 

Em que posso ajudá-lo?

 

I

- O senhor vai me desculpar, mas sem o carimbo do Teixeira não tem jeito.

- E o Teixeira não está?

- Não.

- E o carimbo dele?

- O senhor me respeite. Olha o desacato ao servidor…

- Vai me dizer que o Teixeira leva o carimbo quando sai da repartição? Olha só, tem um carrossel lotado de carimbos aí do seu lado. Será que o do Teixeira não está aí, não?…

- Bom, enquanto isso vamos vendo os outros documentos. Trouxe o DIRC atualizado da Paresp?

- DIRC da Paresp… DIRC da Paresp… Tá na mão. E quitado antes do vencimento.

- Só que tem uma coisa… esse adendo da minuta ainda não foi averbado na Junta.

- Não entendi.

- O Benê do guichê 11 vai explicar direitinho pro senhor. Mas já vou lhe adiantando que tem que voltar até o 8º Cartório e reconhecer de novo a firma do antigo proprietário. Essa aqui não vale mais. Então, é melhor fazer o seguinte: antes de ir pro guichê 11 o senhor vai até o terceiro andar e fala com a Wilma. Saindo do elevador, primeira à esquerda, primeira à direita, de novo à direita e o senhor vai dar de cara com uma salinha verde, que tem um bebedouro quebrado.

- Sei, debaixo de um calendário da Seicho-No-Iê. Estive lá na semana passada.

- Isso. É só pegar a senha e aguardar ser chamado.

 

II

- Eu vou lhe dar um protocolo da requisição. O senhor leva até o Denorf e solicita a emissão do Nada Consta da Delegacia Fazendária. Não demora muito, não.

 

III

- Bons antecedentes, ok… Certidão Negativa de Débito, ok… habite-se, registro do inventário, 2 fotos 3×4. Mas eu preciso também do requerimento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e os últimos cinco boletos do ISSQN, comprovando o recolhimento. É que antes da homologação do prontuário, o DPTS pede o formal de partilha em duas vias. Até julho do ano passado podia fazer por procuração, só que agora o cartório está exigindo a presença da pessoa.

- Mas ele mora em Muzambinho…

 

IV

- Aparentemente só estão faltando o número do PIS Pasep do inventariante e uma cópia frente e verso autenticada do ITBI pra poder dar baixa. Caso contrário não é possível correr com a papelada.

- Mas quando eu vim aqui da outra vez aquele senhor de óculos ali me disse que uma segunda via da…

- Não, não. De jeito maneira. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A petição tá certa, mas precisa constar uma ressalva prevendo o usufruto da viúva.

- E essa instrução normativa para unificação de cadastro?

- Isso aí pode levar embora porque não vai servir pra nada. O senhor me providencie um termo de responsabilidade, com assinatura de três testemunhas. É só disso que eu preciso, trazendo até segunda-feira pra mim tá bom. Agora, veja bem, isso aqui é a minha parte, entendeu? No guichê 14 vão informar ao senhor como dar entrada no pedido pra saber em qual jurisdição do CASP esse DERC deve ser encaminhado.

 

V

- Meu amigo, eu não estou autorizado a emitir o TCF sem a apresentação do canhoto do D.O.R. Além disso, olha só, tá faltando a rubrica do perito técnico. Outro dia mesmo apareceu um cidadão aqui com um caso parecido com o seu.

- Bom, resumindo…

- Só na Secretaria, das quinze e trinta às dezesseis e quarenta. E traga também um atestado de saúde.

- Ah, isso com certeza não precisa. Se eu não morri até agora correndo atrás disso tudo, é sinal que a minha saúde tá ótima.

Estava enganado, coitado. Cinco minutos depois, enquanto corria ofegante do guichê 7 para o 18, teve um mal súbito e morreu. O sub-escrevente adjunto adiantou-se e proclamou:

- Ninguém faz nada, ninguém toca no morto enquanto não sair o Alvará de Liberação do corpo. Mas já vou avisando que o Edmilson, que cuida disso, está de licença-prêmio e só volta daqui a seis dias.

 

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Casa Grande

 

Não, sinhá não é o tempo todo esse poço de virtude que a vila pensa que é. Vira e mexe, sinhá tem pensamentos impublicáveis. O pulso descontrolado, se vira e mexe na cama, com o bagaço da cana exalando seu azedo no ar parado do engenho.

 

Descarações com heróis de livros, romances com entes sem rosto. Coisas de sinhá sonhadora, pecados mortais que o padre não poderá absolver porque sinhá não há de ter a cara de confessar. Sinhá tem urgências da alma, que não sabe definir nem dizer de onde é que surgem. Calores e calafrios que vêm e vão como os aguaceiros, trazendo o medo doentio de ter seu nome no mármore antes da hora.

 

Sinhá é devota, e louva oito vezes ao dia o santo padroeiro da fazenda. Para ele faz oferenda e promessa, e guarda para o clero o filho que ainda não teve, mas que um dia há de parir, se sinhô der sossego pras mucamas e comparecer com mais frequência.

 

E por mais que sinhá saiba o quanto vale ser sinhá, o que sinhá anda querendo, lá no fundo das funduras, é deixar sinhá pra lá. Virar palmeira, pedra de ribeirão, casco de cavalo, tulha de guardar “os trem”. Ser a lua de São Jorge e tudo ver lá de cima, tentando enxergar sentido nesse ofício da existência.

 

 

É o amor – Parte II

 

- Anoréxica. É o que você está virando.

 

- Olha, não devo satisfação a ninguém, e esse ninguém inclui particularmente você. Aliás, ninguém é mais ninguém do que você. Pessoinha abjeta, acidente de percurso onde esbarrei com a unha encravada. Não entendo o porquê de você estranhar minha magreza. É de se esperar que um sujeito com seus modos o tempo todo ao lado desperte o apetite pelo jejum. Você poderia ficar rico, atendendo em domicílio e fazendo companhia pra quem quer perder a fome. Método eficaz e revolucionário. Efeito instantâneo e garantido.

 

- Quando você fala em não dar satisfação a quem quer que seja, entenda-se isso em todos os sentidos possíveis. Sei bem o que você quer dizer e sinto na pele as consequências. Você deixou de ser o que eu pensava bem antes do fim da lua de mel. E olha que foram só quatro dias naquela pousada em Cabo Frio. Eu já disso isso uma vez, e repito. A impressão que tenho é que pra você a armação é mais importante que os óculos. São as lentes que te deixam ver, mas para você o que conta é o que vão achar do design italiano. Essa valorização do fútil te desencanta, te faz enjoar rápido de tudo o que te cai no colo de mão beijada, te faz ter amor aos precipícios. Você é uma suicida nata, tem vocação natural pra coisa. Só não se mata porque não se conforma com a ideia de que vai exalar mau cheiro depois de morta.

 

- É para esquecer que existem pessoas como você que jejuo e faço regressão toda manhã, que tenho dependência do analista, que tomo uísque com Dormonid. E eu venho tendo uns insights que você nem faz ideia. O mármore das estátuas de Afrodite é o mesmo mármore dos mausoléus. Tão frio quanto. Já parou pra pensar nisso, do quanto o amor está próximo da morte? Pelo menos no nosso caso específico.

 

- Tá vendo, é dessa morbidez que eu falo. Você faz apologia da morte mas fica pra baixo e pra cima com creminhos e lamas na cara, pedras quentes na testa, botox nas pálpebras e por aí vai. Me irrita essa sua retórica de frases de efeito duvidoso, essas charadinhas filosóficas de almanaque de farmácia que você vai me jogando na cara enquanto retoca a porra da sobrancelha. E fica tentando descobrir, no balaio de gato de suas terapias alternativas, o que te levou a ser a merda perfumadinha de Chanel que você é hoje. Daqui a pouco algum livrinho de autoajuda te convence que você foi meu carrasco em vidas passadas, que eu fui um feto abortado do seu ventre de rainha, que lá na Roma antiga…

 

- Como você é presunçoso… o que te faz acreditar nessa importância histórica? Lamento ter de rebaixá-lo a reles pajem, quem sabe um coletador de estrume equino, quando muito bobo da corte. Que conseguiu se entranhar entre os serviçais do reino, mas que logo foi despedido por não ter graça nenhuma.

 

- Não há como ser engraçado olhando pra sua cara, ainda que fosse muito bem pago pra isso. Essa sua ossada insípida não inspira nem humor negro.

 

- Ah, meu tolinho. Há quem goste de ossos e lamba os beiços com eles.

 

- Concordo plenamente. Aí estão os cães, que não te deixam mentir.

 

- Bom, cachorro por cachorro… prefiro qualquer um que não seja da sua raça.

 

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Perguntas, perguntas e mais perguntas

 

Preencher formulário é tarefa invariavelmente entediante, dispendiosa e de finalidade discutível. Às vezes o ritual de preenchimento beira o insuportável, e o castigado leitor há de me dar razão. É quando somos obrigados, por exemplo, a garranchar aqueles malditos papéis de imigração nas viagens internacionais. Duvido que seja de menos de 90% o universo dos que deixam a tarefa para os últimos dez minutos de voo, duvido que a caneta (emprestada) não falhe bem na hora de assinar o bagulho e duvido que você e o sujeito do seu lado não usem como apoio a bandejinha de refeições (dependendo da companhia aérea, a mesma bandejinha) –  o que coroa o desinteressante procedimento com uma nojenta mancha de gordura no formulário.

 

Mas o que mais irrita mesmo nem é tanto a falta de paciência e o excesso de má vontade nas respostas, mas a natureza astuciosa das perguntas. Não raro deparo-me, logo abaixo dos campos de nome, sobrenome, RG, tipo sanguíneo, coloração usual das fezes e se tive ou não pé chato em algum momento da vida, com questionamentos que tirariam até a Madre Teresa de Calcutá do sério. Tipo: a frequência com que aparo as unhas, a densidade por cm2 de pelos no antebraço e, ainda no âmbito dos membros superiores, a pior das indiscrições que um perguntador profissional poderia cometer: quantos dedos eu possuo em cada uma das mãos, e se todos eles constam como meus dependentes nas seis últimas declarações do imposto de renda.

 

A falta de cerimônia em vasculhar a vida alheia inclui perguntas escabrosas sobre segredos de alcova, como o material do puxador de cortina do meu quarto e se as cerdas de minha escova de dentes são macias, médias ou duras.  Admito o fornecimento de informações úteis que não caracterizem violação de privacidade, coisas de menor importância e sobre as quais usualmente não se faz sigilo, como renda mensal bruta, posição sexual favorita, tamanho do pênis em repouso, em quem votei para presidente da república e outras amenidades de igual quilate.

 

Entretanto, a saia fica justa quando surgem especulações que devassam a vida do cidadão de maneira ostensiva e desrespeitosa. Dou exemplos. Se o botijão de gás da minha cozinha veste ou não capa florida; há quanto tempo ando afastado do confessionário e quais os motivos que me levaram a tal distanciamento; se me importaria em eventualmente substituir por H3O a costumeira H2O armazenada na moringa do criado-mudo em caso de racionamento de guerra ou outra circunstância emergencial; se tenho o hábito de separar o arroz do feijão no prato ou se disponho um sobre o outro, a fim de abrir mais espaço à mistura; dos sobrinhos do Pato Donald, qual o meu predileto e quantas pessoas de nome Onofre possuo na família; se porventura já me ocorreu a ideia de testemunhar o dia a dia de uma prisão turca; se faço ou não parte do rol de esquisitos que folheiam o jornal de trás para frente às terças e quintas, da frente para trás às quartas e sextas, aleatoriamente nos fins de semana e nunca às segundas-feiras; se a abolição do trema causou transtornos mensuráveis em minha rotina habitual e se a revelação de que o caqui engorda me fez consumir mais ou menos carambolas que a minha média diária; se o uso excessivo de ponto e vírgula prejudica ou não a fluência da leitura, e em que circunstância o seu emprego incomoda menos: nos clássicos da literatura, nas bulas de remédio ou nos folhetos de missa.

 

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Sem ação

 

Com o fim do viva-voz, os negócios na BM&F passam a ser integralmente realizados pelo chamado GTS (Global Trading System) – um sistema eletrônico que as corretoras acessam de seus escritórios e dispensa a negociação feita pelos operadores em pregão.

 

Último Segundo – IG

 

Lá se vão dois anos desde que o meu valor de mercado despencou a zero, da noite pro dia, igual ao crash de 29. Mas ainda acordo no meio da noite com a orelha encostada no ombro, como se estivesse falando em três telefones ao mesmo tempo. Os músculos tensos, as mãos afrouxando um nó de gravata imaginário, gritando para ninguém: “Eu compro!”, “Eu vendo!”, “Fechado!”. Esgoelo até ficar quase rouco e ser acordado pela patroa, essa coitada que só não me largou ainda por causa da igreja. E vai um tempo até que eu desabe do saguão da BM&F para essa desgraça dessa cama, que já nem se dão ao trabalho de arrumar mais porque não saio mesmo dela, com a síndrome do pânico empapando de suor frio esse meu pijama listrado.

 

Agora o telefone toca de verdade. Um outro ex-operador, dos áureos tempos da ciranda financeira, me convidando para uma pescaria. Eu digo que sim, mas pesca me lembra rio, que me lembra Vale do Rio Doce, que me lembra o que nem preciso mencionar pra não começar a suar frio de novo. Desligo, faço de conta que caiu a ligação.

 

Maldita internet, malditos Home Brokers. Agora qualquer Zé Arruela administra, deitado na cama como eu, a sua carteirinha de ações. Se acham muito espertos e quebram logo a cara, lógico, porque não têm o jogo de cintura e a astúcia do papai aqui. Sou do tempo da Bovespa pré-painel eletrônico. Tinha uma lousa enorme e o pessoal, com giz e apagador, ia atualizando as cotações na munheca. Se contar ninguém acredita. E a grana pingava direitinho, tão constante e farta que eu nunca me preocupei pensando que um dia a fonte pudesse secar. Torrava o que vinha na farra regada a Chivas. Ganhava na corretagem e reinvestia boa parte na própria bolsa, comprando na baixa e vendendo na alta. Às vezes jogava tudo no papel mais azarão, e nunca dei com os burros n’água.

 

Volto aos jornais do dia, esparramados no lençol. Laboratório farmacêutico procurando voluntários pra teste de remédio contra a síndrome do pânico. Interessa. Vou lá conferir, pagam bem e ficam monitorando as melhoras e os efeitos colaterais. Serão dez anos fazendo parte de um grupo de controle, e tenho que assinar uns papéis isentando o laboratório em caso de óbito ou danos irreversíveis a essa carcaça velha. Tudo bem, não tenho nada a perder. Mas, antes, vou dar uma de operador Home Broker desconfiado e checar na bolsa a saúde das ações da tal empresa. Vai que… nossa, nem pensar. Olha o suor frio de novo.

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Instantâneos contemporâneos

 

Não faz muito tempo, fotografar custava caro e dava trabalho. Exigia empenho e planejamento. Tinha o filme de celuloide. A revelação do filme. A ampliação da foto. A ocasião tinha que valer o investimento de tempo e dinheiro. Hoje, a câmera na mão não exige necessariamente ideia na cabeça. A foto nada diz, mas pelo custo zero não se espera dela que diga sempre alguma coisa. Se o negativo era o registro eterno, o JPEG não a contento é deletado sem piedade. Fotografemos, pois.

 

 

Olha só essa aqui. Em macro superclose, parecem até dois montes Fuji siameses sem neve. Na realidade são dois formigueiros, um ativo e outro que acabava de ser exterminado com um bule de café fervente entornado pela Paulinha, em mais um costumeiro exercício de sadismo contra o reino animal.

 

Nesta outra vemos um copo com a água pela metade deixado em cima da mesa de centro pela minha madrinha, quando de sua visita à nossa casa para parabenizar-me pelo trigésimo sexto ano de Crisma. Reparem no copo a marca de batom, cambiando entre o bordô e o marrom claro, deixado pela tiazinha querida. Resquícios de uma tarde memorável onde, além da água quente da torneira, tivemos a ventura de partilhar um mingau de maisena polvilhado com canela, cuja foto segue na próxima página do slide show.

 

Ah, essa é uma das minhas favoritas. Enfim, os cinco dedos do pé esquerdo reunidos. Todos juntinhos em instantâneo para a posteridade! Em sentido horário: o dedão, o que fica ao lado do dedão, o que fica ao lado do que fica ao lado do dedão e na sequência os dois menorzinhos. A pequena marca cor de ferrugem no calcanhar não é micose, e sim um fiapo de meia que se meteu de bicão junto aos “rapazes” na hora do clique. Aquele negócio redondo, que aparece desfocado ao fundo, é o potinho de ração da Flofy.

 

Continuando com a série “família reunida”, perfilei os últimos oito tacos que se soltaram do chão da sala. Assim, soltinhos, eles parecem mais descontraídos – quebrando um pouco a rígida simetria que os torna tão iguaizinhos e sem personalidade quando assentados.

 

Flagrante da geladeira da casa da Anna Bárbara, em 23-05-07, às 22h31. Da esquerda para a direita: leite de soja em embalagem longa vida, Becel sem sal, pires com asa de frango, meio tablete de fermento. Espremidos na prateleira de baixo: penca de bananas, farofa de bacon e passas, pernil na marinada e 11 Bavárias que, segundo ela, estão lá desde a passagem de ano de 2002.

 

Foto “antes e depois”. Antes da sessão diária de esteira e depois do vômito causado pelo esforço aeróbico excessivo, que revolveu as entranhas e de lá desalojou a feijoada completa com creme de abacate consumidos anteontem.

 

Na sequência, o vômito propriamente dito, brilhantemente capturado pelas lentes de uma Nikon com zoom óptico 12x. Além de todos os pertences do porco e do abacate envolto por alguns traços de bílis, enxergamos nitidamente ao fundo uma salsinha do então irresistível vinagrete.

 

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Tudo será como sempre

 

Sucedeu que ele acordou com aquela ideia na cabeça: fazer tudo diferente do que estava acostumado. Tirar a vidinha do piloto automático. Lembrou daquele famoso pressuposto da programação neurolinguística, que aprendeu num curso rápido sobre o assunto: SE VOCÊ CONTINUAR A FAZER O QUE VEM FAZENDO, VAI CONTINUAR A OBTER O QUE VEM OBTENDO. A afirmação era óbvia, tão óbvia que parecia estúpido levá-la a sério. Até que caiu a ficha. E ele resolveu que aquele era o dia da guinada.

 

Começou na cama mesmo. Absteve-se da interminável sessão de bocejos e espreguiçamentos e de um salto pôs-se de pé. Fez trinta flexões, bem mais que as cinco de costume. Inverteu a ordem dos remédios – primeiro o da pressão, depois o complexo B.

 

Escovou os dentes começando pelos do fundo e terminando pelos da frente, exatamente como nunca tinha feito. Não se barbeou. Vestiu um terno verde e uma gravata prateada. Sentou-se à mesa, na cadeira da outra ponta. Ao invés de colocar na xícara bastante leite e um pouquinho de café, pôs muito café e quase nada de leite. Despediu-se da esposa com um beijo no rosto, e não na testa.

 

Quando saiu já ia fazendo o caminho de costume, mas a tempo pegou outro rumo.

 

Ligou o rádio do carro. Tirou da CBN e sintonizou num programa sertanejo. Parou no semáforo e dessa vez comprou as balinhas que o garoto ofereceu. Passou em frente à igreja e não fez o sinal da cruz. Estacionou o carro na vaga do chefe (ele nunca estava mesmo). Subiu pela escada, não ia se repetir tomando o elevador. Decidiu que não responderia nenhum e-mail, por isso nem abriu sua caixa de mensagens. Trocou o mouse pad, limpou o monitor com álcool, mudou o protetor de tela e as cores do Windows.

 

Na hora do almoço, aproveitou para não almoçar. Foi ao cabeleireiro. Abriu a Veja no lugar da Caras. Folheou de trás pra frente. Pediu para o cabeleireiro repartir o cabelo do outro lado. Retornando ao trabalho, “matou” uma tia velha e disse que precisava ir ao velório em Barbacena. Foi à sauna, depois ao cinema. Nenhum drama de consciência ao fazer isso em plena terça. Voltou pra casa duas horas mais cedo que o costume. No horário de sempre se recusara a voltar. Antes, comprou rosas para a esposa. Abriu a porta e flagrou a mulher com o seu chefe, que calçava os seus chinelos e bebia o seu conhaque. Os dois ajoelhados no chão do quarto, levando chicotadas do vizinho do 206, travestido de mulher-gato.

 

Não fez ruído nenhum. Do mesmo jeito que entrou, saiu. Ia deixar tudo como estava. Caso contrário perderia a mulher, teria que arrumar outro emprego e sairia nos jornais como assassino de traveco. Voltou para a empresa. As flores deixou com a Laura, recepcionista. Com um cartãozinho discreto, confirmando o motel para depois das seis e meia. Como sempre.

 

*   *   *

 

Pronunciamento duñesco de ano novo

 

 

“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Melhor o meio termo, ou seja, a lama. A do Dalai ou a de Araxá, que tem poderes comprovadamente rejuvenescedores para a pele e reabilita em oito meses a função do apêndice”. Ante olhares pasmos de alguns poucos criadores de bichos-da-seda e de quatorze mochileiros que por ali colhiam cogumelos, assim iniciou sua preleção o Venerável Duña, em aparição relâmpago ocorrida ontem, por volta das nove da noite, no cume de uma montanha mantiqueira.

 

Teólogos e teóricos das mais díspares correntes esotéricas concluem que o inusitado pronunciamento revela um Duña menos extremado em suas exortações, um líder messiânico mais disposto a valorizar o equilíbrio e a ponderação em detrimento do fundamentalismo inflexível de algumas seitas – que caracterizaram inclusive a sua própria Ordem em outros tempos.

 

“A segunda década do século 21 que ora iniciamos será certamente marcada pela concórdia entre os homens. E isso não é sandice profética ou retórica de ocasião. Tomem como exemplo a questão percentual do dízimo. Um fiel que, por liberalidade, queira destinar mensalmente à nossa seita doze por cento ao invés dos dez regulamentares, não merece ser discriminado pelos demais seguidores. Até porque essa participação mais generosa ao erário sagrado não implica necessariamente na aquisição de um quinhão maior no latifúndio celeste. Há que se ter tolerância e compreensão aos que voluntariamente optam por oferecer mais”, disse o sacerdote supremo, enquanto de suas têmporas pululavam raios ionizantes de cor violeta.

 

Ajoelhando-se, o Iluminado prosseguiu:

 

“Fazei com ambas as mãos a caridade que deveis praticar. Ajudai os coxos a atravessarem a rua utilizando ambas, degusteis o desjejum, o almoço e a janta usando ambas, digitai em vossos laptops empregando indistintamente ambas e, para que a discórdia não se instale entre ambas, que ambas depositem oferendas igualmente generosas sempre que se proceda à passagem da sacolinha nos cultos sagrados.

 

Caso não seja do tipo meia-cura, separai o queijo da goiabada como quem separa o joio do trigo, pelo fato de ser impossível o convívio pacífico entre a velha e boa goiabada de tacho à moda mineira e queijos dos tipos parmesão, gruyère, prato, fresco, provolone, gorgonzola e todos os demais produzidos com leite de vaca, ovelha ou cabra.

 

Lembrai que os doze mil Oráculos, que peregrinam em trabalho missionário pelo planeta, são a representação carnal do Excelso Ser Duñesco, sendo por ele investidos de plena autoridade para dirimir desavenças entre torcidas e arbitrar soberanamente sobre demais litígios – sejam eles de natureza desportiva, culinária, sexual, filosófica ou fitoterápica. Contai com seus sapientes conselhos ao longo de todo o ano de 2011.

 

Orai e vigiai para que a dama de incisivos proeminentes, que doravante vos governará, mantenha os subsídios federais à produção e importação de velas, incensos, indumentárias e demais paramentos necessários aos nossos rituais litúrgicos.

 

E a vós, que aqui presenciais esta minha aparição, sugiro que deixeis de criar bichos-da-seda e de colher cogumelos, pois tais afazeres não vos levarão a parte alguma. Muito menos à salvação eterna”.

 

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