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Imortais

Perfil distinto:

Histórias & Mistérios de Luli Oswald

Luli Oswald passou, anonimamente, por Saquarema, onde desfilava sua postura nobre: era uma figura alta,

altiva, com longos cabelos lisos, amarrados em um rabo-de-cavalo; ela olhava para um horizonte, talvez, perdido.

 

Por Latuf Isaias Mucci*

Do Blog do professor Latuf.

 

Luli Oswald

 

Foi através de meu filho Otavinho que conheci, há mais de duas décadas, Luli Oswald, ou melhor, conheci-a por meio de sua filha Márcia, muito amiga de meu filho. As notícias sobre aquela senhora chegaram-me cheias de aura: meu filho, mas contava como se falasse de um ser extraordinário. Luli Oswald amava imensamente Saquarema, que frequentava até para dar assistência à sua filha, que, segundo diziam, quando casada com poderoso industrial de Turim, sofrera grave acidente automobilístico na Itália.

 

Em Saquarema, cidade-berço de pescadores e surfistas, situada na Região dos Lagos, no Estado do Rio de Janeiro, as pessoas são, ao mesmo tempo, anônimas e comuns. Com o tempo, a gente vai conhecendo pessoas incrivelmente interessantes que, na rua, são “como um qualquer”, como dizia, com sua proverbial sabedoria, minha mineira mãe. Vem-me, agora, à mente a figura maravilhosa de José Maria Delgado Tubino, diplomata que, depois de reintegrado em suas funções, tendo amargado um exílio, veio morar aqui, em uma casa, construída com troncos de árvores. Para mim, ele era a pessoa mais erudita que jamais conhecera; então, tornei-me, há dois anos, amigo de outro “anônimo” saquaremense, Juan Arias, que tem uma erudição verdadeiramente enciclopédica.

 

Como tantos, Luli Oswald passou, anonimamente, por Saquarema, onde desfilava sua postura nobre: era uma figura alta, altiva, com longos cabelos lisos, amarrados em um rabo-de-cavalo; ela olhava para um horizonte, talvez, perdido. Sempre que a vislumbrava, eu corria a seu encontro, ouvindo-a falar de música, de sua música, de sua vida musical. Contou-me, por exemplo, de seus concertos no Japão, onde ganhara um piano Yamaha, mas que não pudera trazer ao Brasil por causa dos impostos; ainda sobre o Japão, relatou-me que lá, na terra do sol nascente, os anfitriões convidam os convivas para um banho coletivo, convite que ela recusava sempre, alegando que sua religião não permitia esse tipo de promiscuidade. Se tinha alguma religião, essa era, absolutamente, a música. Soube, também, por ela, que era muito amiga de Nelson Freire e que tinha adorado o filme sobre esse famoso pianista mineiro. Admirei-a ainda mais, pois, como artista, jamais deixava de festejar o talento alheio, coisa rara. Tinha especial orgulho em falar de seus concertos na Universidade Federal de Viçosa-MG, considerada a terceira melhor universidade pública do Brasil e a mais renomada universidade de agronomia da América Latina. Lá, ela era tratada como uma verdadeira celebridade. Luli era discretíssima e o que soube a seu respeito, ouviu-o da boca do povo saquaremense, que narrava como um conto de fadas. Com efeito, diziam que ela era uma princesa, filha do celebérrimo pianista polonês Arthur Rubinstein (1887-1982). Seria Luli filha de Henrique Oswald, nascido no Rio de Janeiro em 1852, onde morreu em 1931, festejado pianista, compositor, concertista e diplomata brasileiro, filho do suíço Jean Jacques Oschwald (que, ao naturalizar-se brasileiro, mudou o sobrenome para Oswald) e de Carlota Cantagalli, de origem italiana? Como auréola de uma santa, muitos insondáveis mistérios giram em torno de Luli. Jamais quis saber de suas origens verdadeiras, pois o que me interessava era sua arte da música e sua arte de viver singelamente, passeando, como uma Sílfide, por nossa Saquarema comum.

 

Incentivado pela saudade e querendo escrever sobre ela, fui entrevistar alguns amigos, que conheceram muito de perto a Luli e deles escutei as mesmas histórias que conhecia, porém com um tom diferente. Soube que ela fora entrevistada, várias vezes, no programa Jô Soares, da TV Globo, onde tocara piano. De sua origem misteriosa e mítica, deram-me conta de que certa princesa europeia se havia engravidado de um plebeu, tendo que fugir em um navio para a América do Sul. Nasceu, em águas internacionais, uma menina, que foi criada por Henrique Oswald, donde o sobrenome da Luli. Sua filha Márcia, que fora modelo de passarela na Itália (lembrei-me, então, das fotos dela, que eu vira e que me faziam pensar em Brigitte Bardot, em seus gloriosíssimos dias), ter-se-ia casado com um piloto da “Fórmula 1”; já o acidente automobilístico que a deixou muito prejudicada acontecera na própria Região dos Lagos, e não na Itália. Pesquisando, ainda mais sobre minha amiga Luli, fui ter com a ex-babá da Márcia, primogênita entre vários irmãos. Disse-me ela que D. Luli morava numa casa na Rua Lopes Quintas, no Jardim Botânico, bairro muito chique do Rio de Janeiro; seu pai chamava-se Marquesini, sua mãe, Dona Mima, e seu marido, Eurico Teixeira de Freitas, era proprietário de várias terras em Saquarema, jogava golfe e cuidava de cavalos. Segundo essa adorável senhora, D. Luli tratava muitíssimo bem a criadagem.

 

De outro amigo, meu e da Luli, fiquei a par de que, no Japão, ela dera aulas de piano a crianças de 2 a 4 anos, tendo sido agraciada pelo Governo daquele país. Quando de seu falecimento, descobriu-se, porque lavrou seguro a favor de Márcia, seu verdadeiro nome: Margarida Marquesini Teixeira de Freitas. Se, de acordo com esse amigo jornalista, era filha de Arthur Rubinstein, sua mãe deve ter sido Carmen di Viaggino.

 

Latuf: 'Tinha especial orgulho em falar de seus concertos na Universidade Federal de Viçosa-MG'.

 

Outra história, essa misteriosíssima, a respeito da Luli, dava conta de que ela fora abduzida por ET’s, que a deixavam passar o fim-de-semana em nossas praias; essa história fantástica era contada com ares secretos e a boca pequena, ou, no jargão da música, a bocca chiusa. Ninguém duvidava, tampouco acreditava, mas havia comentários, como ocorre nos mitos, que nos fascinam. De acordo com alguns, ela embarcara, rumo a Vênus, na nave espacial, a partir da ponte de Saquarema; na versão de outros, zarpara de Jaconé, bairro saquaremense. Sua filha jamais mencionou o que fosse, nem com relação a esses fabulosos fatos nem quanto à origem nobre de sua mãe. Quando Luli era entrevistada e se apresentava, como concertista, na Rádio MEC, aí, sim, havia certa comoção por aqui, a gente se telefonando e avisando que os dedos mágicos de Luli brindar-nos-iam com a arte divina. Acredito que apenas uma vez ela apresentou, há uns três anos, um concerto aqui, em Saquarema, no Teatro Municipal Mário Lago, quando tive a súbita honra de ser o arauto. Eis o repertório por ela mesma escolhido: Vivaldi: “Maestoso e Ária”; Gluck: “Melodia”; Scarlatti: “Pequena Sonata”; Bach: duas valsas”; Chopin: “Romance”, “Prelúdios”, “Noturno”; Debussy: “Prelúdio”; Henrique Oswald: “Sonhando”; Villa-Lobos: “Ginette do Pierozinho”; Francisco Braga: “Ingenuidade”; Alexander Seriabine: “Prélude”; Prokofieff: “Marcha do amor das três laranjas”. Como fui o apresentador do espetáculo, tenho, zelosamente, comigo o manuscrito desse variado repertório. O público, que locupletava o teatro, aplaudia-a fervorosamente. Ela apenas sorria, exibindo aquele inesquecível sorriso num rosto cheio de paz. O piano não fazia jus ao talento da musicista, mas, mesmo assim, tirando leite de pedra, ou melhor, tirando a melhor música de um instrumento que não estava à altura de sua arte, Luli Oswald a todos emocionou. Parecia que ela se despedia en beauté. Algum tempo depois, soube, na rua, por uma amiga comum, que Luli morrera no Hospital Municipal de Saquarema. Sem glórias, sem aplausos, sem fanfarras. Como uma pessoa qualquer saquaremense, ela, concertista internacional, filha, talvez, do maior pianista do século XX e, quem sabe, de uma princesa europeia, passava a outras dimensões, que, creio eu, ela bem conhecia. Ela partia, definitivamente, mas deixava, em nossa Saquarema, uma partitura de 1001 histórias, executadas por anônimos.

 

Com relação à experiência por que Luli Oswald, sendo abduzida, passou, recebi, dia 13 de fevereiro deste ano da Graça de 2009, justamente quando se inaugurava a Era de Aquário, um telefonema de São Paulo, onde um senhor, até então anônimo para mim, declarava ter me achado na edição virtual do jornal Poiésis, onde eu fazia rápida menção a Luli Oswald; ele, Mário Rangel, ufólogo, com trabalhos publicados, inclusive nos Estados Unidos, queria saber mais sobre a abdução da musicista carioca-saquaremense. Confirmou-me ele que há grande interesse, por parte da Ufologia universal, no caso de Luli Oswald que, por exemplo, não podia ver o desenho de um ET, pois ficava terrivelmente transtornada. Em nossos contatos imediatos por Internet, escrevi ao ufólogo que, a respeito da Luli, apenas conhecia histórias, talvez fantásticas, e enredos, certamente sublimes, ligados à música, sem me inteirar da questão de transporte para outras dimensões. Prometi-lhe, outrossim, elaborar uma crônica sobre Luli Oswald a fim de que sua imagem e memória ficassem fixas nas ondas perpétuas de nossa Saquarema mágica.

 

* Latuf Isaias Mucci, Pós-doutor em Letras Clássicas e Vernáculas/USP; doutor em Poética/UFRJ; mestre em Teoria Literária/UFRJ; mestre em Ciências Sociais (Université Catholique de Louvain, Bélgica). Professor dos Programas de Pós-Graduação em Letras e em Ciência da Arte/UFF. Ensaísta, poeta, tradutor e crítico de arte. Este texto foi extraído de seu blog http://professorlatuf.blogspot.com.

 

- Nota o professor Latuf faleceu em 09/09/2010.

 

- Leia mais sobre Luli Oswald na Biografia dos Ufólogos.

 

- Imagens: Biografia dos Ufólogos e Blog do professor Latuf.

 

 

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Euclides vive!

Os 100 anos da morte de Euclides da Cunha

Ele é apontado e aceito quase unanimemente como precursor da ecologia,

numa época em que essa expressão sequer existia entre nós, e pai da sociologia brasileira.

 

Por Luiz Augusto Erthal*

De Niterói-RJ

Para Via Fanzine

 

A alma euclidiana, agora digitalizada, está mais viva do que nunca.

 

Uma expedição chefiada por um ex-advogado de Chico Mendes subiu de barco, em março, o Alto Purus, no extremo oeste da Amazônia brasileira, refazendo a rota que levou Euclides da Cunha, como emissário do Barão do Rio Branco, a consolidar a anexação do Acre pelo Brasil; na Paraíba – um dos vários estados nordestinos que acessam, pela porta dos fundos, ao palco sombrio do flagelo da seca e da tragédia de Canudos –, um projeto do Conselho Estadual de Cultura propõe a revisitação, este ano, por toda a sociedade paraibana, ao autor de Os sertões; em Cantagalo, Estado do Rio, berço do escritor, foi aberta em fevereiro, diante do busto do mais ilustre filho da terra, a programação oficial do projeto "100 anos sem Euclides"; em São Paulo, a cidade de São José do Rio Pardo se mobiliza para realizar, pela 97ª vez consecutiva, a Semana Euclidiana, que anualmente atrai uma romaria fervorosa de leitores e estudiosos ao local em que o escritor-engenheiro construiu, na virada do Século XIX para o XX, uma ponte em estrutura metálica e a redação final de sua obra-prima.

 

Um olhar panorâmico pelo Brasil de hoje, como fez Euclides genialmente no capítulo inaugural de Os sertões, onde descreve em perspectiva tridimensional o relevo brasileiro como se o vislumbrasse do alto, a bordo de uma improvável nave espacial a flutuar pelos céus novecentistas do continente sul-americano, revelaria, além dos aspectos geográficos e geológicos descritos pelo escritor, um euclidianismo onipresente em todo o país. Cem anos após a sua morte, Euclides vive e resiste, como nenhum outro escritor brasileiro, mesmo praticamente varrido dos bancos escolares e acadêmicos, vítima de um revisionismo "politicamente correto" imposto por alguns setores intelectuais contemporâneos.

 

Um levantamento feito sobre o programa do vestibular de 2008 de 46 universidades brasileiras, incluindo a maioria das federais, além de várias estaduais e particulares, revela a mais absoluta ausência de Os sertões – considerada por nove de dez críticos literários como a maior obra da literatura brasileira – entre os livros indicados para leitura dos candidatos. No entanto, ele continua sendo estudado e debatido em renitentes círculos euclidianos, presentes até mesmo fora das fronteiras do país, como nenhum outro autor brasileiro, sustentado pela força do seu pensamento nacionalista, expresso, por sua vez, através de um estilo único, assombrosamente escultural na construção de um texto inconfundível.

 

O Euclides pensador continua motivando, hoje, acaloradas discussões em torno das idéias defendidas por ele nas mais diversas áreas do conhecimento, pelas quais viajou alucinadamente, percorrendo tanto o caminho das ciências naturais – geografia, geologia, biologia, botânica – quanto o das sociais. A despeito das posições polêmicas, ele é apontado e aceito quase unanimemente como precursor da ecologia, numa época em que essa expressão sequer existia entre nós, e pai da sociologia brasileira.

 

Foi, de fato, o homem que ensimesmou o Brasil, volvendo os olhares da Nação – até então fixos na faixa costeira – para o interior esquecido do país, onde o sertanejo do Nordeste ou o seringueiro da Amazônia não passavam de cidadãos invisíveis, totalmente ignorados pela sociedade litorânea.

 

O Euclides estilístico não suscita polêmica menor. Embora não se lhe possa negar as qualidades literárias, que o guindaram imediatamente à Academia Brasileira de Letras após a publicação de seu primeiro – e que primeiro! – livro, o rótulo de rebuscado ainda pontua e ressurge renitente diante do preciosismo com que selecionava as palavras, muitas retiradas de um vocabulário técnico adstrito às muitas matérias científicas desfiadas em sua obra, para com elas compor um texto que, dada a complexidade sintática, já foi até mesmo comparado ao de Camões. Estudo recente revela que Machado de Assis utilizou, em seus livros, mais de 16 mil palavras. Embora não se tenha notícia de pesquisa semelhante em relação a Euclides, o certo é que nem mesmo Machado teria sido capaz de lê-lo sem o auxílio de enciclopédias e dicionários.

 

Aliás, comparações entre Machado e Euclides se tornam inevitáveis, sobretudo agora, quando ambos completam, um após o outro, o seu centenário de morte. Parece inegável que Machado goze de mais popularidade, como demonstra uma simples pesquisa no Google, com base nos temas mais recorrentes relacionados aos dois escritores. A experiência retornou três milhões de resultados para Euclides, contra oito milhões para Machado. Mas, exceto por despontarem como os dois nomes mais importantes da literatura brasileira, Euclides e Machado são em tudo diferentes.

 

Além de possuírem estilos absolutamente próprios, há, ainda, uma outra e enorme distinção entre eles. Enquanto Machado viajava apenas através da sua ficção – deixou o Rio de Janeiro uma única vez, para um breve deslocamento a Nova Friburgo, na Serra Fluminense –, preferindo os mergulhos na alma humana às aventuras exteriores, Euclides era um agente vivo e real da história, da qual fora ator e redator.

 

Do cadete republicano rebelde, excluído da Escola Militar depois de afrontar o Ministro da Guerra do Imperador, Tomás Coelho, jogando ao chão o seu espadim, ao correspondente de guerra de O Estado de São Paulo, que transforma a cobertura do conflito de Canudos em uma denúncia contundente contra o massacre do arraial de Antônio Conselheiro pelo Exército brasileiro, Euclides esteve sempre em ação. Depois de defender em artigos na imprensa uma solução diplomática para a crise com a Bolívia pela anexação do Acre, foi nomeado pelo Barão do Rio Branco como chefe da Comissão do Alto Purus para fixar as fronteiras daquele território com o Peru, o que foi estabelecido depois de percorrer 6.400 quilômetros de barco, em uma viagem heroica, marcada por um naufrágio e pela tensão permanente no trato com os peruanos.

 

Havia, na escolha do chanceler, a expectativa de que a missão renderia ao escritor, então no auge de sua fama pela publicação de Os Sertões, a matéria-prima para um novo épico nacional, tendo a Amazônia como pano de fundo. De fato, depois de um ano na região, Euclides retorna ao Rio de Janeiro trazendo, além da malária e do sucesso diplomático, alguns manuscritos para um novo livro, que deveria chamar de Um paraíso perdido. A obra, porém, jamais seria concluída. Contudo, outros trabalhos literários importantes restaram como fruto dessa fase amazônica do autor fluminense, como Contrastes e Confrontos, Peru Versus Bolívia e À Margem da História, este publicado postumamente.

 

No dia 15 de agosto de 1909, com o casamento e a saúde abalados após a aventura amazônica, Euclides da Cunha morre em uma troca de tiros com o cadete Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e seu irmão, o aspirante Dinorá.

 

Cem anos após a tragédia da Piedade, como passou à história o episódio dramático que interrompeu prematuramente uma das mais brilhantes expressões da inteligência nacional, Euclides continua travando um duelo, não mais por sua honra pessoal, mas, agora, em sua defesa como intelectual. De um lado está um dos maiores expoentes do pensamento brasileiro; do outro, aqueles que se recusam a vê-lo como um homem do seu tempo, influenciado, naturalmente, pelas doutrinas então em evidência, como o positivismo, o determinismo geográfico e as teorias raciais baseadas na eugenia.

 

Mas a mesma pena que rotulou como "sub-raça" os habitantes do sertão, também sentenciou: "o sertanejo é antes de tudo um forte". Denunciou o genocídio cometido em Canudos, as mazelas dos povos da Amazônia, revelou a grandiosidade de um Brasil até então praticamente desconhecido e hoje resiste com força e tenacidade genuinamente sertanejas.

 

 

Euclides hoje

 

O escritor franco-mauriciano Jean-Marie Gustave Le Clézio, Prêmio Nobel de literatura de 2008, é hoje, talvez, um dos maiores tributários da memória de Euclides da Cunha. Admirador confesso do brasileiro, ele foi buscar em Os Sertões, conforme declarou em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 1997, a influência para a construção de seu principal livro, A Quarentena, que lhe rendeu a indicação da Academia Sueca e o cheque de um milhão de euros, pago no final do ano passado, em Estocolmo.

 

Le Clézio é apenas um exemplo da potência da obra euclidiana pelo mundo afora, onde, sem qualquer auxílio de marketing – até mesmo por já se encontrar em domínio público, ou seja, fora da órbita de interesse das grandes editoras –, ainda arrebata assombro e admiração. Também não é o primeiro escritor de fama internacional a utilizar Os Sertões como base para uma obra de ficção. Seguiu, na verdade, os passos do peruano Mario Vargas Llosa, em cuja bibliografia consta, em meio às suas principais obras, a Guerra do fim do mundo, uma reconstrução ficcional da luta de Canudos, mesclando personagens reais e imaginários.

 

Recentemente um encontro internacional promovido pela Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos, sob a organização do professor de Literatura Latino-Americana do Departamento de Espanhol e Português daquela instituição, reuniu 12 importantes pesquisadores da obra de Euclides da Cunha, entre eles o professor da Universidade de São Francisco, Fred Amory. Outros nomes de peso também dedicaram seus estudos ao brasileiro, alguns dos quais se notabilizaram como tradutores de Os Sertões, como Berthold Zilly (professor do Instituto América Latina da Universidade Livre de Berlim) e Antoine Seel, que verteram o livro para o alemão e o francês, respectivamente, além de August Willensen, já falecido, que traduziu a obra para o holandês.

 

No Brasil, o centro de gravidade do euclidianismo está localizado na cidade paulista de São José do Rio Pardo, onde Álvaro Ribeiro Netto, Márcio Lauria, Rodolpho Del Guerra, Célia Mariana Franqui, Lando Lofrano e Carmem Trovatto encabeçam a maratona anual de debates em torno do escritor, onde se tem formado novos seguidores, como Guilherme Félice, Rachel Bueno, Nicola Costa, Marco de Martini, Stenio Steter e Paulo Herculano. No meio acadêmico se destacam nomes como Walnice Galvão, Foot Hardmann, Fadel David, Everton de Paula, Marleine de Paula, José Carlos Barreto, Maria Olívia Garcia, Nicolau Sevcenko, Regina Abreu, Ronaldes Melo, Valentim Facioli, Rinaldo de Fernandes, Costa Lima, Jorge Coli e Roberto Ventura, jovem professor e biógrafo de Euclides morto tragicamente em acidente automobilístico quando voltava de uma palestra na Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo, em 2002.

 

No Estado do Rio, terra natal do escritor, a tribuna euclidiana é ocupada, na Academia Brasileira de Letras, por Alberto Venâncio Filho e por Edmo Rodrigues Lutterbach, atual presidente da Academia Fluminense de Letras, que viveu a infância na casa em que nasceu Euclides da Cunha, na Fazenda da Saudade, em Cantagalo.

 

'Os Sertões': clássico da literatura brasileira.

 

Bibliografia:

 

Obras: Os sertões, epopéia e ensaio (1902); Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana do Alto Purus (1906); Castro Alves e seu tempo, crítica (1907); Peru versus Bolívia (1907); Contrastes e confrontos, ensaio (1907); À margem da história, história (1909); Cartas de Euclides da Cunha a Machado de Assis, correspondência (1931); Canudos, diário (1939). Obra completa, org. Afrânio Coutinho, 2 vols. (1966).

 

Euclides, dos sertões a todo o mundo.

 

Dados biográficos (extraídos da Academia Brasileira de Letras)

 

Euclides da Cunha (E. Rodrigues Pimenta da C.), engenheiro, jornalista, professor, ensaísta, historiador, sociólogo e poeta, nasceu em Cantagalo, RJ, em 20 de janeiro de 1866, e faleceu no Rio de Janeiro em 15 de agosto de 1909.

 

Era filho de Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha e de Eudóxia Moreira da Cunha. Manuel Rodrigues era baiano, pertencia à geração romântica de Castro Alves e fazia versos de inspiração humanitária e social. Órfão de mãe aos três anos de idade, Euclides fez os primeiros estudos em São Fidélis. Depois de freqüentar vários estabelecimentos, concluiu o curso de humanidades no Colégio Aquino, tendo sido ali discípulo de Benjamin Constant. Com outros companheiros, fundou o jornal "O Democrata", onde publicou as composições líricas das Ondas, o curioso caderno de 84 poesias, onde já se expressam as amarguras e os arroubos do seu gênio nascente.

 

Em 1884, matriculou-se na Escola Politécnica. Dois anos depois assentou praça na Escola Militar, às vésperas de 89. Os trabalhos da "Revista da Família Militar" bem revelam as inspirações daquela mocidade republicana. Em 1888, ocorreu o episódio de insubordinação que ficou famoso, no qual Euclides da Cunha lançou aos pés do ministro da Guerra, conselheiro Tomás Coelho, a sua espada de cadete. Submetido a Conselho de Guerra, foi, por seu ato de indisciplina, desligado do Exército. Mudou-se para São Paulo e iniciou, a convite de Júlio Mesquita, uma série de artigos.

 

Regressou ao Rio, onde assistiu à proclamação da República. Seus antigos colegas da Escola Militar, todos republicanos como ele, por iniciativa de Cândido de Rondon, foram a Benjamin Constant e solicitaram a reintegração de Euclides da Cunha no Exército. É de 19 de novembro de 1889 o ato de sua promoção a alferes-aluno. Em 1890, concluiu o curso da Escola Superior de Guerra como primeiro-tenente. Foi trabalhar na Estrada de Ferro Central do Brasil em São Paulo e Caçapava. Na revolta de 1893, foi um dos partidários veementes da legalidade. Eventos posteriores e a circunstância de ser genro do general Sólon, preso por Floriano Peixoto, tornaram Euclides da Cunha suspeito. Em 1896, deixou o Exército e volveu à engenharia civil, sendo nomeado engenheiro ajudante da Superintendência de Obras do Estado de São Paulo.

 

Quando irrompeu o movimento de Canudos, São Paulo colaborou com o país na repressão do conflito, mandando para o teatro da luta o Batalhão Paulista. Euclides foi encarregado pelo jornal "Estado de S. Paulo" para acompanhar como observador de guerra o movimento rebelde chefiado por Antônio Conselheiro no arraial de Canudos, em pleno sertão baiano. Estava ele no teatro de operações de 1º a 5 de outubro de 1897 e ali assistiu aos últimos dias da luta do Exército com os fanáticos de Antonio Conselheiro. Em Salvador, havia procedido a um profundo estudo prévio da situação no que respeita aos aspectos geográfico, botânico e zoológico da região, bem como aos antecedentes sociológicos do conflito. Documentou-se de modo exaustivo e exato, formando sobre o caso um juízo imparcial e objetivo. Enviou então para o jornal as suas reportagens, que iriam transformar-se no seu grande livro, Os sertões. Em 1898, fixou-se em São José do Rio Pardo, onde redigiu o livro, incentivado pelo seu grande amigo, Francisco Escobar. São José do Rio Pardo conserva até hoje a memória de Euclides da Cunha.

 

Trabalhando como engenheiro e como escritor, Euclides da Cunha realizou dois trabalhos ao mesmo tempo: quando acabou a construção de sua ponte, acabou também a composição de Os Sertões, livro que foi escrito num barracão de madeira, hoje conservado como uma relíquia. Tentou inutilmente publicá-lo no Estado de S. Paulo. Afinal, trazendo uma carta de Garcia Redondo para Lúcio de Mendonça, foi ao Rio de Janeiro tratar da publicação dos Sertões. O livro saiu em 1902 e obteve êxito sem precedentes em nossa literatura, consagrado pela crítica como obra-prima. No ano seguinte, Euclides era eleito para o Instituto Histórico e para a Academia Brasileira de Letras.

 

Em 1904, Oliveira Lima apresentou Euclides da Cunha ao barão do Rio Branco, que o nomeia chefe da Comissão Brasileira no Alto Purus, para demarcação de fronteiras. Em Manaus era hóspede do seu velho amigo Alberto Rangel. Seguindo para o local a que se destinava, atingiu com a Comissão Mista a foz do Pucani, as últimas vertentes do Purus, realizando assim um dos atos de bandeirismo mais destemidos que se conhecem. Regressando a Manaus, redigiu o “Relatório” da Comissão. Em 1907, passou a trabalhar no Itamarati. São dessa fase os livros Peru versus Bolívia e Contrastes e confrontos, cujas páginas também resultaram de artigos anteriormente escritos para "O Estado de S. Paulo". Em 1908, inscreveu-se num concurso de Lógica, no Colégio Pedro II. Foi nomeado professor após ter-se submetido à banca examinadora formada por Raja Gabaglia, Paulo de Frontin e Paula Lopes. Como professor, deu apenas 19 aulas, de 21 de julho a 13 de agosto. Na manhã de 15 de agosto de 1909, na Estação de Piedade, Estrada Real de Santa Cruz, caía, ferido por uma bala de revólver, aquele que se tornou, por uma tácita eleição da alma nacional, o gênio por excelência representativo da terra, da gente e das mais elevadas aspirações brasileiras.

 

A publicação de Os sertões é um marco na vida mental do Brasil. Livro único, sem igual em outras literaturas, misturando o ensaio, a história, as ciências naturais, a epopéia, o lirismo, o drama, mostra a definitiva conquista da consciência de brasilidade pela vida intelectual do país. A importância literária e científica dessa obra, reconhecida, logo de início, pela crítica autorizada de José Veríssimo e Araripe Júnior, e confirmada pelas sucessivas apreciações posteriores, explica o segundo plano em que ficaram as demais obras de Euclides da Cunha. Mas, em Peru versus Bolívia, Contrastes e confrontos e À margem da história também se encontram páginas literárias em que ficaram impressas as marcas inconfundíveis do seu estilo, a objetividade das conclusões, oriundas sempre da observação direta da realidade enfocada e de análises percucientes e honestas, expostas com a coragem de um escritor participante, que só tinha compromissos com a verdade.

 

*Luiz Augusto Erthal é jornalista e editor fluminense.

- Contato: erthal@nitpress.com.br

- Seus sites são www.nitpress.com.br e www.youpode.com.br/blog/todapalavra

 

- Fotos: www.academia.org.br/abl

- Charge: Netto Criação.

 

 

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