Vida de artista:
Minha vida com o Zé
'Entre nós dois havia uma perpétua
competição. Mas ao mesmo tempo
nos recusávamos a deixar que um de nós
ficasse muito atrás nessa corrida maluca'.
Por Luiz Carlos Sá*
Especial, para
Via Fanzine
30/05/2009

Sá, Rodrix &
Guarabyra: amigos e parceiros musicais.
Nos idos de 1966, meu amigo Nelson Lins de Barros me chamou
para uma atividade muito comum na época:
- Quer ser júri do Festival do Aplicação?
Grande festival de música estudantil, o do Colégio de
Aplicação, no Rio de Janeiro, costumava sempre mostrar coisas boas em
proporção bem maior que seus similares. Aceitei no ato:
- Vamos lá!
Minha intuição musical, mais uma vez, estava certa. No
festival destacou-se um grupo vocal de nível muito superior aos demais
concorrentes, o MomentoQuatro. Depois, nos camarins (quer dizer, nas
salas de aula do Aplicação reservadas para este fim...) fiz amizade
instantânea com seus componentes, pouco mais novos que eu: dois futuros
Boca Livre (David Tygel e Maurício Maestro), Ricardo Villas e Zé Rodrix.
Eles tiveram suas vidas trançadas com a minha em diversas ocasiões:
David dividiu comigo um quartinho metido a suíte no cariocamente mítico
Solar da Fossa, uma sede de fazenda do século 18 que – acreditem – foi
dividido em centenas de quitinetes e virou muquifo habitacional de todo
artista que merecesse esse nome no Rio dos anos 60, para acabar
lamentavelmente soterrado sob o abominável Shopping Rio-Sul, ao invés de
ter sido justamente tombado como Patrimônio Mundial pela Unesco; Ricardo
Villas foi meu cunhado e é tio de dois de meus filhos; Maurício Maestro
arranjou e gravou diversas músicas minhas; e Zé Rodrix... Bem... Zé é
parte integrante da minha história de vida.
Foi Zé, com sua dinâmica extra-sensorial, que me empurrou
definitivamente pro poço da música. Tornamo-nos parceiros e amigos
inseparáveis no final da década de 60. Nossa interação musical era quase
metafísica: eu ia pra casa dele, um apezinho quarto e sala na Prudente
de Morais e passávamos dias e noites compondo todo tipo e espécie de
música, das geniais às ridículas: jingles, sátiras, sinfonias, tudo isso
saía das máquinas de compor que éramos.
Quando eu desanimava, Zé me animava, acenando com um futuro
melhor para além da censura oficial e do atraso crônico de contas a
pagar que então sofríamos. Como se tudo isso não bastasse, lá se foi meu
primeiro casamento pras cucuias... E aí apareceu na nossa vida de dupla
um outro apê histórico pra nós: o apartamento 1 (era assim
antigamente...) da rua Alberto de Campos, 111, Ipanema, Rio, Centro do
Universo. Lá moravam nosso amigo Guttemberg Guarabyra e os jornalistas
José Trajano e Toninho Neves, que me albergaram naquela hora difícil. E
para lá - com o nascimento de Marya Rodrix que não conseguia dormir com
nossa algazarra – mudou-se nosso ensaio de dupla, que logo virou trio,
com a adesão de Guarabyra.
Pra resumir, caímos na estrada e estouramos no Brasil
inteiro com dois discos, “Passado, Presente e Futuro” e “Terra”. Como
sempre e eternamente acontecerá com 99% dos jovens grupos de todos os
tempos, o sucesso acabou deteriorando nossa relação, No começo de 74,
entre recriminações e ranger de dentes, nos separamos. Zé foi ser solo e
eu e Guarabyra, que também partimos a princípio pro solo, acabamos por
seguir em dupla.
Esse ressentimento idiota durou até a dupla Sá & Guarabyra
comemorar dez anos de carreira, em 82, quando – nós e ele, mais
amadurecidos – chamamos o Zé para uma participação especial num
memorável show em São Paulo. E dali, entre presenças e ausências,
seguimos nos falando de vez em quando até 93, quando o convocamos de
novo para arranjar e colaborar no vocal em duas músicas do CD “Sá &
Guarabyra – Antenas”. O namoro – eh, eh! - foi longo: só em 2001 nos
“casamos” de novo, reunindo o trio para uma apresentação no Rock In Rio
III que virou CD, DVD e fez com que, afinal, nos jurássemos juntos para
sempre de novo.

Sá, Rodrix &
Guarabyra, em recente apresentação ao vivo.
Mas o destino é caçador, e neste 22 de maio de 2009
aconteceu o impensável, o inimaginável, o imprevisível: Zé morreu. Meu
espanto e sofrimento por esse fato não se devem somente à dor da perda
de um amigo de mais de quarenta anos, o que já não é mole, mas também ao
fato de que eu achava que o Zé não ia morrer nunca. Como pode morrer uma
pessoa tão viva, tão ativa, tão irrefreável, que chegava a nos afligir
com sua permanente atividade? Zé era um polvo, com tentáculos que se
esticavam para alcançar o máximo possível de atividade humana que
pudessem conseguir. E, de repente, o nada. Se até ele morreu, então
todos nós somos realmente mortais. Pode? Infelizmente, pode.
Nestes últimos oito anos de re-união fomos brindados com
tudo o que a vida pode oferecer de melhor e pior para dois amigos:
brigamos, gritamos, nos reconciliamos, nos estranhamos, nos atraímos,
nos repelimos, nos abraçamos, quase nos batemos, nos beijamos... Entre
nós dois havia uma perpétua competição. Mas ao mesmo tempo nos
recusávamos a deixar que um de nós ficasse muito atrás nessa corrida
maluca. A mão amiga de um estava sempre à disposição do outro. Porque,
como sabiamente me falou um dia Tavito, nosso irmão em comum: “amigos de
quarenta anos não erram: só se enganam...”.

Sá, Rodrix &
Guarabyra: ontem e sempre.
Então, fico aqui me lembrando dos dedos curtos do Zé no
teclado – eu sempre ficava imaginando como ele conseguia alcançar uma
oitava inteira! - e da sua maneira de falar sempre olhando para cima, o
que fazia com que ele parecesse mais alto do que realmente era... Dos
seus passos apressados, da sua regência nada técnica, mas sempre
empolgada e contagiante, dos seus trejeitos e maneiras, das suas
incongruências e certezas tão expostamente humanas, da fragilidade
sensível que se escondia atrás de uma segurança montada por anos de
cuidadosa construção de objetivos e metas: assim mesmo, como todos nós
somos e fazemos, uns mais à vista que os outros.
Uma desgraça dessas, que deixa amigos e parentes com o
coração na mão, faz com que nos caia a ficha da fragilidade da vida
humana, em contraste com a sensação enganosa de eternidade que sempre
nos cerca. Então, resta-me constatar essa fragilidade, dolorosamente
exposta por James Taylor no refrão da genial e clássica “Fire and Rain”,
que ele compôs para uma amiga inesperadamente falecida. Música essa,
aliás, que nós três ouvíamos quase que obsessivamente naquele apê da
Alberto de Campos:
“I've seen fire and I've seen rain
I've seen sunny days that I thought would never end
I've seen lonely times when I could not find a friend
But I always thought that I'd see you here one more time
again”.
Ou, livremente traduzido:
“Já passei por fogo e por chuva,
Já passei por intermináveis dias ensolarados
Já enfrentei tempos solitários, quando não pude encontrar
um amigo sequer...
Mas sempre pensei que poderia te ter aqui comigo
Pelo menos uma vez mais”.
Boa viagem, meu amigo.
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Luiz Carlos Sá é músico, compositor, publicitário e integrante do trio
Sá, Rodrix & Guarabyra.
- Fotos: Divulgação.
- Produção: Pepe
Chaves
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