acervo digital do historiador mineiro

 TEXTOS - transcritos

 

Resgatando a memória popular:

 

“Mãe do Ouro”

Por João Dornas Filho*

 

É uma lenda cuja universalidade se emparelha com a sua antiguidade. O velocino de ouro, de Jasão, e a taça do Rei de Tule, legenda do tempo do Rei Artur, são assinaladas em seu jazigo pelo fogo sideral que risca o céu nas noites do Mediterrâneo e dos mares do norte. É o Santelmo.

  

No ocidente a lenda dos tesouros enterrados em ilhas misteriosas pelos piratas argelinos, flamengos e franceses revitalizaram a tradição da antiguidade.

 

No Brasil, a descoberta do ouro e dos diamantes lhe deu vida nova, corroborada pela crença dos fabulosos tesouros jesuíticos, enterrados pelos padres da Companhia, que não tiveram tempo de conduzi-los quando foi da sua expulsão.

 

Em Minas é a sonegação dos impostos da Coroa portuguesa que explica os tesouros enterrados, guardados pela “Mãe do Ouro”, que os indica também às pessoas que os desejam para as boas ações.

 

É o bólico, ou desagregação de astros, provocando a luminosidade que risca os céus principalmente nas noites de verão. Não se deve apontá-la com o dedo, porque lhe nascem verrugas ou fica linguaruda a pessoa que o fizer.

 

Principalmente em Minas, região aurífera, o número de tesouros enterrados se conta quase por cada uma das cidades, vilas ou arraiais. Em Ouro Preto até nos alicerces e nas paredes de cada casa.

 

Em Sabará, a Igreja do Carmo está construída sobre um espantoso tesouro, que pertencera a dois irmãos, desavindos na hora da partilha. Acordaram por fim que ambos abririam mão do ouro entesourado e sobre ele se construiria a Igreja que lá está, sob a guarda da Senhora do Carmo e da “Mãe do Ouro”.

 

Em Belo Horizonte o tesouro está enterrado no local que hoje se chama Mangabeira. Foi enterrado por um português que o ajuntara durante vários anos, e como aumentasse sempre o metal na sua lavra, resolveu escondê-lo ali e ir a Portugal, de onde traria os irmãos para ajudá-lo na extração. Foi e nunca mais regressou.

 

Diz a lenda que esse tesouro está enterrado na fralda do morro, no vale do córrego do Acaba-Mundo, em frente à Igreja do Boa Viagem. Esta igreja era então voltada para o sul.

 

Mas, a “Mãe do Ouro” não indica apenas os tesouros sonegados. Ela anuncia também as desgraças, as guerras, as pestes, as más colheitas. As crônicas jesuíticas, que são o mais opulento tesouro de superstições e milagres da nossa História, estão cheias de casos em que a “Mãe do Ouro” denuncia a proximidade das catástrofes e dos acontecimentos sobrenaturais, das pestes e das guerras.

 

Na serra da Moeda, proximidades de Belo Horizonte, a “Mae do Ouro” tem a forma de uma cobra — a “Cobra Serpente”.

 

* João Dornas Filho (1902-1962), escritor e historiador mineiro.

 

- Extraído do livro, "O ouro das Gerais e a civilização da Capitania", João Dornas Filho. São Paulo, Companhia Editoria Nacional, 1957, Coleção Brasiliana, vol. 293, nota 23, pág. 46-47).

 

- Do Diário de Minas, Belo Horizonte, 15 de novembro de 1950.

 

- Fonte: http://joaodornas.blog.terra.com.br

 

- Colaborou: Geraldo Fonte Boa.

 

Folclore dos Garimpos

Da região do rio das Garças e do rio Araguaia recebeu o autor algumas peças de valor etnográfico,

qual sejam os "abc" que contam a vida do garimpo do alto sertão goiano.

O que, aqui, reproduzimos é assinado por Otávio J. de Oliveira.

 

Por João Dornas Filho*

Ei-lo:

 

Araguaia é um rio rico

Porém de muita importância

Contará com o prejuízo

Quem fizer fiança

Gente que muito abraça

Quando é no fim pouco alcança

 

Bastantes almofadinhas

Que lá estão iludidos

Estão tocando escafandro

Já todos esmorecidos

Pelo que estou vendo

Seus cálculos saem perdidos

 

Coitados dos bamburristas

De lá nos anos passados

Pensavam que este ano

Os bamburros eram dobrados

Mas agora eles estão vendo

Que todos estavam enganados

 

Diamante tem o tempo

Ele não sai assim à toa

Se ele fosse inacabável

Isto era uma vida boa

Porém com mais ambição

Parece que ele avoa

 

Eu até hoje me lembro

Que no garimpo do Poço

Ninguém queimava cascalho

Pegava diamante grosso

O fato bem pensado

Isto era um colosso

 

Fizeram um grande alarme

Pelo Brasil inteiro

Diziam que trabalhando

No canal faziam dinheiro

O Araguaia abalou

Até país estrangeiro

 

Grande número de gente

Que lá este ano ajuntou

Se alguém lá fez dinheiro

O mais tudo se encravou

Lá morreu um canalista

Que até o capacete ficou

 

Havia lá muitos homens

Bem poucos que mergulhava

A influência era tanta

Porém não atacava

Tinha gosto de vestir

Mas nem o capacete molhava

 

Isto era perigoso

Quem tinha medo tinha razão

Quando uma máquina encravava

O mergulhador não tinha salvação

Logo ele saía morto

Arrastado pela mão

 

Já o povo se assustava

Viviam só em aflição

Logo corria dizendo

Ali tem naufragação

Só quem salvava era Deus

Se tivesse compaixão

 

Cada vez que uma máquina

estava tocando encravava

Este no dizer do povo

O mergulhador não se salvava

Logo o mangueiro

Nos emburrado enroscava

 

Lá o primeiro desastre

Que aconteceu este ano

Foi uma máquina encravada

Com um mergulhador baiano

Já o rapaz estava morto

Quando o tirou pelo cano

 

Morreu também um alemão

Com desculpa de congestionado

O que é certo quando viram

Já ele tinha rodado

Embaraçou-se com o outro

Que estava do outro lado

 

No espaço de pouco tempo

Logo outro alemão morreu

Este ficou congestionado

Pelo aspecto pareceu

Quando ele foi tirado

Logo as unhas empreteceu

 

O povo não se incomoda

No dia foi para o serviço

Este pobre que morreu

Só se achou com um patrício

Para levar ao cemitério

Foi um grande sacrifício

 

Pois neste mesmo dia

Que este foi saqueado

Quando foi ao meio-dia

Tinha um embaraço

Não havia meio de tirar

Aquele pobre coitado

 

Quando passou dezoito dias

Foi que o cadáver boiou

Foi caso muito sério

Que preso o capacete ficou

Isto foi visto por todos

Que todos admirou

 

Rio bravo como este

No mundo não há igual

Daí passou poucos dias

Morreu outro no caudal

O Araguaia este ano

Vai causar um grande mal

 

Se o Araguaia fosse manso

Não tivesse correnteza

Podia-se facilmente

Descobrir sua riqueza

Araguaia é um rio rico

Bem rico de natureza

 

Também lá tem o rebojo

Que este muito atrapalha

É com muito sacrifício

Que o mergulhador trabalha

A influência este ano

Foi como fogo de palha

 

Uns escafandristas este ano

Que lá não fizeram nada

Estão todos esburacados

Isto é uma vida encravada

Esperando o rio encher

Estão todos de arriba

 

Vai servir de grande exemplo

Para os capitalistas

Pensavam por ter dinheiro

Eles eram bamburristas

Ele só dava valor

Mergulhador canalista

 

Xegava tanto escafandro

Coisa de admirar

A mancha velha

Todos iam visitar

Iam tirando entulho

Até desacuçar

 

Isto era um comunismo

Serviço ninguém reparava

Aonde um descobrisse

Os outros todos encostava

Só na praia do bamburro

Que eles lá respeitava

 

Zoiando lá os serviços

Para ninguém não entrar

Tinha muito diamante

Para eles só pegar

Tinha fuzil encostado

Para quem quiser teimar

 

— O til é letra do fim

Porém de muito valor

Esta serve de exemplo

No Araguaia eu mais não vou

Garimpo do Araguaia

Para mim já se acabou

 

Poço do rio Araguaia, 12 de outubro de 1928

 

Como se viu pelo desenvolvimento da xácara sertaneja, inúmeros elementos etnográficos contêm a sua contextura, e peças como esta precisam ser recolhidas cuidadosamente para o posterior exame dos entendidos.

 

* João Dornas Filho (1902-1962), escritor e historiador mineiro.

 

- Do Diário de Minas, Belo Horizonte, 15 de novembro de 1950.

 

- Fonte: http://joaodornas.blog.terra.com.br

 

- Colaborou: Geraldo Fonte Boa

 

O cabelo humano na feitiçaria

Há em Minas Gerais um grande número de abusões e feitiçarias de origem

africana que tem o cabelo como elemento principal da sua manipulação.

 

Por João Dornas Filho*

 

Do meu arquivo constam três peças desse gênero, que passarei a copiar como as colhi.

 

Existia em Ouro Preto uma formosa mundana que, tendo rendido a seu capricho todos os homens que desejava, viu o seu orgulho ferido pela esquivança de um apenas.

 

Ofendida por esse fracasso, a mundana, mancomunada com uma escrava, preparou a mandinga na forma de um bolo apetitoso e enviou-o, em nome de um amigo, ao insubmisso varão, que mal comido o quitute, se renderia incondicionalmente aos encantos da astuciosa mulher.

 

Mas, acontece que quem recebeu o presente foi a esposa do desejado amante que, desconfiando da procedência da bandeja, deu o bolo a comer a um cão do seu marido. E, devorado o manjar, esse cão, como que atraído por forças irresistíveis, partiu celeremente, seguido pela escrava da senhora, segundo recomendações desta, para saber o destino que tomara o animal.

 

Atingida a casa da mundana, o cão pôs-se a latir e a forçar a porta com impaciência. E a mundana, supondo tratar-se do homem que desejava, se apresenta toda orgulhosa para ver rendido o rebelde a seus pés, quando é violentamente cingida pelo animal que, erguido nas patas traseiras, a abraçava com o furor de um amante.

 

O bolo fora confeccionado com cabelo pubiano da mundana.

 

Esta outra foi colhida em Santa Bárbara:

 

Uma jovem desgraciosa se apaixonara por um rapaz, dono de uma tropa de muares que arranchava semanalmente na fazenda do seu pai.

 

Como o tropeiro, por desdém ou qualquer outro motivo, não tomasse conhecimento do interesse da moça, resolveu recorrer a um feitiço manipulado com alguns fios de cabelo do rapaz. Para isto, obteve, por intermédio de um empregado do tropeiro, a mecha desejada, alegando que era para ter uma lembrança do esquivo mancebo.

 

Recebida e preparada a mandinga, ficou a moça à espera dos resultados.

 

Uma noite é ela acordada por fortes pancadas na porta do seu quarto, acompanhadas de fortes berros e espirros. Aberta a porta, um bode grande e amarelo, ostentando uma longa barba loura, procurava refugiar-se nas suas saias. É que a mandinga fora feita com os cabelos da barba desse bode, insidiosamente fornecidos pelo empregado do tropeiro.

 

Esta é de Santa Luzia:

 

Uma moça se apaixonou por um arrieiro de tropa que não fazia caso dela. A pedido da namorada infeliz, alguém ficara de lhe arranjar uns fios de cabelo do arrieiro, mas, em vez disso, arranjou-lhe fios do couro que reveste a cangalha.

 

Feito o despacho, começa a cangalha a dar pinotes em direção da casa da moça, onde estacou e só perdeu o "encanto" quando a rapariga deitou no fogo o despacho.

 

A versão que recolhi em Sabará é a de que, tendo chegado à cidade, nos tempos coloniais, um ouvidor jovem e belo, não tardou que por ele se interessasse uma certa donzela, talvez já impaciente de arranjar casamento. E como o juiz não se movesse por força dos ardis costumeiros, não titubeou ela em lançar mão da mandinga dos cabelos. Para isto, tentou peitar o escravo do senhor, para conseguir uns fios de barba quando ele se barbeasse.

 

O fiel escravo contou ao moço o sucedido e combinou-se que se levasse cabelo raspado de um surrão que o amo possuía.

 

Manipulado o despacho, é a moça acordada certa noite com fortes pancadas na porta. Levanta-se com sofreguidão e verifica, antes de desmaiar para falecer no dia seguinte, que era um surrão de couro que se acutilava à porta do quarto.

 

Existem por aí centenas de variantes, cujo fundo é sempre a ingerência do cabelo na manipulação do trabalho de macumba.

 

 

* João Dornas Filho (1902-19662), escritor e historiador mineiro.

 

- Texto extraído de Estado de Minas, 22 de abril de 1962, 3ª seção, p.2.

 

- Fonte: http://joaodornas.blog.terra.com.br

 

- Colaborou: Geraldo Fonte Boa

 

POEMAS

 

A Criação*

Poema de João Dornas Filho*

 

Entre um gélido espanto

A tortura do medo

Num surto colossal

Negras cerdas ao vento

 

Adão, pasmado,

Vislumbra o pântano e o arvoredo

E o mar sanhudo e a terra em viço

e o céu cinzento...

 

A criação, a criação...

 

Paira de Norte a Sul

Recôndito segredo

Esplendor e glória:

é o sol no firmamento

 

Geme, soturno, o mar,

Dorme, frio, o rochedo

vibram na imensidão

Força e movimento

 

Eis súbito, a floresta e os céus

irados, rugem...

As feras uivam, o mar se agita

O Éden estremece

 

Ao tiro dos trovões

Num céu de ferrugem

Era o assombro de Deus

Na imensidão da treva...

 

A criação, a criação...

 

Era o bem e o mal

O castigo e a prece

Surgia nua e bela,

Entre rugidos, Eva...

 

A criação, a criação...

 

* João Dornas Filho (1902-1962), escritor e historiador mineiro.

- Texto extraído do Livro "Itaúna Humana e Pitoresca", 1962.

Em 2001 Pepe Chaves musicou o poema "A Criação", de João Dornas Filho.

 Clique aqui para fazer download da música "A Criação" (Dornas/Chaves) - 4.5mb - arquivo wma

 

A Cachaça*

Poema de João Dornas Filho.

 

A cachaça é minha prima,

o vinho é meu parente.

Não há festa nem festejo

que meus parentes não entre.

 

Vou mandar fazer um bicame

de madeira de canela,

pra passar toda cachaça

dos quintos pra minha goela.

 

No fim da minha vida

quero morrer de fartura

O quinto será meu caixão,

o alambique a sepultura.

 

A cachaça é moça branca

filha de homem trigueiro;

quem tomar amor por ela

não pode ajuntar dinheiro

 

Minha caninha verde

que veio de Montevidéu,

veio engarrafada

na capa do meu chapéu.

 

Vinho de cana é cachaça,

concha pequena é colher,

língua de velha é desgraça,

bicho danado é mulher.

 

* João Dornas Filho (1902-1962), escritor e historiador mineiro.

 

- Extraído do suplemento “A cachaça no folclore de Minas Gerais”.

    Jornal "Estado de Minas". Belo Horizonte-MG, 24 junho de 1962, 2º Caderno, p.3-4).

 

Meus oito annos*

Poema de João Dornas Filho.

 

A lua branda e redonda

Surge atraz do cruseiro e vae abrindo

O cofre de joias das estrellas...

 

No Largo as creanças rodam em roda

e vão abrindo o porta-joias da garganta:

 

Ó ciranda, cirandinha,

Vamos todos cirandá...

Vamos dá a meia volta,

Volta e meia vamos dá...                 

 

Sob o olhar pisca-pisca das estrellas,

Na velha e tórta rua Direita,

onde mora o Chico Franco e o Padre João...

 

- Bico será!

- Será pegá!

- Si não pegá!

- Arrume-se lá!

- Tatu tá no mundo?

- Moendo fubá!

- Fininho ou grosso?

- Fininho só!

- Fiau! ajunta no pé, negrada!...

 

* João Dornas Filho (1902-1962), escritor e historiador mineiro.

 

- Texto extraído da Revista Verde, Cataguases-MG, Janeiro/1928, Ano 1, Número 5, pág.14).

 

CANTIGA DOS CAPINADORES

DE RUA DE BELO HORIZONTE

Por João Dornas Filho

- Leia em:

http://joaodornas.blog.terra.com.br/cantiga_dos_capinadores_de_rua_em_belo_h

 

 

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