CAPÍTULOS DO LIVRO
“Itaúna, Contribuição para a História do Município”
João Dornas Filho
Original impresso em
1936, Belo Horizonte-MG, Brasil; 190 págs.
NOTA DO AUTOR
Há
muito que alimentava o desejo de fixar a história do nosso
município, recolhendo dados esparsos nas bibliotecas, nos
arquivos, na tradição, e coordenando-os para que os anos não os
maltratassem ou destruíssem.
Consegui-o agora, não como desejava, porque não era este amontoado
desconexo de fatos e datas o meu plano, que o império de outras
necessidades obstou.
Fica, entretanto, o exemplo para outros filhos de Itaúna, que
devem prosseguir do ponto em que minhas forças colocaram a obra.
O pouco que ali está, produto de um esforço pequeno, mas honesto e
bem intencionado, pode servir para que outros prossigam nesse
caminho, e é esse o meu desejo de itaunense.
A meus pais, que não eram itaunenses de nascimento, mas deram a
Itaúna doze cidadãos que não a desonra.
João Dornas Filho
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NOTAS DO
PRESENTE EDITOR:
1) Estaremos publicando periodicamente nesta página, capítulos da obra “Itaúna, Contribuição para a História do
Município” (BH-1936), de João Dornas Filho, que
contava com 34 anos quando publicou este livro. "Sant'Ana de São
João Acima" ou somente "Sant'Ana" refere-se a cidade de Itaúna-MG,
quando ainda arraial.
2) Optamos por atualizar o Português das presentes publicações,
com o intuito de salvaguardar para o futuro, melhor entendimento
das questões tratadas pelo autor. No entanto, preservamos todas as
palavras originais utilizadas pelo autor, bem como a original
pontuação dos seus textos.
3) Este livro foi
publicado em 1936, portanto, havia ocorrido somente a primeira
guerra mundial.
4) O presente
material digital (textos e imagens) pode ser reproduzido e
veiculado por quaisquer veículos de comunicação, desde que sejam
citados todos os créditos expostos no topo dessa página e o
endereço deste site:
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Pepe Chaves
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A República
Por João Dornas Filho
Itaúna foi um dos primeiros lugares em Minas que
se manifestou republicano e, pela ocasião da proclamação da República,
talvez o único que não tivesse um monarquista sequer.
O entusiasmo chegava a tal ponto, que em 1885,
em plena vigência da Monarquia, o tenente-coronel Zacharias Ribeiro de
Camargos denominava “República” a sua fazenda e Aureliano Nogueira
Machado, diretor da banda de música loca, escrevia no bumbo em letras
garrafais, a frase “Viva a República”.
Em 21 de abril de 1889, Dr. Augusto Gonçalves,
Manoel Gonçalves, Francisco Manoel Franco, João Dornas dos Santos [pai
desse autor], Josias Nogueira Machado, João de Araújo Santiago,
Cassiano Dornas dos Santos e outros, fundaram o “Club Republicano 21
de Abril”, filiado ao Centro Republicano de Ouro Preto.
E quando chegou a Sant’Ana [atual Itaúna,
após 1901] a notícia da
proclamação da República, grandes festas se realizaram, de regozijo
pelo grande acontecimento.
Contam que o ardoroso republicano Cassiano
Dornas dos Santos sacou o paletó e o fez de tapete para o burro que
conduzia as malas do Correio, que naquele tempo vinham de Bonfim.
E tal foi a alegria com que o povo cercou o
comboio do Correio, que o estafeta, sem saber o motivo de tanto
delírio, pensou que se tratasse de uma agressão à sua pessoa.
Na noite de 20 de novembro promoveram uma grande
passeata cívica, em que havia um andor enfeitado com as cores da
bandeira e sobre o qual uma filhinha de Arthur de Mattos se ostentava,
vestida de República.
Esse andor serviu, também, no mesmo dia, para
conduzir uma parteira velha e trôpega, que não podia atender a um
chamado com a necessária urgência.
O “Club Republicano 21 de Abril” foi dos
primeiros fundados em Minas Gerais.
- “Itaúna,
Contribuição para a História do Município”, pág. 47; João
Dornas Filho (Belo Horizonte, 1936).
- Produção:
Pepe Chaves.
Escravidão
Por João Dornas Filho
Grande centro de agricultura e pecuária, que abastecia as
zonas de mineração do período do ouro, tornando-se depois uma espécie
de entreposto da região circunvizinha, Sant’Ana de São João Acima [atual
Itaúna-MG] possuía grandes fazendas de criação e agricultura, o
que explica o número considerável de escravos que habitavam seu
território.
Coévos da Abolição calculam razoavelmente em cerca de um
milhar a população que a Lei Áurea libertou. Isso, para um pequeno
distrito perdido no âmago do sertão mineiro, dá uma idéia da
importância econômica de Itaúna naquela época.
O comércio de escravos era feito com regularidade e em
grandes proporções pela família de João Francisco, do Cortume, pela
firma Moreira e Filhos e outros, sendo os maiores proprietários da
escravaria o coronel Manoel Gonçalves Cançado, da fazenda da
Cachoeira, hoje Santanense; coronel Quintiliano Lopes Cançado, da
Fazenda do Engenho; o tenente José Ribeiro Azambuja; o alferes Antonio
José de Siqueira e outros.
Gente de religião e dotada de bons sentimentos, os
itaunenses sempre foram senhores compassivos para com os escravos.
Havia pequenas exceções, cuja fama, é justo notar, já nos
chega um pouco exagerada pela tradição. Assim é que contam horrores da
fazenda da Bagagem, onde os escravos sofriam suplícios atrozes de uma
senhora sem entranhas, que foi a esposa do fazendeiro Custodio Coelho
Duarte.
Até pouco tempo (é dos meus dias) existiam efetivamente, na
Bagagem, os instrumentos de castigo para os negros que, não suportando
mais os sofrimentos, dizem que se atiravam no açude da fazenda,
suicidando-se.
Contam que esta Sinhá, enciumada pela brandura com
que o esposo tratava uma escrava chamada Bárbara, fez-lhe introduzir
pimenta e dicoada de barrileiro pela vagina e que, tomada de dores
atrozes, atirou-se no açude, afogando-se.
Afirmam que a sua alma opera milagres, pois tornara-se
santa pelo sofrimento. Velhos que me referiram esse fato afiançam que
em momentos de aflição a escrava lhes tem socorrido à força de
promessas e orações...
Outro senhor, cuja alma não é das mais estimáveis, é o
tenente Juca Ribeiro. O velho preto Adjucto, que foi seu escravo, não
tem saudade dos tempos em que foi sua propriedade. Era ríspido e mau.
Tão mau, diz o Adjucto, que depois da sua morte penou muitos anos
ainda, assombrando o arraial e as estradas desertas... “Comida
pouco e bem salgada, pro negro beber muita água e encher a barriga”
– era o seu lema.
Talvez haja um pouco de exagero no que contam e são
histórias que registro apenas pelo pitoresco que encerram. Será um
pouco de lenda, amenizando a aridez destes apontamentos...
É necessário figurar neste artigo o documento abaixo,
escritura de compra pela qual o preto Adjucto se forrou da escravidão,
comprando a si mesmo. Trabalhando em horas de descanso, durante muitos
anos, conseguiu esse valente preto reunir trezentos mil réis, metade
do seu valor, assinando, assim, o documento de alforria sob condição
de pagar os restantes trezentos com o seu braço livre.
É um belo exemplo de tenacidade e de amor à liberdade, que
o historiador de Itaúna não pode deixar de registrar. Adjucto, ainda é
vivo e forte, e foi ele mesmo que me apresentou o documento, que
copio. Curioso: a escritura foi assinada em 3 de maio de 1887, um ano
e dez dias apenas, antes da Abolição...
A escritura:
“Escritura de contrato que fazem entre si Alexandre
Lopes da Silva com seu escravo Adjucto, na forma abaixo:
Saibam quantos este
público instrumento de escritura de contrato ou como em direito melhor
nome tenha virem, que no ano do nascimento do Nosso Senhor Jesus
Cristo de mil oitocentos e oitenta e sete (1887), aos três (3) dias do
mês de maio do dito ano, nesta Freguesia de Sant’Ana de São João
Acima, Termo da cidade do Pará, comarca de Sete Lagoas, em meu
cartório compareceram as presentes partes entre si justos e
contratados, a saber de uma como outorgante contratado Alexandre Lopes
da Silva, e de outra como outorgado contratado seu escravo Adjucto,
ambos moradores nesta Freguesia e reconhecidos pelos próprios de mim,
escrivão, e das testemunhas ao adiante assinadas, do que dou fé; e
pelo outorgante me foi dito perante as mesmas testemunhas que ele é
senhor e possuidor, livre e desembaraçado do escravo cima referido,
que lhe coube por herança de sua finada mãe Maria Angélica da
Conceição, avaliado na quantia de seiscentos mil réis (600$000) e
tendo o dito escravo lhe entregado a quantia de trezentos mil réis
(300$000) em favor da sua liberdade, este aceitou a referida quantia e
concedeu ao outorgado o prazo de três (3) anos para pagar-lhe a outra
metade de sua avaliação, que é a de trezentos mil réis (300$000),
principiando este contrato no dia 15 de março próximo passado; e no
fim dos três (3) anos ficará gozando de sua liberdade sem qualquer
ônus. E pelo outorgado contratado me foi também dito perante as mesmas
testemunhas que aceitava o contrato, tudo na forma expressada pelo
senhor e o cumprirá com toda a lealdade e prontidão. E por terem assim
contratado me pediram que nesta nota os lançasse, aceitasse e
estampilhasse ao que, satisfazendo, nela os lancei, aceitei e
estrampilhei em nome das partes, e de quem mais tocar obsente o
direito dela; em fé de verdade assim o disseram e sendo-lhes lido,
aceitaram e assinaram, e pelo outorgado não saber escrever, a seu rogo
Olympio Augusto de Faria, em presença, das testemunhas, também
moradores da Freguesia, e reconhecidas de mim, Benjamim Telesphoro de
Paula Santos, escrivão que o escrevi e assino em público e raso. Em
testemunho da verdade (estava o sinal público). A) Benjamim Telesphoro
de Paula Santos. A) Alexandre Lopes da Silva. A) Olympio Augusto de
Faria. Testemunhas aa) João Ferreira do Carmo – Antonio Silvino
Barbosa. Mandada transladar de meu vigésimo livro de notas a fls. 53 a
54, no mesmo dia, mês e ano de sua data por Benjamin Telesphoro de
Paula Santos, escrivão que o escrevi, subscrevi e assino em público e
raso. A) Benjamim Telesphoro de Paula Santos.”.
- “Itaúna,
Contribuição para a História do Município”, págs., 33 a 36; João
Dornas Filho (Belo Horizonte, 1936).
- Produção:
Pepe Chaves.
Teatro Mário Matos
Por João Dornas Filho
Em 1921, verificada praticamente a incapacidade técnica do
velho Teatro Municipal, um grupo de entusiastas, chefiado por esse
dinamismo envolvente de Tácito Nogueira, resolveu e levou a efeito a
construção de novo edifício, criando a “Sociedade Anônima Teatro Mário
Matos”.
Tal foi o devotamento de Tácito Nogueira e seus imediatos
auxiliares e amigos José Flávio de Carvalho e Nélson Soares Nogueira
que, em agosto de 1923 era inaugurado teatro, com capacidade para 900
espectadores e dotado de todos os requisitos técnicos.
A inauguração se fez com um recital de poesia e regional de
Catullo da Paixão Cearense, o grande vate brasileiro que encantou a
nossa sociedade com a sua presença e a sua arte numa noite memorável.
Depois de Catullo, o teatro foi honrado com a visita de
companhias da mais justa nomeada, como a de Maria Castro, Alma Andrade
e o conjunto de Cornélio Pires.
Nesse teatro é que foi levada à cena a belíssima opereta de
Mário Matos e Lincoln Nogueira, “A Cigarra do Sertão”.
Como não é para se estranhar, esse admirável
empreendimento, que devia orgulhar os itaunenses – o teatro Mario
Matos – teve o seu momento de perseguição mesquinha e rasteira. Foi
quando, logo após a sua construção, depois que os invejosos viram
realizado o milagre do qual descriam e zombavam com derrotismos
idiotas, fizeram assoalhar a insegurança do edifício. Forçaram, então,
uma perícia no teatro, e essa perícia, tendenciosa e perversa, pedia
providências às autoridades policiais, no sentido de ser fechado o
edifício. E isso se fez por alguns meses, pois o desejo dos invejosos
era justamente diminuir as pessoas que tentaram o empreendimento.
Que não passava de sentimentos inferiores o espírito que
dirigiu essa campanha de descrédito, nada melhor o comprova que a
permanência do edifício até hoje [1936], e para os anos que
serão os dos nossos bisnetos, apesar dos temporais e das invejas...
Nota do editor:
O mesmo prédio do teatro Mário Matos, na Praça da Matriz de Itaúna,
abrigou mais tarde, o tradicional Cine Bagdad. O prédio foi derrubado
somente no final da década de 70, para se construir em seu lugar o
edifício Benfica.
- “Itaúna,
Contribuição para a História do Município”, págs. 84 e 85; João
Dornas Filho (Belo Horizonte, 1936).
- Produção:
Pepe Chaves.
Descobrimento do Município
Por João Dornas Filho
O que se conhece da história do município de Itaúna está
entrelaçado com a história de Pitangui, Bonfim e Pará de Minas, pois o
arraial de Sant’Ana de São João acima [antiga Itaúna]
pertenceu, por muitos anos, a esses municípios.
Lugar de escassa tradição na história do nosso estado na
época em que as minas de Vila Rica, Ribeirão do Carmo e Sabarabuçu
enchiam a imaginação e os alforjes dos intrépidos paulistas, Sant’Anna
dormitava sossegadamente, lavrando a terra e criando o gado nas
margens do pobre e encachoeirado São João, que ainda hoje carreia nas
suas águas o nosso minguado aluvião aurífero para as venturosas
paragens do Pitangui...
Naquele tempo, em que a descoberta do ouro era a
preocupação dominante dos paulistas, lugar que não o escondesse nas
suas entranhas, não merecia a atenção dos bandeirantes. E esse era o
caso de Sant’Ana que humilde e ignorada, plantava e criava o sustento
dos mineradores vorazes.
Da agricultura e pecuária advieram, aliás, boas fortunas
particulares em Sant’Ana, como a dos Siqueiras, que era tradicional.
Itatiaiuçu, entretanto, foi mais feliz, pois em 1698 o seu
ouro já era conhecido pelos paulistas, quando procuravam ansiosamente
o Tripuhy. É o que nos informa Diogo de Vasconcellos, em “História
Antiga de Minas Gerais”: “Bueno (Bartholomeu Bueno de Siqueira)
saindo da região dos campos em frente à Itatiaia, fronteira ignota do
Tripuhy, subiu para os altos do Pires, desceu nas fraldas da Itabira e
parecendo-lhe ver nos recortes do Morro Velho, o Itacolomy (Pedra
com Filho) só conseguiu certificar-se de andar errado, quando
reparou no incremento do rio, de modo nenhum parecido com o Fundo Sujo
(Tripuhy). Recordou-se então, que Santana (Santana do
Paraopeba), circulava entre os naturais a notícia de uma serra
chamada Itatiaia, e como a larguesa dos plainos, do alto da serra do
Curral, deixava ao longe avista-la, engrenhada na mesma cordilheira da
outra Itatiaia, continuada pela Itabeira e pela Moeda, julgou ser
aquela só e única denominação correspondente à mesma serra, o motivo
por que andava confundido. Chegando porém ao Itatiaiuçu, caiu em si do
engano”. E mais adiante: “Conhecido, portanto o caminho,
Antônio Dias entrou por onde os antigos aventureiros haviam saído. Da
serra do Borba, avistando a Itatiaia, veio em direitura ao Rodeio e,
transpondo aí a serra de Píeres, alcançou o ribeirão chamado hoje de
Cachoeira, de onde subiu para o Campo Grande. Foi esta jornada a
memorável vigília da história”.
O que foi dito já prova que o nosso município se descobriu
antes de Ouro Preto; mas temos mais em Antonil (“Cultura e Opulência
do Brasil por suas drogas e minas”, vol. V, Arquivo Público Mineiro),
que nos relata: “Não falo da mina da serra de Itatiaia (a
saber, do ouro branco, que é ouro ainda não bem formado), distante
do ribeirão do Ouro Preto oito dias de caminho moderado até ao jantar:
porque desta não fazem caso os Paulistas por terem as outras de ouro
formado e de muito melhor rendimento”, dando em seguida “o roteiro
do caminho (as minas de ouro) desde a vila de São Paulo até a serra do
Itatiaia”, onde este se dividia em dois: “Um para as minas de
Cuieté ou Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo e do Ouro Preto; e outro
para as minas do Rio das Velhas”.
E o mesmo Diogo Vasconcellos, narrando a epopéia da
descoberta do Pitangui, informa que os Paulistas partiram do
Itatiaiuçu para essa empresa em 1696, quando se sabe que o Tripuhy foi
descoberto ao alvorecer da sexta-feira, 24 de junho de 1698.
Mas, não são apenas essas provas que podemos exibir. O
visconde de Porto Seguro (Varnhagen), em “História Gerald o Brasil”,
afirma que Itatiaiuçu é “um dos primeiros lugares explorados pelos
Paulistas no começo do século passado” (1700).
E Rocha Pitta, na sua “História da América Portuguesa”,
escreve: “Descobriram-se no ano e 1698 as Minas Gerais, as de Ouro
Preto, as do Morro, as do Ouro Branco, as de S. Bartholomeu, Ribeirão
do Carmo, Itacolomi, Itatiaia, Itabira e outras anexas e os campos em
que se fabricam as roças”.
Antes, porém, que a serra do Itatiaiuçu fosse descoberta
por Antonio Dias Paes Leme, já Lourenço Castanho Taques, sertanista
afamado, percorreria em 1675 os mesmos caminhos seguidos por Fernão
Dias Paes Leme, vindo atacar os índios cataguás no lugar que se
denominou Conquista [Itaguara], em virtude da luta, brutal e
sanguinolenta, que lhe ofereceram os gentios, finalmente vencidos e
escravizados, conforme “Archidiocese de Marianna”, Raimundo Trindade e
“História de Minas Gerais”, Lúcio dos Santos.
Conquistadas assim essas terras foram colonizadas pelos
invasores destemerosos, que prosseguiram viagem para oeste, fundando
Araxá e outras cidades mineiras.
Itatitaiuçu e Itaguara são, pois, testemunhas da hora
gloriosa em que os sertanistas deslumbrados revelaram ao mundo a
fabulosa região das Minas do Ouro, que tanta cobiça e tanto sofrimento
iriam provocar no coração atormentado dos homens...
E, distritos ainda dos mais prósperos do município de
Itaúna, o velho São Sebastião do Itatiaiuçu e a risonha Nossa Senhora
das Dores da Conquista nos emprestam um pouco da sua glória no
passado, glória representada na certeza de que não fomos um povo
espectante e inativo no grande drama da conquista de Minas e da
colonização do Brasil...
- “Itaúna,
Contribuição para a História do Município”, págs. 07 a 09; João
Dornas Filho (Belo Horizonte, 1936).
- Produção:
Pepe Chaves.
A
Capela do Rosário
Por João Dornas Filho
A capela que se ergue ao sul da cidade, na montanha que lhe tomou o
nome, foi construída em data que não pudemos averiguar.
A data de 1778, que o mestre de obras Antonio Lopes Cançado, quando
foi dos consertos [restauração] realizados em 1929, fez gravar
no escudo existente no arco da nave, é posterior à sua construção,
pois foi tomada de um quadro de madeira existente na sacristia, no
qual uma Dona Francisca da Silva, que deve ser pessoa da família do
velho português Antonio Gonçalves da Guia, declara que ficou “sam
de hua moléstia de hua malina” pelo “patrosinio” de Senhora
de Sant’Ana. [N.E.: “Sã de uma moléstia maligna, pelo patrocínio de
Senhora de Sant’Anna”].
E quem conheceu a capela no seu estilo primitivo, que as obras de 1929
lamentavelmente deturparam, não tem dúvidas em acreditar que é das
primeiras igrejas construídas em Minas. Era um jesuítico perfeito, com
a pobreza e a simplicidade de linhas que marcam as obras daquele
tempo, em virtude da escassez de material e mão-de-obra.
A intenção que orientou os homens nessas obras de conserto foi a
melhor possível, não somos nós que o desconhece; a realização é que
foi lamentabilíssima, pois nos privou de possuir, historicamente
falando, uma jóia de alto valor da arquitetura primitiva do Brasil.
O escritor Carmo Gama, num ensaio publicado na “Revista do Archivo
Publico Mineiro” (Ano IX, págs. 827 e seguintes), denota que o A.
confessa terem sido fornecidas pelo padre Euzébio Nogueira Penido, de
Itatiaiuçu, talvez lance um pouco de luz sobre a data de construção da
capela. Conta ele que, quando em 1759 o marquês de Pombal expulsou do
Reino e colônias a Companhia de Jesus, dois padres jesuítas, fugindo à
perseguição, se internaram no oeste mineiro, tendo estado ambos em
Sant’Ana. Eram eles, o padre Caturra e o padre Custódio Coelho Duarte,
ambos portugueses, sendo que o último, talvez, tenha deixado
descendência no arraial. Como o estilo da antiga capela era o chamado
jesuítico, não seria absurdo admitir-se que a capela do Rosário tenha
sido construída por esses dois padres, que aqui residiram algum tempo.
Construída em data anterior a 1778, como se viu, a capela do antigo
Curato foi erigida em matriz a 07 de abril de 1841, data da criação da
Paróquia de Sant’Ana.
O cemitério que a circundava, em adro fechado a cerca de achas de
aroeira, existiu desde os primeiros tempos da sua construção e dentro
da capela estão sepultadas as pessoas que de circunstância do arraial,
como Antonio Gonçalves da Guia, que pediu testamento essa graça. E, na
nave da capela, os restauradores de 1929 afixaram uma placa de mármore
que registra esse fato, com a data de 1778, que, como vimos, não é da
sua construção. As obras de conserto foram feitas pelo mestre de obras
Antonio Lopes Cançado, sob orientação do engenheiro Paulo Fernandes,
da Oeste de Minas.
Informam velhos moradores do arraial que esta ia ser fundada no
chapadão dos Capotes. Devido às febres, entretanto, foi resolvida a
sua construção no morro que é hoje o do Rosário, por influência de um
Torquato Alves, fazendeiro que vivia nas imediações.
Reza a tradição que foi uma rica fazendeira chamada Felippa Peixoto
Santiago (Felippa Peixoto, moradora da fazenda das Peixotas), quem
doou o patrimônio para a capela, que corria pelo morro da Laje e águas
vertentes dentro da linha de cumiadas em torno da igrejinha,
inclusive, a fazenda do coronel Quintiliano Lopes Cançado. Este, em
1855, registrou-a, já como sua, no livro próprio da Paróquia, como
exigia a lei de 1850 (este livro se encontra no Arquivo Público
Mineiro).
Dois marcos dos que
limitavam a fábrica da capela ainda existiam há pouco tempo, um no
alto do Mirante e outro pouco além do lugar onde existiu a fazenda do
tenente José Ribeiro de Azambuja.
A capela do Rosário foi
matriz da paróquia até o ano de 1856, como é dito no capítulo "lendas
e tradições" [abaixo], quando a capela que os negros construíram na
atual Praça João Pessoa foi ereta em matriz.
Desde esse ano, até
1930, realizavam nela os festejos do Reinado da Senhora do Rosário,
cerimônia semi-religiosa e semi-bárbara, que segue descrita em outro
capítulo.
- “Itaúna,
Contribuição para a História do Município”, págs. 15 e 16; João Dornas
Filho (Belo Horizonte, 1936).
- Produção:
Pepe Chaves.
Figuras e fatos
Por João Dornas Filho
A velha Sant’Ana do São João Acima possui figuras curiosas
e fatos pitorescos, que não se pode deixar de fixar numa monografia
como esta, destinada a servir de repertório para os curiosos de
amanhã. Afastada como era da sede da comarca, que foi Pitangui,
Sabará, Sete Lagoas e Bonfim, Sant’Ana precisava e tinha realmente os
seus rábulas e que muito serviços prestaram ao arraial, seja feita a
justiça.
Dentre esses, ali por volta de 1880 mais ou menos, se
destacava o tenente-coronel Zacharias Ribeiro de Camargos, fazendeiro,
ex-juiz de paz e homem de grande respeitabilidade, que tinha na pessoa
do seu colega e parente, Custódio Nogueira Duarte, o Custodinho, um
sério concorrente na advocacia. Viviam sempre em luta acesa e, não
sabemos porque, o povo apelidara de Dr. Ferrugem ao Custodinho e Dr.
Cinza ao Zacharias. Ao que este debicava, quando entrava em contenda
com o Custodinho: “Quero ver o que a ferrugem consegue arranjar com
a cinza...”. Na porteira da encruzilhada da Vargem da Olaria,
junto à fazenda do Zacharias, este afixou uma placa com estes versos:
“À direita pro Fundão,
À esquerda para o Azambuje,
Fiquem todos convencidos
Que ‘Cinza’ vence ‘Ferruge’...”
No fim do século 19, Custódio Nogueira Duarte emigrou para
o arraial da Abbadia dos Dourados, onde faleceu.
O arraial, como não poderia deixar de ser, deu também os
seus voluntários a Guerra do Paraguai. Já se sabe como era feito esse
voluntariado “sui-generis”: o cidadão era preso pelas autoridades
encarregadas do serviço e, se não merecesse confiança, era metido a
ferros e conduzido a Pitangui, sede do recrutamento da zona.
Muitos conseguiam fugir ao recrutamento, como se deu com
Evaristo Cunha, que se escondeu, durante muitos dias, na capela do
Senhor do Bonfim; outros não. O voluntário José Alves Galdino foi
preso pelos chimangos (o partido liberal é que estava no poder) e
conduzido para Pintagui; mas, informa a tradição, que, em lá chegando,
usou de um recurso extremo: atochou-se com uma bucha de alho, e
febril, foi considerado incapaz. Regressou a Sant’ Ana, onde faleceu
pouco depois, em conseqüência dessa estratagema...
Outros, entretanto, seguira para o teatro da luta e
prestaram serviços até o fim. São eles, o sargento Basílio Domingues
Maia, conhecido pela alcunha de Ba; o furriel Joaquim Marianno Villas-Boas e o mestre Januário, o Caraco, professor de primeiras
letras, que dava aula envergando o uniforme. E este foi o único
recompensado, com essa cadeira de mestre-escola, pois os outros
morreram em extrema miséria, desamparados pela Pátria que serviram com
heroísmo e desinteresse.
É o mesmo caso de Sigefredo Gomide, inválido das campanhas
de 1924 e que estaria em penúria e desamparo se não fosse à dedicação
da família.
Ainda é de meu tempo uma certa rivalidade entre os
habitantes do Serrado [atual bairro Piedade] e os da cidade [Centro],
o que sempre motivava desordens e pancadarias. Pois, essa rivalidade é antiga. Há cinqüenta anos atrás o
povo do Serrado já chamava o da cidade ou da Virgem de “Sarandage”,
apelido que era sempre revidado a pau ou tiro...
Uma das maiores curiosidades de Itaúna foram por muitos
anos os moinhos que existiam junto ao rio São João, na frente do atual
Matadouro. Era uma série de casinhas, cerca de vinte, onde se moia o
milho para o fubá de angu. O primeiro moinho construído ali foi o de
Serafim Caetano Moreira em 1880, mais ou menos. Junto desse foram
sendo construídos outros e outros, dando, ultimamente, a impressão de
uma pitoresca aldeia lacustre.
Esses moinhos foram causa de muita briga e muito motim,
pois se atribuía ao açude que os movia, umas febres malignas (tifo),
que grassavam no lugar. Várias vezes o povo se reuniu, como em 1910,
para arrombar o açude, obrigando os seus proprietários e as
autoridades a pegar em armas para defender a sua propriedade. Nestes
últimos anos, depois que a cidade foi abastecida de força elétrica,
esses moinhos foram caindo em ruína e desaparecendo. E a grande
enchente de abril de 1926, a maior que há na memória de Itaúna,
destruiu o resto dessa pitoresca lembrança de Sant’Ana de São João
Acima...
“Coelho” era uma festa agrícola que o progresso extinguiu e
consistia, terminadas as capinas das roças, em os capinadores se
dirigirem com bandeiras, música e a rufos de caixa, à casa do dono da
roça, que lhes oferecia “comes e bebes”. O Coelho mais afamado que
houve em Sant’Ana foi o do ano de 1862, em que os capinadores
prenderam uma lebre, colocaram-lhe no pescoço um cordão de ouro e
foram em chorola oferecê-la ao tenente José Ribeiro de Azambuja, dono
da roça, que os retribuiu com um banquete memorável...
Moisés Lopes Cançado e Aureliano Lopes Cançado (Lili), seu
filho, foram mestres de música e regentes de bandas musicais que
existiam em Itaúna, entre 1880 a 1909.
A região fronteira à Casa de Caridade “Manoel Gonçalves”,
onde se acha localizado hoje o sítio do Sr. Olympio Nogueira de Sousa,
chama-se Bexinguento, em virtude de uma epidemia de varíola que
dizimou a população de Sant’Ana em 1880. Ali foram isolados os doentes
e ali mesmo enterrados os que faleciam, em número considerável.
A grande epidemia da gripe de 1918, que assolou e enlutou o
mundo em consequência, segundo afirmam, dos miasmas oriundos da guerra
mundial (1914-1918), deixou o seu rastro de luto em Itaúna, roubando
várias vidas preciosas ao nosso patrimônio sentimental e moral, não
assumindo, entretanto, proporções calamitosas como em quase toda a
parte. [o autor cita ‘guerra mundial’, pois, em 1936, havia
ocorrido somente a primeira guerra].
A primeira normalista filha de Itaúna é a senhora Alice de
Andrade, filha de Rogério Cândido de Andrade e D. Rosa Capanema de
Andrade, formada pelo Colégio da Providência, de Mariana,
diplomando-se no ano de 1907.
A cidade teve seu primeiro fotógrafo em 1885, na pessoa do
italiano J. Gallotti; depois veio Cícero Franco, Arthur Mauro,
Brasiliano Antônio da Silva e Benevides Garcia, que ainda trabalha.
O primeiro automóvel que transitou pela cidade foi um carro
Benz, grande e barulhento, no ano de 1915, de propriedade de um
estranho que fazia fretes; o segundo, em 1925, foi um Ford, de
propriedade do Sr. Aristides Nogueira Machado.
Ainda nos altos sertões do Brasil se conserva o costume de
se lavarem os mortos antes de leva-los à cova, reminiscência de
cerimônias religiosas de nossos selvagens. Em Itaúna data de pouco
tempo a abolição desse uso bárbaro e pernicioso, sabendo-se que o
defunto era lavado na bacia destinada ao banho diário da família. A
cerimônia do banho era sempre realizada por pessoas chegadas ao morto,
e se a rigidez das articulações já se havia manifestado, uma das
pessoas presentes devia falar ao cadáver, ordenando-lhe que amolecesse
as juntas para maior facilidade da operação. O melhor é que o cadáver
obedecia... Este bárbaro costume, meio trágico e meio ridículo no seu
secreto cerimonial, foi abolido por esforços do Dr. Dorinato de
Oliveira Lima, quando iniciava a sua clínica em Itaúna.
Contemporâneo desse costume insensato era o de serem
apisoadas ou socadas as sepulturas durante o enterramento do cadáver,
com o fim de evitar-se a emanação de miasmas. O absurdo desse hábito
também foi extinto há anos, creio que por interferência da Igreja. Se
o defunto era da roça, vinha para a cidade transportado em rede ou
padiolas confeccionadas adrede.E se era muito gordo e pesado,
costumavam aplicar-lhe vergastadas de vara, depois do que, se tornava
mais leve...
O fogo fátuo, emanação de gases orgânicos dos cemitérios,
era tido como alma de afogado, que costumava correr atrás da pessoa
que lhe fugisse à aproximação. E as pessoas medrosas, se quisessem se
tornar livres do angustiante sentimento do medo, era só pedir essa
graça, ajoelhando aos pés de um “anjinho” ou cadáver de criança...
A sepultura do afogado nunca fica inteiramente cheia de
terra, porque a água que ele bebeu ao se afogar faz com que a terra se
abata sempre...
Numa das torres da velha matriz exista um galo de lata, de
significação litúrgica. Se caso esse galo, por efeito do vento,
voltava o bico para o lado do cemitério, grandes mortandades se
verificavam na cidade...
Há sérios motivos para se acreditar que o povoado do
Catumba tenha a sua origem nalgum quilombo antigo, apagado da
lembrança dos santanenses. A começar pelo próprio nome do povoado.
Catumba é uma palavra francamente bantu. E o fato de ainda hoje só ser
habitado por negros é mais um forte elemento de suspeição. É um caso
curioso a ser elucidado. Os habitante do Catumba são até hoje temidos
pelas suas feitiçarias e deram sempre o contingente de guardas de
Moçambique ou “moçambiqueiros” para as festas do Reinado. Sempre
tiveram um regime mais ou menos de quilombo. Vivendo de macumbas e
pilhagens. É um interessante motivo para estudos de história e
etnografia, que ainda tentarei.
Em 1885 o geólogo Francisco Ignácio Ferreira escrevia sobre
Itaúna, o seguinte: “ Sant’ Ana é um importante e grande arraial
situado à margem do rio São João, sobre rochas gnáissicas que, pela
sua decomposição, dão-lhes os elementos de fertilidade e tornam o
lugar essencialmente agrícola. A duas léguas SO deste arraial em rumo
do Cajuru, existe uma importante jazida de ferro magnético, no lugar
denominado Barro Preto. O minério se apresenta em pedaços destacados,
envolvidos em uma pequena porção de limonito e esparsos no meio de uma
terra argilosa composta de detritos vegetais, argilas e fragmentos de
óxido de ferro, tendo a cor negra, donde vem o nome Barro Preto.
Retirada uma pequena camada de um a dois centímetros de espessura,
composta de terra vegetal, encontram-se pedaços de magnético
granulado, formados de cristais pequenos que facilmente se desagregam.
Nos arredores da jazida as rochas são gneissicas. A dificuldade de
obter carvão, que só de grande distância pode vir, impediria a
instalação de uma forja catalã neste lugar, onde a força motriz não é
das mais abundantes”.
- “Itaúna,
Contribuição para a História do Município”, págs., 94 a 100; João
Dornas Filho (Belo Horizonte, 1936).
- Produção:
Pepe Chaves.
Lendas e tradições
Por João Dornas Filho
Itaúna tem, como todo lugar, as suas lendas e
tradições. E bem pitorescas, como se vão ver. Apesar de ser uma região
em que o ouro não aflorasse com a exuberância tradicional de Minas,
mesmo assim, temos qualquer coisa a contar sobre este preciso metal,
que tanta glória e dor proporcionaram aos mineiros no curso da
História.
A incidência aurífera de que temos notícia
histórica no município de Itaúna é apenas em Itatiaiuçu [atual
município, antigo distrito], como já vimos em Antonil e demonstram
a tradição e a toponímia de certos povoados, assim como Descoberto e
Lavrinhas.
Mas, como se verifica em todo recanto
brasileiro, a imaginação popular localizou em Itaúna uma jazida de
ouro, cuja riqueza chega a ser alucinante. Naturalmente, ninguém ainda
conseguiu encontrar essa mina de Ali-babá, sabendo-se apenas que dorme
em terras da fazenda das Três Barras...
É assim que reza a lenda: um escravo do
primitivo posseiro das Três Barras, aproveitando a folga de um
domingo, foi até à mata com o fim de colher palmitos. Encontrada a
palmeira, pôs-se a derrubá-la, quando o gavião da foice, resvalando,
atingiu uma ponta de rocha, cuja lasca, de amarelo vivo, chamou-lhe a
atenção.
Recolhendo-a cuidadosamente, levou-a ao ourives
Carlos Roll, um suíço que residia no arraial, e este, verificando ser
ouro de bom quilate, aprazou para o domingo seguinte uma visita, sob
absoluto sigilo ao lugar da jazida. Acontece, entretanto, que durante
a semana, o escravo é picado por uma cascavel, dando-lhe morte
fulminante e escondendo da cobiça dos homens uma riqueza
incomensurável...
Acrescenta a tradição que o ourives Carlos Roll
fundiu a pedra, conseguindo três oitavas e meia de ouro finíssimo que
entregou ao cel. Manoel José de Sousa Moreira para se dizerem missas
por alma do escravo.
Tesouros enterrados, minas escondidas à ganância
da Coroa e uma copiosa tradição de moedas emparedadas existem por todo
o canto do município. Na fazenda dos Coelhos, hoje propriedade do Sr.
Aristides Nogueira Machado, a lenda conta que uma viúva enterrou um
tacho e duas panelas atestados de ouro...
Entretanto, a riqueza de Itaúna, sua verdadeira
e sólida riqueza foi no passado a agricultura e a pecuária e no
presente é a sua estupenda organização industrial. Arraial cujos
habitantes possuem riqueza de imaginação para criar lendas em que o
ouro comparecia aos montões, é natural que produzisse essa pitoresca
figura, misto de bufão e fidalgo, que foi o alferes Siqueira. Antonio
José de Siqueira, fazendeiro e juiz de paz, cuja mania, que a sua
fortuna possibilitava, era possuir cavalos magníficos, aos quais
proporcionava mais tratamento que à família.
O alferes Siqueira tinha a sua fazenda junto do
arraial - hoje é a rua Direita [avenida Getúlio Vargas], cujo
massame é dos herdeiros de Manoel José da Fonseca. Ele saia aos
domingos vestido num uniforme vistoso, cheio de dragonas e canutilho,
montando um dos seus cavalos prediletos (Andorinha, Passarinho ou
Beija-flor) que usavam ferraduras de prata.
Escoltado por dois escravos a pé, subia até a
matriz do Rosário, onde ouvia missa rezada pelo padre Antonio
Domingues Maia. Se havia música na missa, pagava os músicos para
acompanhá-lo até à sua fazenda depois da cerimônia, tocando vibrantes
partituras. Durante o trajeto seguido pelo povo, atirava mancheias de
dinheiro às crianças, que o vivavam. A escrava Gertrudes, com um
chicote, açoitava as patas do cavalo engalanado de fitas, que dançava
ao som da banda de música...
O alferes Siqueira era uma figura imponente e
marcial. Alto, bigodudo, falando imperiosamente, sempre calçado de
botas – o uniforme e a fama de rico lhe davam ascendência e
responsabilidade, que o cargo de juiz de paz aumentava. Na sua
fazenda, deitava-se numa rede e dois escravos abanavam-lhe as moscas,
silenciosamente, com grandes folhas de bananeira. Não falava
“dinheiro” ou “cobre”; dizia pomposamente “passaporte”.
A primeira árvore abatida para construção da
antiga igreja matriz a Praça João Pessoa foi tirada das suas terras e
oferecida por ele. Se alguém o visitava e perguntava primeiro pela
saúde da família que dos seus cavalos (que ele enterrava solenemente
quando mortos), estomagava-se e despedia a visita. Era um
esquisitão...
Uma sociedade que produziu um alferes Siqueira,
havia por força de acreditar também em assombrações. E é o que se deu
em Sant’Ana. A Fazenda da Bagagem, de sombrias recordações, tinha,
entre muitos outros, um lugar mal assombrado. Propriedade do capitão
Custodio Coelho Duarte, cuja esposa morreu com a triste fama de
verdugo implacável dos escravos [ver capítulo ‘Escravidão’],
essa fazenda ainda hoje é motivo de comentários em Itaúna, tal é o
número de visagens e aparições noturnas que a povoam.
Contam que lá existe um charco mal assombrado
onde, à noite, se ouve o choro de crianças. É que as escravas do
capitão Custódio, que ficavam grávidas clandestinamente, iam deixar
ali os recém nascidos, que morriam devorados pelos porcos...
Na sua fazenda, que era situada pouco abaixo do
atual retiro do Sr. Arthur Contagem Vilaça, o tenente Juca Ribeiro,
durante muitos anos, assombrou a família e os escravos, ora arrastando
móveis e bradando ordens de serviço, ora abrindo porteiras e
acutilando os porcos na seva.
Foi o Adjucto, velho escravo do tenente, que me
contou: “Ele tinha um cavalo queimado, grande, que todo dia
amanhecia suado de viajar. Era o Sinhô, que andava a noite inteira,
penando a sua alma”. E continuou aparecendo durante muitos anos
nas ruas do arraial. Os mais resolutos se uniam para cercá-lo. Em vão.
O tropel do cavalo vinha se aproximando pela frente e, sem ninguém
saber explicar, passava para trás sem ser visto... A família, não
suportando mais este suplício, mandou o padre Antonio benzer a cova em
que ele estava enterrado. E desde esse dia não apareceu mais...
Outra lenda que encheu a imaginação de nossos
avós foi a da Senhora do Rosário. Como se sabe, a atual capela do
Rosário foi a igreja matriz até 1853, sob invocação da Senhora de
Sant’Ana. Grande centro de escravos que era a freguesia, os pretos
resolveram um dia construir, nas horas de folga, uma capela para a sua
santa.
Concluída em 1845, trataram de transportar para
ela a imagem da Senhora do Rosário, com grandes e ruidosas festas semi
bárbaras. A imagem, entretanto, não permanecia na nova capela. Foi
quando o padre Miranda, então vigário da freguesia propôs mudar-se a
matriz, para a capela de baixo, deixando a do morro para a Senhora do
Rosário. E fez-se a troca.
A toque de caixas e canto de reinado foi
reconduzida a imagem para a capela do alto, onde está até hoje e de
onde nunca mais desapareceu... Isso é que originou uma das mais
pitorescas tradições de Itaúna, que é o Reinado, extinta por ordem
arquiepiscopal em 1930. Consistia essa festa, meio pagã, meio
religiosa, que se realizava a 15 de agosto, em danças e cantos
africanos acompanhados de caixas, xique xique, caxambus, violas,
sanfonas, adufes etc.
Os negros vestiam roupas coloridas,
ornamentavam-se de fitas, espelhos, vidrilhos e organizados em filas
militarizadas, se dirigiam cantando e dançando, precedidos de bandeira
com a efígie da Senhora do Rosário à residência dos reis da festa.
Estes que eram escolhidos anualmente e seguiam até a capela com
solenidade, sob o pálio, paramentados com as insígnias reais – cetro e
coroa de prata, acompanhados pelos negros.
Chegados à capela e instalados num docel, os
reis presidiam a mesa das promessas, que eram cumpridas em volta da
igreja, com acompanhamento dos pretos. Eram votos feitos por milhares
de pessoas em retribuição às graças concedidas pela Senhora do
Rosário. Eram três dias de festejos retumbantes, durante os quais, a
melhor sociedade de Itaúna se divertia e orava com os negros, em
louvor da santa dos humildes.
Era a festa mais popular e alegre da cidade, e a
ordem era arquiepiscopal, extinguindo-a, estancou uma boa fonte de
renda para as necessidades da paróquia, pois as esmolas rendiam para
os cofres da capela cerca de cinco mil contos de réis nos três dias de
festejos.
O Reinado era para a cidade o que a Penha é para
o Rio de Janeiro. E o cardeal-arcebispo não acha que a Penha – velha e
rica tradição do Rio colonial – atente contra a respeitabilidade da
Religião...
A proibição, pela autoridade religiosa da
realização da festa do Rosário, envolve, pela maneira com que foi
efetuada, uma espoliação violenta e canonicamente ilegal. Pelo menos,
aparentemente. Vejamos: se não é falsa a tradição os pretos possuíam a
sua capela que, em virtude do fato milagroso que já expus, fez-se a
permuta dessa capela com a da matriz.
O vigário encomendado, quando efetuou a troca da
matriz, com evidente vantagem para a paróquia, assumiu uma obrigação
formal – a de manter os pretos na posse do objeto permutado,
certamente com autorização competente para realizar a permuta. Pelo
menos é o que parece...
Ainda hoje eles fazem a sua festa, mas sem
assistência religiosa, em edifício que estão construindo, à sua custa,
junto da antiga capela. Isso, entretanto, não invalida o seu direito
sobre a antiga, de acordo, pelo menos com as leis do coração, que é a
lei fundamental emanada do coração de Deus.
- “Itaúna,
Contribuição para a História do Município”, págs., 48 a 52; João
Dornas Filho (Belo Horizonte, 1936).
- Produção:
Pepe Chaves.
O padre Delfino
Por João Dornas Filho
A velha Sant'Ana [atual Itaúna-MG] dos mexericos e das
maledicências cabeludas teve tipos que o cronista não resiste à
tentação de estudar. Talvez porque no arraial minguassem tradições e
divertimentos, essas figuras constituíam uma fortuna para as beatas
que aos domingos se enfiavam em cinco anáguas e saias engomadas para
ouvir a missa do padre Miranda e trocar impressões sobre os
acontecimentos da semana...
E uma dessas riquezas de Sant'Ana, não admirem, era o padre Delfino
José Rodrigues, que nunca deixou de alimentar a bisbilhotice do
arraial com as suas travessuras. Sobre este desabusado e curioso
personagem evadido das páginas frascárias do Decameron, o
senhor Realino Herculano Pereira, zeloso cultor do passado itaunense,
me havia contado coisas mirabolantes. E foi o próprio Realino quem me
informou ter sido o padre Delfino enjeitado à porta do seu avô Manoel
Pereira da Silva, que residia numa casa velha, há pouco demolida,
junto à capela do Rosário.
E o meu esclarecido informante, como sempre, não trucou de falso.
Revendo o livro nº 1 de batizados da paróquia, encontrei a fls. 22, o
seguinte assentamento, que confirma a versão de Realino. É esse o
assentamento: “Aos dezoito de dezembro de 1845, neste arraial e
freguesia de Sant’Ana do Rio São João Acima, termo de Pitanguy,
compareceu perante mim o alferes Daniel José Rodrigues dizendo-me que
já tinha feito seu testamento e que habilitava seus filhos do dito
testamento, por seus herdeiros, mas que poderia, por algum incidente,
não aparecer, pediu-me que queira fosse também neste livro, os quais
são os seus nomes os seguintes: Delfino, exposto em casa do finado
Manoel Pereira da Silva; Felicidade, exposta em casa de Manoel M.
Fagundes; Iria, Regina, Gabriel e Joaquim, filhos de Duvirges Maria de
Jesus. E por esta forma os institui por herdeiros por tê-los
habilitado seus filhos, tanto no testamento como fora dele, e pede às
justiças de Sua Majestade Imperial que assim o cumprirá, para
desencargo de sua consciência. S. Anna era ut supra. a) Daniel
José Rodrigues. a) o vigário, Antonio Domingues Maia”.
Como se vê, o padre Delfino tem a quem puxar o fogo de temperamento,
pois o seu respeitabilíssimo pai, além de cometer o pecadilho
original, adotava o cômodo processo dos melros, que botam no ninho
alheio para que os outros criem...
E o nosso querido reverendo honrava brilhantemente as tradições
paternas. Foi um perfeito gozador da vida. As autoridades
eclesiásticas, entretanto, é que não concordavam com as suas
aventuras, e suspenderam-no das ordens porque tomara a esposa a um
marido incauto e com ela viveu muitos anos.
Disposto de certo recurso pecuniário, oriundo, segundo dizem, de uma
“conta de chegar” sobre a herança paterna referente aos irmãos, o
padre Delfino fez capela em casa (à rua Silva Jardim, hoje propriedade
de Dona Fortunata de Cerqueira Lima) e lá dizia as suas missas, depois
das quais se entregava à caça, seu divertimento predileto.
Da sua desavença com o vigário Antonio Campos acerca de certo caso em
que havia também “o outro”, o cel. Francisco Franco possui no seu
esplendido museu um documento preciosíssimo: o pasquim em que o
vigário só não chama de santo ao frascário reverendo...
Foi uma feia briga. As nossas insofridas avós se deliciaram fartamente
com ela, menos o padre Delfino, que foi obrigado a se retirar do
arraial, tanto lodo haviam trocado. Foi para a vila de Tamanduá, hoje
Itapecerica, e lá, não se sabe, mas se adivinha por que, matou uma
escrava e cumpriu pena na cadeia local...
E ainda hoje as velhas, que eram moças no seu tempo e talvez bonitas,
se retranzem todas quando se fala dele: - O padre Delfino? Deus me
livre!...
- “Itaúna,
Contribuição para a História do Município”, págs., 38 e 39; João
Dornas Filho (Belo Horizonte, 1936).
- Produção:
Pepe Chaves.
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