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Pancrácio Fidélis

Tio Tonico

 

Por Péricles Gomide Júnior

Crônicas e narrativas de Pancrácio Fidelis

Publicado no jornal “Evolução”, outubro de 1955

 

Na minha cidadezinha é praxe presentear com um enorme cartucho de amêndoas e amendoins aos garotos que fazem a primeira comunhão. Foi esta a razão pela qual meu tio Tonico, quando menino, recebeu a primeira comunhão, pelo menos, meia dúzia de vezes.

 

Tio Tonico ia cedo para a Igreja e ficava observando: se havia meninos vestidos de branco, com fira azul no braço e empunhando vela, ele voava em casa, vestia também seu terninho branco, apanhava sua vela, já imensamente amarelecida pelo uso, e se postava, também, galhardamente na fila dos comungantes.

 

Após a cerimônia, tio Tonico se encaminhava com os outros para a sacristia, onde defendia seu cartuchinho, presenteado pelas Filhas de Maria. E Tio Tonico teria procedido assim, indefinidamente, se o Padre Inácio não desse pela história.

 

Certo domingo, meu ilustre tio, após receber sua comunhãozinha, se uniu aos outros garotos e foi para a sacristia receber o cartuchinho a que fizera jus. Quando estendeu a munheca para apanhar o pacote, o Padre Inácio o agarrou pelo cangote: “Então você está fazendo sua primeira comunhão, pois não?”. “Hoje é a primeira vez que comungo, sim senhor!”.

 

E antes que o respeitável cascudo do Padre Inácio o atingisse já meu tio atravessava a janela, numa das suas contumazes e aplaudidas proezas.

 

E tio Tonico cresceu, sempre malandro assim. E, apesar de tudo, meu tio era desses indivíduos prestativos que nada querem com o batente forçado, mas, estão sempre dispostos a dar uma “demãozinha” aos outros.

 

Não se fazia nenhuma festa na minha terra, sem que o tio Tonico aparecesse com os seus palpites e sua disposição para ajudar. Era ele quem mais trabalhava nos dias que procediam o carnaval, na decoração dos clubes recreativos, pregando painéis, pintando tabuletas etc.

 

Nos bailes de formatura das meninas da Escola Normal, era Ele quem arranjava a orquestra. Tocava bateria, tocava os moleques da sala de doces, preparava tudo. Nos jogos de futebol, ele jogava de ponta direita, pelo Faixa Azul F.C. Do Faixa Azul foi expulso, porque começara a chover durante um jogo e ele resolvera jogar de guarda-chuva. Joreca, o técnico, quisera obrigá-lo a encostar o guarda-chuva e ele desafiou todo mundo a exibir para ele qual regra ou estatuto que impedia o jogador de entrar em campo abrigado da chuva.

 

O juiz interrompeu a partida e exigiu a expulsão do guarda-chuva. Meu tio manteve-se irredutível, torcedores e jogadores se dividiram em dois grupos, o pau comeu em grande estilo, tio Tonico teve o guarda-chuva e quatro dentes quebrados.

 

Nos festejos da Semana Santa, tio Tonico ia para a igreja cedo e lá ficava o dia inteirinho ajudando o Apostolado da Oração, o Padre e as Filhas de Maria nos preparativos. Era ele quem, orgulhosamente, dava banho de pano molhado no Bom Ladrão, dependurava o Mau na cruz e era ele, também, que despregava Nosso Senhor, transferindo a imagem para o esquife, para a procissão do enterro.

 

Carregava, também por todo percurso, a banqueta sobre a qual subia Maria Benhur, para desenrolar o Santo Sudário, cantando “Vos Hominis”. Ela ele, ainda, que impunha respeito aos coroinhas e apagava o fogo de vela nas saias das velhas.

 

Já subira, também e, também, descera toda a hierarquia dos figurantes da Semana Santa. Fora centurião romano, depois promovido a São João, vestindo fulgurante túnica. Tropeçou, certa ocasião, na fulgurante túnica e caiu sobre a Margarida, que estava vestida de anjo. Aliás, um anjo do outro planeta, diga-se de passagem.

 

O Padre não se convenceu de que o tropeção fora involuntário e, no ano seguinte, fez tio Tonico vestir-se de “penitente”, sem camisa, carregando a coroa de Cristo. Curtiu um frio tremendo, mas acompanhou toda a procissão, embora resmungando baixinho certos nomes impróprios para qualquer solenidade, sobretudo pia.

 

No ano seguinte, o Padre promoveu tio Tonico a Abraão, pai de Isaac. E lá foi ele, com a espada levantada, pronto para trucidar o filho e um anjo atrás segurando a espada, impedindo-o de praticar aquela barbaridade bíblica.

 

Foi novamente destituído dessas funções, porquanto, chegando a procissão a seu termo, o Padre verificou, horrorizado, que as figuras estavam invertidas. Abraão ia na frente, todo airoso, sem nada para carregar, o podre Isaac gemendo sob a espada e o anjo havia ido para a casa, com dor de dente. O Padre Inácio deu um estandarte velho para o tio Tonico e mandou que ele fosse fazer uma procissão sozinho, no outro lado da cidade, o mais longe possível.

 

Certa ocasião, apareceu um circo na cidade e, quando este se foi, meu tio – para vergonha de toda a família – o acompanhou, exercendo a elevada função de dar banho no elefante. Era voz geral que tio Tonico se apaixonara pela moça que andava no arame e por isso se fora com o circo.

 

Posteriormente, viemos a saber que a atriz era a esposa do domador. A notícia parece ter fundamento, pois oito dias depois, tio Tonico regressou todo cheio de esparadrapo e esteve alguns dias na Santa Casa.

 

Saiu todo lampreiro e foi ser porteiro do cine Alhambra. A casa de espetáculos, a partir de então, estava sempre lotada. O povo se aproveitou para entregar-lhe, como ingresso, pedaços de programas, impressos, envelopes, e até casca de banana ele recebeu distraidamente uma vez. Foi posto no olho da rua com todas as honras de estilo.

 

Tio Tonico, foram também, componente da banda de música “Euterpe Carlos Gomes”, como tocador de tarol. Em desfile, os músicos da frente levavam a partitura pregada nas costas, com alfinete, a fim de que o figurante da retaguarda lesse sua parte nos costados do vizinho da frente.

 

Tio Tonico levava presa às costas a partitura para clarineta, instrumento que o “seu” Mendes soprava sério, solene e compenetrado, nas procissões e comemorações cívicas.

 

Certo 7 de Setembro, a banda puxou o desfile – Tiro de Guerra, moças da Escola Normal e meninos do Grupo. Tio Tonico, um dos últimos da banda, ia repicando seu tambor, satisfeito da vida. À sua retaguarda, o “seu” Mendes, circunspeto, com os olhos pregados às costas de tio Tonico, soprava soleníssimo a sua clarineta.

 

Ao chegarem à rua Direita, a banda quebrou para a esquerda, rumo ao campo de futebol. Meu tio Tonico quebrou à direita e o “seu” Mendes o acompanhou rente, pisando nos seus calcanhares e os olhos grudados à partitura presa às suas costas.

 

A banda composta de apenas dois instrumentistas, tambor e clarineta, andou, ainda, quase um quarteirão, até que “seu” Mendes se  deu pela coisa e retrocedeu correndo junto dos outros. “Seu” Oséias, maestro, tomou o tarol de meu tio e fez referências pouco lisonjeiras à minha avó, genitora do tio Tonico. Tio Tonico mandou “seu” Oséias tocar o tarol dele na boca e o tempo esteve quente, naquele 7 de Setembro. Meu tio foi expulso da banda, ali, à vista de todo mundo e os alamares de sua farda foram arrancados do ombro, numa solenidade triste e chocante, ante o rufar fúnebre do tambor que, diga-se de passagem, ele mesmo rufou.

 

Foi o espírito de abnegação, cooperação e altruísmo que fez meu tio perder o único emprego, em eu se adaptara.

 

Tio Tonico sumira lá da minha terra. Meu avô conseguira arranjar-lhe emprego de caixeiro viajante, numa importante firma comercial da Capital e tio Tonico saía pelo interior a vender bugigangas.

 

Tio Tonico, com seu espírito super distraído, era mestre em trocar as encomendas, invertendo tudo. Um negociante lá de Arrebite Verde encomendava, às vezes, 25 pares de chinelos e um comerciante de Jericó das Gorduras dois trombones de vara. Tio Tonico remetia os chinelos ao comerciante de Jericó das Gorduras e o negociante de Arrebite Verde, entre surpreso e furioso, recebia dois brilhantes trombones de vara.

 

O chefe da organização já havia ameaçado de mandar meu tio para o olho da rua, mais de quatro pares de vezes. Tio Tonico, porém, tinha uma virtude que, de uma forma ou de outra, neutralizava sua distração: sua bicaria. Onde tio Tonico entrava para vender o comerciante sempre comprava. Fosse pelo dom de persuasão do meu ilustre parente, fosse par se ver livre dele – o fato é que tio Tonico nunca fizera uma viagem inócua. Por este motivo era tolerado.

 

Bem, o chefe da firme deu ao tio Tonico três dias de prazo para ir até a cidade vizinha. Meu tio teria que voltar no mesmo dia, até uma localidade, onde um trem passaria às 17 horas e esta seria a única condução em toda a semana.

 

Meu tio chegou a tal localidade, de manhã Foi para a pensãozinha, pegou a gororoba, foi até à estação confirmar o horário do trem, vendeu um canivete para o agente, filou quatro cigarros do coitado e foi correr os olhos pela cidade. Uma casa, particularmente, lhe chamou a atenção. O movimento, na residência, não se enquadrava com o paradeiro da cidade.

 

Meu tio, impelido pelo seu gênio prestimoso (que meu avô traduzia por vontade de meter o nariz onde não era chamado), aproximou-se da residência. O entra e sai foi explicado: havia defunto fresco na casa. Morrera o chefe da família. Quando o sacristão entrou com os castiçais de iluminar defunto, meu tio entrou com ele, ajudando-o a carregar os objetos, prestimosamente.

 

Eis tio Tonico já de dentro, ajudando a dar banho no defunto, consolando a viúva, atendendo às visitas e fazendo os mais rasgados elogios ao morto – que fora “um exemplar pai de família, amigo dos amigos, muito bonzinho, perda irreparável etc”. Meu tio filou o café do defunto e ficou sapeando lá dentro da casa, como se fora membro da família.

 

Muito bem. Lá para as tantas, apareceu um farmacêutico, para aplicar injeção de calmante na família do morto, uma vez que ninguém dormia há várias noites, em contínua vigília e o pesar não permitia aos membros da família dormirem ainda, chorando aos cantos.

 

Meu tio pôs-se a observar todo mundo arregaçando as mangas e entregando o braço para a agulha do farmacêutico. Tio Tonico pensou, então, lá com seus botões: “Esse camarada deve ter morrido de qualquer moléstia contagiosa e essas injeções serão, na certa, vacina contra a doença...”. Não teve mais conversa: aproximou-se do farmacêutico e entregou-lhe o braço. O boticário apresentou-lhe os pêsames e enterrou-lhe a agulha no músculo.

 

Tio Tonico ficou por ali ainda sapeando uns cinco minutos. Daí a pouco, seus olhos começaram a ficar pesados e meu tio encostou-se no portal, piscando com dificuldade. A coisa começou a apertar, tio Tonico saiu e foi deitar-se, no quintal, debaixo de pé de café.

 

Quando acordou, já era noite fechada. Despertou de repente e correu para dentro de casa. Tudo silencioso. Em cada quarto que entrava havia alguém dormindo. Foi à sala, onde o morto estava exposto. As manchas de cera no chão era o único indício do defunto. Foi à cozinha e encontrou a cozinheira de pé: “Cadê o cadáver que estava morto lá no quarto?”. “Patrãozinho foi enterrado as cinco horas”, choramingou a empregada.

 

Tio Tonico olhou o relógio – 10 horas da noite! Voou para a estação, na esperança de que o trem tivesse atrasado. O agente devolveu-lhe um pedaço de canivete, acompanhado de quinze minutos ininterruptos de espinafração. “O trem passara no horário, sim senhor, e outro só na quinta-feira”.

 

Meu tio foi à farmácia, dependurou na campainha, até aparecer p boticário, de camisola de dormir e lamparina na mão.

 

Tio Tonico disse para o farmacêutico todo nome feio que havia aprendido em toda sua vida, incluindo alguns que havia recebido do agente da estação, por lhe haver ministrado a maldita droga dormideira.

 

A cidadezinha ficou em polvorosa. Tio Tonico, aproveitando-se do comício gratuito, fizera, aos brados, os mais veementes e sinceros votos para que o cadáver em que dera banho estivesse amargando nas profundezas do inferno. O defunto, era personagem de grande projeção na cidade...

 

Meu avô teve de usar de toda sua influência junto aos medalhões políticos, para que tio Tonico fosse posto em liberdade da cadeia onde, calmamente, fazia um proveitoso curso de fabricação de gaiola.

 

*  *  *

 

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'Eu afirmo, sempre, que Itaúna é o lugar mais divertido do mundo.

Asseguro, com a mais absoluta sinceridade que me envaideço quando

declaro onde nasci e me orgulho, infinitamente, desta terra'.

Péricles Gomide Júnior

 

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