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Análise
Incertezas na Líbia: Kadafi ainda resiste? Um dia antes desse avanço dos rebeldes, diversos meios de comunicações influentes no ocidente alertavam contra a possibilidade de um excessivo otimismo.
Por Isaac Bigio* ESPECIAL, de Londres Para Via Fanzine Tradução: Pepe Chaves 22/08/2011
Kadafi ladeado por seus dois vizinhos recentemente depostos, os ex-ditadores Ben Alí (Tunísia) e Osni Mubarak (Egito). Terá ele o mesmo destino?
Na noite do domingo, 21/08, à segunda-feira, 22/08, a oposição líbia avançou até a capital Trípoli, onde teria capturado dois filhos de Muammar Kadafi (Saif a o-Islã e Muhammad, este último teria fugido, posteriormente) e tomado à praça verde, local em que o líder costumava congregar multidões para apoiar o seu regime. A rede Al Jazeera afirma que a vitória dos ‘rebeldes’ está proclamada, o que tanto anseia o Qatar (país sede dessa emissora árabe), enquanto o presidente dos EUA, Barack Obama e o primeiro ministro britânico James Cameron declaram o fim da era de Muammar Kadafi.
Isso significa que Kadafi vai cair? O que ocorrerá se Kadafi cair? Há alguma possibilidade para Kadafi se recuperar ou se manter desafiante?
É preciso cautela
No entanto, essas informações devem ser interpretadas com cuidado. A BBC afirma que Kadafi ainda não foi deposto, pois detém tropas com 65 mil homens em Trípoli e em quase metade da Líbia. As imagens de grandes celebrações mostrando multidões nas ruas soltando fogos de artifícios foram veiculadas pela BBC e a Al Jazeera, mas não foram transmitidas de Trípoli, e sim das cidades do leste líbio, onde se localizam as bases antikadafistas.
No dia anterior ao avanço dos rebeldes, diversos meios de comunicações influentes no ocidente alertavam contra a possibilidade de um excessivo otimismo. A Stratfor, principal agência de análises políticas e militares dos EUA, vê como “muito difícil” uma queda rápida do regime.
Isso ocorre, porque as tropas rebeldes que avançavam sobre Trípoli são compostas por poucos milhares de homens, muito inexperientes e desligados do eixo territorial que controla o oriente do país. Além disso, essas forças carecem de moral e treinamentos para manter uma prolongada luta de porta a porta contra os kadafistas da capital.
Para a Stratfor, as forças de Kadafi se mostram mais disciplinadas e contam com mais apoio do que inicialmente era esperado; ao contrário dos rebeldes se têm apresentado o oposto. Esta agência acredita que os bombardeios da OTAN desempenham um papel fundamental para minar Kadafi, mas tal poder de ação sobre a capital - cujo colar metropolitano abriga entre um e dois milhões dos 6,5 milhões de líbios - seria limitado. A menos que desejem produzir muitas baixas civis, causando danos à reputação da OTAN e às suas justificativas contra Kadafi.
Apesar de as reportagens mostrarem pessoas celebrando em Trípoli pela suposta queda de Kadafi, a agência Stratfor propõe cautela, pois enquanto as tropas de Kadafi mantiverem a sua lealdade, o regime não será destronado, além da dificuldade de os rebeldes tomarem a capital.
As tropas de Kadafi estão bem armadas e treinadas. Se decidirem resistir será difícil derrotá-las plenamente, o que poderá transformar Trípoli num inferno. Uma das últimas declarações via rádio de Kadafi (que não quer aparecer em vídeo) sugere que a capital está sob a ameaça de ser destruída - não por ele, mas pelos adversários que tentam derrubá-lo. Alguns analistas compararam a resistência que ele possa liderar com a que tiveram os alemães em Berlim e noutras cidades durante a Segunda Guerra Mundial, onde foi revistada casa por casa.
Tim Marshall, comentarista da Sky, sugere que à OTAN poderia não convir uma queda rápida de Kadafi, a fim de não gerar um vazio político, como o que se deu em 2003, na cidade de Bagdá. Quando ocorreu a queda de Sadan Hussein, numerosos grupos locais adquiriram muito poder e realizaram saques, mas também, fortaleceram as milícias islâmicas que, posteriormente, libertaram zonas da capital e se chocaram com tropas anglo-americanas de ocupação.
Avanço sobre Trípoli
Para se evitar um maior derramamento de sangue, existe a possibilidade de conceder a Kadafi e seus seguidores uma proposta para rendição em troca de imunidade ou proteção contra represálias, o que não parece ser uma real possibilidade.
No último domingo, ao meio-dia, o porta-voz do governo, Moussa Ibrahim, prestou conferência de imprensa em inglês, afirmando que já foram mortas 1300 pessoas e 5000 estão feridas em Trípoli e que este número pode se agigantar a níveis inimagináveis. Segundo ele, os adversários de Kadafi carecem de um projeto próprio e se compõem de alas unidas pelo ódio contra o regime. Mantêm acesos os seus desejos de vingança às tribos e povos apoiadores da revolução. E, os rebeldes somente puderam avançar, graças aos bombardeios da OTAN, cujo objetivo não é proteger civis, mas destruir totalmente o regime nacionalista.
Ibrahim propõe um imediato cessar fogo e o início de um diálogo para encerramento do regime, além de um exílio a Kadafi, acompanhado de determinadas concessões e garantias.
George Friedman, diretor da Stratfor, acredita que a corte para crimes internacionais deverá propor a Kadafi, a mesma sorte de Milosevic e outros julgados apressadamente em Haia. Tal decisão não permite oferecer uma saída negociada, o que vem incentivar aos que estão no poder, ali permanecerem, ainda que muitos cadáveres sigam se amontoando.
Uma estratégia importante que deve estar em curso pelos aliados é a de provocar um levantamento civil antikadafi na capital. Isto dividiria a resistência governista, criando deserções e provocando o colapso do regime.
Pois, agora, o eixo das potências ocidentais não deverá derrotar Kadafi com bombardeios militares, mas com bombardeios de notícias que tendem desmoralizar os seus seguidores e a produzir um levante espontâneo na capital.
Franco Frattini, chanceler italiano, assegura que Kadafi controla menos de 15% de Trípoli, que teria ruído com pouca resistência do regime. Não obstante, um repórter da BBC o contradiz, ao indicar que há muitos franco-atiradores e atacantes escondidos na capital, buscando armar suas emboscadas. A resistência em uma grande urbe pode ser uma forma de minar os adversários, que já não podem ter a mesma cobertura aérea (para não arriscar vidas civis) e seguir desmoralizando-os num terreno adverso.
Região central de Trípoli, onde ocorrem os atritos entre forças do regime e insurgentes.
Particularidades da Líbia
A atual situação líbia contrasta muito com os dois países que a divisam, Tunísia e Egito, onde suas ditaduras caíram recentemente, após levantes populares. Igualmente, ocorreu às duas últimas repúblicas muçulmanas que os EUA e seus aliados bombardearam, até depor os seus regimes, o Afeganistão, em 2001, e o Iraque, em 2003.
Ao contrário dos levantes de massa espontâneos e relativamente pacíficos que derrubaram ditadores na Tunísia e Egito, na Líbia - localizada entre essas duas nações árabes do nordeste africano - a OTAN não procurou um acordo com a debilitada ditadura. Se antes essa ditadura era sua tradicional aliada, agora a OTAN se tornou a força motriz para armar e financiar o levante antikadafista.
Diferentemente de seus vizinhos depostos, Ben Alí e Osni Mubarak, Muammar Kadafi tem sido capaz de manter apoio em vários setores populares, particularmente, nas regiões oeste e central da Líbia.
Diferente do ocorrido em Kabul e Bagdá, onde os EUA e seus aliados derrotaram governos em ações das tropas de ocupação, capturando e controlando, na Líbia, a OTAN não quer aparecer agora como um ‘ocupante’ ou responsável por destinar suas tropas àquele país. Sua estratégia teve base na dominação aérea, a partir de bombardeios contra os kadafistas (inclusive, promovendo um magnicídio) e no envio de armas, dinheiro e instrutores para desenvolver uma força armada local, utilizada como um peão no seu tabuleiro.
Mustafá Abdul Jalil, ex-ministro da Justiça de Kadafi e atual presidente interino da Líbia, pela CNT.
O heterogêneo antikadafismo líbio
Contudo, o grande problema do conglomerado de forças que se uniu à OTAN para derrubar Kadafi é a sua evidente composição heterogênea.
E não há nada de novo nisso. Basta ver que o atual mandatário afegão foi um aliado talibã e que vários de seus ministros foram sanguinários criminosos de guerra e durante o conflito se massacraram mutuamente. Entretanto, no Afeganistão, todo esse arco heterogêneo está sob a supervisão direta dos EUA, que ocupam aquela nação.
Na Líbia, os aliados buscam controlar a situação sem lançar suas tropas em campo.
O Conselho Nacional de Transição (CNT) é o governo provisório líbio, o qual a maioria dos países europeus e americanos reconhece. Seus principais componentes são ex-ministros de Kadafi, que deixaram seu governo em fevereiro de 2011. Todos têm as mãos manchadas pelos mesmos crimes que agora eles atribuem ao seu ex-líder.
Este Conselho está presidido por Mustafá Abdul Jalil, ex-ministro da Justiça de Kadafi desde o dia 10 de janeiro de 2007, até 27 de fevereiro de 2011; o seu premiê é Mahmoud Jibril, ex-chefe da Junta Nacional de Desenvolvimento Econômico de Kadafi no mesmo período.
O comandante das forças armadas desse Conselho era o ex-general Abdul Fatah Yunis, que trabalhou como ministro do interior de Kadafi até fevereiro de 2011; era o seu homem número dois. Contudo, ele foi assassinado em 28 de julho passado.
Tal fato produziu a remoção da cúpula dos ministros do Conselho, o que evidencia a pouca homogeneidade, consistência e democracia desse organismo. Enquanto o CNT oficialmente acusava Kadafi de ter assassinado Yunis, Trípoli afirmava que ele foi executado por uma ala do próprio conselho.
Aliás, os diferentes grupos islamistas que conformam diversos destacamentos armados antikadafi não perdoam Younis e outros ex-servidores públicos de Kadafi, pelos massacres durante o período em que estiveram no poder em Trípoli.
Estes últimos mantêm uma agenda aberta que cumpre a lei do Alcorão (Sharia), que funciona também como o código de justiça teocrático da nova Líbia. Mohammed Busidra deseja tomar a presidência e se livrar dos ex-kadafistas. Busidra é o líder de uma coalizão de forças islamitas que abrangem, desde os ‘Irmãos Muçulmanos’ líbios (unidos ao partido de mesmo nome no Egito e que lutou contra Mubarak e o Hamas palestino), até o comando 17 de Fevereiro, dos irmãos A o-Sallabi. O Grupo de Combate Islâmico Líbia (antiga ala da Al Qaeda) também integra a coalizão armada contra Kadafi.
O vice-presidente do CNT, Abdul Hafiz Ghoga, é um advogado de direitos humanos que representa outro setor mais interessado na democracia política e se difere de ex-ministros do regime e dos islamitas.
Kadafi e presidente venezuelano Hugo Chávez, que se opõe aos bombardeios da OTAN à Líbia.
Possíveis palcos para Kadafi
Enquanto a Al Jazeera informa que está em curso uma série de tratados visando um lugar onde Kadafi poderia se exilar (como Angola ou Zimbábue), a Venezuela condena as ações da OTAN e esta condena a resistência de Kadafi. Portanto, o palco pode mudar rápida, drástica ou imprevisivelmente, de acordo com muitos fatores.
Não se descarta uma prolongada resistência de Kadafi ou que ele volte a retomar a iniciativa (como antes ocorreu durante este conflito) ou ainda, o surgimento de guerrilhas urbanas ou rurais que reivindiquem a revolução verde de 1967.
Encontrar Kadafi, seja simplesmente para capturá-lo ou obrigá-lo a se refugiar, se torna uma medida fundamental.
Entretanto, não se pode saber o que se passará na Líbia, caso Kadafi caia. A OTAN buscará impor um governo com características liberais, que abra às portas a um sistema multipartidário e uma economia aberta, fazendo o Estado se retirar da exploração petrolífera e ser substituído por uma série de consórcios estrangeiros. Assim, se fará inevitável uma luta pelo poder entre a heterogênea oposição e as tribos que estão à sua volta.
Igualmente ao ocorrido no Iraque, surgiram diversas milícias sob uma mesma agenda islâmica, ainda que, possivelmente, não sejam tão unidos ao Irã xiita como aos Irmãos Muçulmanos do Egito e o Hamas palestino - que recentemente rompeu uma trégua de dois anos e voltou a atacar Israel.
A tese de que este será um novo movimento democratizante na região é discutível. Em parte, a derrubada de Kadafi não é bem um produto de um levante interno, mas de uma intervenção militar de todas as potências ocidentais. Por outro lado, as características democráticas dos principais líderes do CNT são nulas, pois, até o início desse ano eram ministros da mesma ‘tirania’ que hoje buscam depor. Ademais, grande parte dos países árabes que apoia o CNT são petromonarquias autocráticas, enquanto a bandeira e o hino nacionais que emprega o CNT são os da monarquia autocrática de Idris, influente rei da Líbia de 1951 a 1967. Enquanto a atual bandeira nacional líbia traz somente a cor verde e carece de motivos religiosos, a dos insurgentes traz o símbolo da família real, com a estrela e a meia lua muçulmanas.
Uma Líbia pós-Kadafi se converterá em um novo campo de batalha, entre os que desejam uma economia o mais aberta possível ao investimento estrangeiro e os que desejam manter várias das altas formas de intervenção estatal sobre o mercado e o petróleo, o que no passado gerou um sistema de benefícios populares e clientelismos; entre quem peça uma maior abertura democrática e os antigos servidores públicos alheios a tudo isso ou os partidários de uma república islâmica; entre quem queira conservar e estender os direitos da mulher (a Líbia é o país muçulmano onde há mais leis favoráveis à independência feminina) e quem quer restituir o véu ou a lei do alcorão; e entre quem proponha uma economia e democracia liberais, dentro do modelo europeu e os sindicalistas que apontam à uma agenda mais social.
Kadafi ainda não se deu por vencido.
Repercussões internacionais
O que se passa na Líbia definirá a evolução dessa onda de levantes populares dentro dos países árabes e o que poderá ocorrer também em Israel.
Ao contrário do que se passou com o Iraque, cuja invasão produziu protestos em massa (incluindo marchas que somaram mais de 10 milhões de pessoas em diversas cidades da Europa e dos EUA), os bombardeios na Líbia não promoveram considerável onda de rejeição no ocidente. Em parte, isso explica porque não foram enviadas tropas e porque se mantém um discurso de apoio a uma insurgência democrática local, que não passou por cima da ONU e, sobretudo, quem dirige estas incursões é o primeiro presidente negro dos EUA, cuja agenda antikadafi é assegurada pela Internacional Socialista.
De certa maneira, também haverá repercussões na América Latina, onde os oito países do bloco da ALVA questionam a intervenção da OTAN – inclusive, Venezuela e Nicarágua têm mostrado preferências por Kadafi -, tendo a Síria como membro observador desse bloco bolivariano.
O que ocorre na Líbia pode advertir como os EUA devem se comportar, doravante, contra regimes contestadores e detentores de muito petróleo.
A tudo isso uma nova lição deve ser somada. O castigo a Kadafi deverá indicar um "cartão amarelo" para diversos governos críticos aos EUA pelo mundo afora como o Irã, no sentido de que não continuem se armando.
No entanto, há algo que esses regimes como o do Irã e da Coréia do Norte podem estar avaliando nesse momento. Como o fato de os dois últimos países que foram bombardeados são justamente aqueles que, voluntariamente, desmantelaram suas armas de destruição em massa e, em vez de receberem um bom tratamento por isso, foram ‘recompensados’ com intervenção estrangeira em massa; então motivada por saber que não haveria muitas armas letais a lhe fazer frente.
* Isaac Bigio é professor e analista internacional em Londres. - Leia outros artigos de Isaac Bigio em português: www.viafanzine.jor.br/bigio.htm.
- Imagens: John Cox/Arquivos do autor.
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